Artigo 1
Criatividade e terapia
por: Julio de Mello Filho
Psicanalista.
Psicoterapeuta Analítico de Grupo.
Quem, dentre nós, estará a altura
da criatividade dos seus sonhos?
Joyce Mc Dougall
O objeto transicional, o espaço potencial e o viver compartilhado
nos colocam em contato direto com o problema
da criatividade, que foi uma das últimas
questões estudadas por Winnicott.
Naturalmente, por ser o tema da criatividade
muito amplo, me reportarei aqui, basicamente,
à sua relação com o processo terapêutico.
Winnicott ampliou muito a visão da criatividade de Freud
relacionada, fundamentalmente, com a
sublimação, como também a visão de Melanie
Klein, que a encarou sobretudo como uma
consequência dos processos de reparação.
Winnicott ligou a criatividade diretamente
com o próprio viver criativo, a partir da
ilusão inicial da criança, fomentada pela
mãe, de que ela concebe e cria o mundo. A
partir daí, passando pela descoberta do
objeto transicional e da capacidade de
brincar, alcançaremos o viver criativo, seja
a criatividade interna e pessoal, seja uma
“criatividade compartilhada” com os outros,
com o mundo. Deste modo, a criatividade
passa a ser um dos instrumentos mesmo tempo,
um dos objetivos – talvez o maior.
[De tal modo Winnicott quis relacionar a
criatividade com a vida e com o viver que
deu mesmo o exemplo de um oligofrênico que
consegue tirar o prazer do simples ato de
respirar como no caso de criatividade.]
A possibilidade de vivenciar o seio damãe como algo concebido por
si dá a criança a perspectiva de descobrir
todas as coisas do mundo de forma criativa,
à medida que são percebidas f pelos órgãos
dos sentidos. Desse modo se inicia um viver
criativo acompanhado de um intenso prazer de
entrar em contato com objetos da realidade
externa e também com os processos
econteúdosda realidade interna.
Posteriormente, com a aquisição do princípio
da realidade, vem o reconhecimento paulatino
de que o mundo existe independentemente de
nós. Todavia, a perspectiva de interagir com
seres e objetos na área do espaço potencial
mantém esta possibilidade de permanecer
vivendo de modo fértil e criativo. Por outro
lado, para Winnicott, a manutenção da crença
da nossa posse sobre a realidade externa
permanece num grau maior ou menor em cada um
de nós, e é um dos elementos fundamentais
dos estados esquizóides.
Numa de suas visões mais originais, Winnicott relacionou a
criatividade aos elementos femininos e
masculinos da personalidade. A criatividade
que deriva do elemento feminino está
relacionada com a identidade e com o
sentimento de ser, enquanto que a
criatividade relacionada com o elemento
masculino se liga ao impulso dirigidos a
objetos a ao ato e sentimento de fazer.
Neste famoso trabalho – “A Criatividade e
suas Origens”– ele nos diz que estes
elementos existem nos dois sexos, e podem se
apresentar livres e integrados ao
funcionamento psíquico saudável ou
dissociados e ocultos, predispondo ao
funcionamento psíquico patológico (problemas
na área das identificações, escolha e
constância de objeto, papéis sexuais e
culturais, liberdade de ser e agirdiante do
sexo,etc.) Terminaeste trabalho com a frase:
“Após ser-fazere deixar-se fazer. Mas, antes
de tudo, ser.”
Criação, escreveu Winnicott, não é apenas uma obra de arte, é
também um jardim, um penteado, um modo de
preparar a comida. Nossas interpretações são,
portanto, produto de nossa criatividade – a
não serque estejamos despojados de qualquer
originalidade – assim como o modo que
arrumamos nosso setting, como já foi
anteriormente comentado. Por isso, as boas
interpretações têm, muitas vezes, algo
poético. Ao longo dos relatos clínicos de
Winnicott, temos vários exemplos disto.Nosso
objetivomaior – e esta foi uma das últimas
lições que ele nos deu – é, todavia,
possibilitarmos ao paciente estimular ou
mesmo despertar a sua criatividade. Naquilo
que ele nos narra, no modo como ele nos
narra, e nas conclusões –insigths – a
que consegue chegar. As melhores
interpretações são, em última instância,
aquelas que ele mesmo dá. E o terapeuta atua,
fundamentalmente, como objeto facilitador,
possibilitando, com seus espelhamentos e
intervenções, com a atmosfera de holding,
que o próprio paciente possa enfeixar a
Gestalt, dar o passo final naquela
elaboração em “transicionalidade”.
Tudo isso nos remeteao que escreveu André Green,aoelaborar sobre
o próprio trabalho de Winnicott: o objetivo
da análise é a construção do objeto
analítico, uma construção ao mesmo tempodo
paciente e do analista. O resultado da
análise e a própria análise só ganham
sentido, desta forma, quando algo se cria e
se produz através da fecundidade de uma
relação. Em última instância, é
irrelevantequemcontribuiu mais, ou quem deu
o passo final na direção do sentimento –
conhecimento gerado. Ele é sempre produto de
uma interação, quando existe esta
possibilidade e este tipo de funcionamento
de uma dupla. Se o paciente puder dar o
chute final, fazer gol, melhor, nos mostrou
Winnicott.
Estes fatos são fundamentais em qualquer análise, porém adquirem
uma importância crucial, para usar uma
palavra muito ao gosto de Winnicott, no
tratamento dos chamados casos difíceis em
que há, geralmente, grandes danos ao self,
importantes lesões de autoestima como nos
mostraa Psicologia do Self, lesões na
capacidade de ser, na terminologia de
Winnicott. Nestes casos, a própria
capacidade do analista de criar, de
interpretar, se faz de modo isolado, sem a
participação do paciente, pode ser sentida
pelo menos como algo que o isola, diminui,
motivo mesmo de inveja. E trata-se, muitas
vezes, de falta de tato, de sensibilidade,
de empatia do terapeuta, que não percebe que,
ao agir assim, comporta-se como a mãe ou pai
que se põe a falar e ensinar sozinho e deixa
o filho para trás, sentindo-se abandonado,
perplexo, não participante.
Tive uma paciente de meia-idade, fundamentalmente narcísica, que
veio à análise com muitas resistências,
indicada por um clínico, por conta de
intensas dores musculares. Contou-me que sua
mãe era uma mulher fria, que mal botava no
colo, nunca brincara consigo e tinha nítidas
preferências por uma irmã. O pai sempre foi
uma presença constante, e da convivência com
ele vinham suas mais agradáveis recordações.
Acompanhava-o no trato do jardim e da horta
da casa em que moravam onde, juntos,
semeavam a terra, plantavam e colhiam
legumes e vegetais. Também cuidava junto com
o pai de uma criação de porquinhos-da-índia,
e me descreveu a alegria de ver os filhos
nascerem. Só mais tarde percebeu o lado
patriarcal do pai, soube de suas amantes e
descobriu que ele não admitia que
discordassem dele. Esse relato forneceu-me
as pistas – que captei de modo inconsciente,
sobretudo – para perceber a única forma como
seria possível o caminhar de nossa relação.
Assim foi todo o período inicial de sua
análise, em que ajudava a reconstruir seu
passado, desde que ela fizesse as
descobertas, fosse percebendo aqui e ali e
acrescentando novos dados. Desse modo, a
ajudava a reconquistar seu sentimento de
onipotência de descobrir o mundo, e permitia
que revivesse a fase do grandioso self,
construída através da relação com o pai,
processos muito comprometidos pela má
relação com a mãe e pela decepção posterior
com a pessoa do pai. Ao mesmo tempo,
possibilitava uma experiência de uma relação
criativa e compartilhada, a uma pessoa
extremamente arredia e desconfiada diante de
todo e qualquer relacionamento, que
realizava todas as suas conquistas só, como
o Condor dos Andes, na sua própria
comparação.
No mais das vezes, a criatividade é um processo em
desenvolvimento durante uma análise, que
atinge seu apogeu no final. Torna-se um dos
elementos fundamentais como registro do
evoluir de um processo, principalmente
naqueles pacientes em que há um bloqueio do
viver criativo ou da possibilidade de
usufruir um viver cultural. Aliás, para
Winnicott, a ausência de vida cultural é,
por sisó, um indício de que o paciente
precisa de uma análise especial.
As outras condições que ele enumerou, neste sentido, foram: a
presença de uma figura parental muito
enferma, dominando a vida do paciente; um
temos da loucura como o sintoma principal; a
presença de um falso self bem
sucedido, que precisa ser demolido durante a
análise; a presença de uma tendência
antissocial.
O terapeuta precisa estar inconscientemente atento para as várias
possibilidades do paciente expressar a sua
criatividade em cada fase da análise, na
forma como descobre e transforma o processo
analítico, no modo como se veste e se
apresenta, no momento em que verdadeiramente
sente que um filho é uma real criação dele.
O retrato de um filho, a escolha de
determinado presente, costumam ser
manifestações muito diretas da criatividade
que o paciente nos traz, além de qualquer
outro conteúdo simbólico que possam encerrar.
Interpretar de imediato a entrega de um
presente, sem uma atitude de holding,
pode funcionar para o paciente como se o
analista não percebesse que aquilo foi
criado só para ele. A forma acolhedora de
receber esse presente torna aquele momento
compartilhado e possibilita ao paciente
creditar que é capaz de construir, de fazer,
quando ainda não é capaz de sentir
criatividade implícita no próprio ato de
estar vivo, a criatividade relacionada com o
ser.
Por vezes, a captação do paciente é tão profunda que ele nos traz
algo de nosso gosto e que se encaixa num
canto qualquer do consultório. O setting
se torna, assim, compartilhado. Assim penso
que deva ser um setting analítico, ao mesmo
tempo estável, ao mesmo tempo transicional,
podendo permanentemente – como a pessoa do
terapeuta – se enriquecer e se transformar,
inclusive através da participação do seu
paciente.
A situação
analítica como fonte de criatividade para o
paciente foi talvez o último dos legados de
Winnicott pelo qual ele mais se bateu:
“Se eu puder fornecer uma descrição correta de uma sessão, o
leitor observará que durante longos períodos
retenho interpretações e permaneço
frequentemente em silêncio (...) Minha
recompensa por esta retenção surge quando a
própria paciente faz a interpretação, uma
hora ou duas depois, talvez (...) Minha
descrição equivale a um pedido a todo
terapeuta para que permita a manifestação da
capacidade que o paciente tem de brincar,
isto é, de ser criativo no trabalho
científico. A criatividade do paciente pode
ser facilmente frustrada por um terapeuta
que saiba demais. Naturalmente, não importa,
na realidade, quanto o terapeuta saiba,
desde que possa ocultar esse conhecimento ou
abster-se de anunciar o que sabe” (“A
Criatividade e suas Origens”).
REFERÊNCIAS
MELLO FILHO, Julio de. O ser e o viver: uma visão da obra de
Winnicott.
Porto Alegre: Artes Médicas,1989. P.70-74.
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