Vol. XIV: Vitrais 96 - set 2021 

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIV: Vitrais 96 - set 2021

 

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Artigo 2

 

O jogo infantil e a criação poética

por: Tânia Ferreira

Psicóloga. Psicanalista. Especialista em Saúde Mental. MS em Educação.

 

Em 1908, no texto traduzindo como Escritores criativos e devaneios, cujo tema original é “o poeta e o fantasiar, Freud retoma a teorização sobre o jogo. Segundo ele, o poeta, tal como a criança que brinca, cria um mundo de fantasia que leva muito a sério, posto que ali investe muita emoção. A relação entre o jogo infantil e a criação poética, a linguagem trata de preservar. Ele recorre aos termos em alemão e descobre que Spiel refere-se às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Lutspiel ou Trauerspiel– comédiao ou tragédia; literalmente, “brincadeira prazerosa” e “brincadeira lutuosa, denominando os que realizam a representação de Schauspieler, “atores” literalmente, “jogadores de espetáculo”. O mundo imaginativo do poeta proporciona um certo tratamento daquilo que, de real, causa desprazer, é penoso, transformando-o em fonte de prazer.

Adélia Prado consegue falar das coisas corriqueiras que causam o tédio, como fazer comida, comer frango e bater o osso no prato para chamar cachorro. Poetizada por Adélia, essa cena horrível de um domingo transforma-se num cenário como outro qualquer, onde o feio da cena cede lugar à beleza do jogo das palavras. “Qualquer coisa é casa da poesia”, diz Adélia.

Faço comida e como.

Aos domingos bato o osso no prato

Pra chamar o cachorro

e atiro os restos.

Quando dói, grito ai,

quando é bom, fico bruta,

as sensibilidades sem governo.

Mas tenho meus prantos,

claridades atrás do meu estômago humilde

e fortíssima voz para cânticos de festa (...)

(PRADO< 1991,p.12)

A criança também, tal como o poeta, representa em seu jogo as situações penosas, corrigindo, como indica Freud, a realidade insatisfatória. Qual de nós nunca presenciou uma criança brincando de ser “a professora tirânica” ou mãe “briguenta” ouo médico que lhe examina desajeitadamente a garganta? Para ela, qualquer coisa é a casa do brincar...

Neste momento teórico, Freud relacionava o jogo apenas ao prazer, e só em 1919 irá inscrevê-lo em meio às suas teorizações sobre a compulsão de repetição e a pulsão de morte, conferindo-lhe um outro estatuto. Contudo, nesse momento de sua teoria ele ainda pensava o aparelho psíquico em termos do princípio do prazer e princípio da realidade.

   Freud nos brinda, então, com uma formulação interessante: a criança brinca não porque não sabe falar, como querem alguns teóricos, mas “porque deseja”. “O brincar da criança é determinado por desejos” (FREUD, 1976[1908], p.151).

 Uma outra formulação importante refere-se ao fato de que, para ele, a criança brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, que preferem revelar  suas falhas a confiar a um outro suas fantasias. A criança“abreo jogo”, não há tanto “por trás” do jogo que deva ser desvendado.

A diferença que Freud estabelece entre o jogo e a fantasia é que, nojogo, a criança, embora catexize seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginadas às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Para ele, “essa conexão é tudo que diferencia o jogo infantil do fantasiar” (FREUD, 1976[1908], p. 150). A criança “de-significa” os objetos. Diz prato é chapéu, que vassoura é cavalo ou que um pedaço de madeira é espada. Entretanto, sabe que o prato é prato, vassoura é vassoura... Essa de-significação é dialetizável.

Não obstante, se Freud estabelece uma certa distinção entre jogo infantil e a fantasia, a função tanto de um quanto do outro seria a de, numa situação de desprazer, produzir prazer. A criança, tal como o poeta, rearranja as situações do seu mundo, numa nova ordem. O jogo infantil, para Freud, vislumbra o desejo que não vai ser satisfeito e transforma a realidade penosa.

 

REFERÊNCIAS

FERREIRA, Tânia. A escrita da clínica:psicanálisecom crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. P. 89.