Artigo 2
O jogo infantil e a criação poética
por: Tânia Ferreira
Psicóloga. Psicanalista.
Especialista em Saúde Mental. MS em Educação.
Em
1908, no texto traduzindo como Escritores
criativos e devaneios, cujo tema
original é “o poeta e o fantasiar, Freud
retoma a teorização sobre o jogo. Segundo
ele, o poeta, tal como a criança que brinca,
cria um mundo de fantasia que leva muito a
sério, posto que ali investe muita emoção. A
relação entre o jogo infantil e a criação
poética, a linguagem trata de preservar. Ele
recorre aos termos em alemão e descobre que
Spiel refere-se às formas literárias
que são necessariamente ligadas a objetos
tangíveis e que podem ser representadas.
Lutspiel ou Trauerspiel– comédiao ou
tragédia; literalmente, “brincadeira
prazerosa” e “brincadeira lutuosa,
denominando os que realizam a representação
de Schauspieler, “atores”
literalmente, “jogadores de espetáculo”. O
mundo imaginativo do poeta proporciona um
certo tratamento daquilo que, de real, causa
desprazer, é penoso, transformando-o em
fonte de prazer.
Adélia Prado consegue falar
das coisas corriqueiras que causam o tédio,
como fazer comida, comer frango e bater o
osso no prato para chamar cachorro.
Poetizada por Adélia, essa cena horrível de
um domingo transforma-se num cenário como
outro qualquer, onde o feio da cena cede
lugar à beleza do jogo das palavras.
“Qualquer coisa é casa da poesia”, diz
Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato
Pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz para cânticos de festa
(...)
(PRADO< 1991,p.12)
A criança também, tal como o poeta,
representa em seu jogo as situações penosas,
corrigindo, como indica Freud, a realidade
insatisfatória. Qual de nós nunca presenciou
uma criança brincando de ser “a professora
tirânica” ou mãe “briguenta” ouo médico que
lhe examina desajeitadamente a garganta?
Para ela, qualquer coisa é a casa do brincar...
Neste momento teórico, Freud relacionava o
jogo apenas ao prazer, e só em 1919 irá
inscrevê-lo em meio às suas teorizações
sobre a compulsão de repetição e a pulsão de
morte, conferindo-lhe um outro estatuto.
Contudo, nesse momento de sua teoria ele
ainda pensava o aparelho psíquico em termos
do princípio do prazer e princípio da
realidade.
Freud nos brinda, então, com uma
formulação interessante: a criança brinca
não porque não sabe falar, como querem
alguns teóricos, mas “porque deseja”. “O
brincar da criança é determinado por desejos”
(FREUD, 1976[1908], p.151).
Uma outra formulação importante refere-se
ao fato de que, para ele, a criança brinca
sozinha ou estabelece um sistema psíquico
fechado com outras crianças, com vistas a um
jogo, mas mesmo que não brinque em frente
dos adultos, que preferem revelar suas
falhas a confiar a um outro suas fantasias.
A criança“abreo jogo”, não há tanto “por
trás” do jogo que deva ser desvendado.
A diferença que Freud estabelece entre o
jogo e a fantasia é que, nojogo, a criança,
embora catexize seu mundo de brinquedo, ela
o distingue perfeitamente da realidade, e
gosta de ligar seus objetos e situações
imaginadas às coisas visíveis e tangíveis do
mundo real. Para ele, “essa conexão é tudo
que diferencia o jogo infantil do fantasiar”
(FREUD, 1976[1908], p. 150). A criança
“de-significa” os objetos. Diz prato é
chapéu, que vassoura é cavalo ou que um
pedaço de madeira é espada. Entretanto, sabe
que o prato é prato, vassoura é vassoura...
Essa de-significação é dialetizável.
Não obstante, se Freud estabelece uma certa
distinção entre jogo infantil e a fantasia,
a função tanto de um quanto do outro seria a
de, numa situação de desprazer, produzir
prazer. A criança, tal como o poeta,
rearranja as situações do seu mundo, numa
nova ordem. O jogo infantil, para Freud,
vislumbra o desejo que não vai ser
satisfeito e transforma a realidade penosa.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Tânia. A escrita da
clínica:psicanálisecom crianças.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. P. 89. |