Literatura
O feitiço de Áquila
por:
Rubens
Alves
O nome é O feitiço de Áquila. Faz
muito tempo que o vi. Mas não me esqueci.
Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro.
Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era
triste, seus cabelos eram dourados como a
luz do Sol, e a sua voz só se ouvia depois
de longos silêncios.
Ela era diáfana como a Lua, seus cabelos
eram negros como a noite, e a sua voz era
mansa como a luz das estrelas.
Eles muito se amavam. Seu amor era belo
Vivia naquela terra um feiticeiro que
manipulava os poderes de mal. Ele a viu e se
apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo.
Mas ela amava o guerreiro e se escondeu dos
olhos do feiticeiro. Este enfurecido, lançou
sobre os amantes um feitiço: estariam
condenados, pelo resto dos seus dias, a
nunca se tocarem. A mulher seria como a Lua.
Só apareceria à noite, depois do pôr do Sol.
Durante o dia ela seria um falcão caçador,
com bico e garras de rapina. O guerreiro
seria como o Sol. Só apareceria durante o
dia, depois do nascer do Sol. Durante a
noite ele seria um lobo negro caçador.
E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro
cavalgava o seu cavalo negro levando no
ombro sua amada, em forma de falcão. Vez por
outra o falcão alçava voo, subia até as
alturas, e de repente, com um pio estridente,
mergulhava como uma flecha para pegar alguma
presa. Durante a noite a mulher ficava ao
lado do seu amado, lobo negro, que se
deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez
por outra ele se levantava e entrava sozinho
na floresta escura, para viver a sua vida de
lobo.
Mas havia um breve momento encantado quando
eles quase se tocavam. Ao pôr do Sol, quando
a luz do dia se misturava com o escuro da
noite, era o momento mágico: o falcão
voltava a ser mulher e o guerreiro se
transformava em lobo. Ao nascer do Sol,
quando o escuro da noite se misturava com a
luz do dia, o lobo voltava a ser o guerreiro
e a mulher se transformava em falcão. Nesse
brevíssimo momento os dois apareciam um ao
outro como sempre tinham sido e eles viviam,
então, por um segundo, a beleza do seu amor.
Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a
outra – mas o toque era impossível. Antes
que as mãos se tocassem a metamorfose
acontecia e as imagens fugiam.
O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que
dentro do falcão vivia sua amada de voz
mansa. Mas vivia encantada, adormecida. Dela,
o que ele tinha era apenas a ave muda,
mergulhada no silêncio do seu mistério. Ele
acariciava suas penas – mas um falcão não é
uma mulher. O falcão não era sua amada. Ele
a carregava na pequena esperança do momento
encantado e na grande esperança de que, um
dia, o feitiço fosse quebrado.
A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro
do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos
que ela amava. Mas ele vivia encantado,
adormecido. Dele ela só tinha os olhos
mergulhados no silêncio do seu esquecimento.
Ela acariciava o seu pelo negro – mas um
lobo não é homem. O lobo não era o guerreiro
que ela amava. Ela o acariciava na pequena
esperança de que, um dia, o feitiço fosse
quebrado.
O amor pode muito. Ele é divino. Pode mais
que todos os feitiços. E aconteceu que, um
dia, depois de uma luta horrenda, o
feiticeiro foi morto e o feitiço foi
quebrado. E o guerreiro voltou a ser o
guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou
a ser mulher que sempre fora. E as mãos
puderam se tocar e tudo foi alegria e eles
se casaram e viveram felizes para sempre...
O filme é lindo. Minha experiência mais
funda, vendo O feitiço de Áquila,
foia debeleza. E a beleza tem um efeito
embriagante. Quando a alma é tocada por ela,
a cabeça não faz perguntas. Tudo é êxtase,
encantamento. Mas, passado o êxtase da
beleza – pois que ele não pode durar para
sempre-, minha cabeça foi possuída pela
curiosidade psicanalítica. E começou a
perguntar: “Essa beleza, de que ferida
nasceu? ”. Pois a beleza sempre nasce de
feridas. As feridas a produzem para que a
sua dor seja suportável.
Ela nasceu da dor amor. Aquele que escreveu
a estória sofria. Sofria porque o seu amor
era igual àquele momento quando o Sol nascia
e quando o Sol se punha: infinitamente belo,
insuportavelmente efêmero, Efêmero porque
logo a mulher amada se transformava em
falcão. Efêmero porque logo o homem amado se
transformava em lobo. Mas é precisamente
isto que os apaixonados não suportam: o
efêmero. A paixão só se contenta com eterno.
As escolhas dos símbolos não são gratuitas.
Na alma nada é gratuito. Tudo faz sentido. O
autor poderia ter escolhido uma pomba, ave
mansa, que se parecia com a mulher amada.
Poderia ter escolhido um unicórnio branco,
animal manso com um coração apaixonado. Mas
não. Escolheu um falcão e um lobo, animais
selvagens, ferozes, matadores. Que coisa
mais estranha, que aquele momento efêmero de
amor manso fosse logo destruído pelo
selvagem que mata!
Ah! Isso não era possível! A vida não pode
ser assim! Como explicarque o amor, tão
forte, seja assim tão frágil? Como explicar
a força do lobo e do falcão? Como explicar o
poder da morte? (O amor está sempre em luta
com a morte!)Esse é, talvez, o mistério
maior da condição humana. Freud tentou
decifrá-lo e fracassou. Como explicar a
metamorfose das imagens? De repente o amante
de cabelos dourados como o Sol se transforma
no lobo negro como a noite. De repente a voz
da amante, suave como a luz das estrelas, se
transforma no pio do falcão, perfurante como
faca. Ah! Como explicar isto, que o tempo do
amor seja tão curto e o tempo do selvagem
seja tão longo? O amor tem de ser mais forte
que a morte. O amor tem de ter um destino de
felicidade permanente.
Um amor assim, tão belo e tão efêmero, é
trágico. Mas o amor não suporta um final
trágico. E aí entra em cena o escritor, que
escreve para dar um final feliz à tragédia.
Tudo só pode ser produto da feitiçaria. A
feitiçaria entra na estória para salvar o
amor, para dizer que o lobo e o falcão são
intrusos, que eles não pertencem à estória,
que eles foram ali colocados por um
feiticeiro malvado, que eles terão de ir
embora. Se não fosse o feitiço do bruxo os
amantes estariam juntos para sempre! O amor
- no seu momento belo e efêmero – vive da
esperança “de tudo se arranjar”. A estória
tem de ter um final feliz. O amor quer
chegar à paz.
A estória, assim, se divide em três partes.
A primeira conta do momento belo do amor e
da sua realidade efêmera, logo invadida pelo
lobo e pelo falcão – selvagens. Essa parte
da estória descreve a realidade. A segunda
parte é uma explicação, uma hipótese para
desvendar o mistério: que o selvagem invada
o amor – isso é obra de feitiçaria. Na
terceira parte se encontra a solução sonhada:
ao final, será o amor sozinho, sem lobos e
falcões, e o momento efêmero – infinito
enquanto dura! – se transformará num abraço
eterno. Esse final feliz é literário,
palavras – mentiroso.
Na estória do amor não há um final feliz. O
casamento não é eternalização do amor. A paz
nunca é atingida. O lobo e o falcão não são
criações da feitiçaria. Todos somos amantes
e lobos, amantes e falcões. Lobos e falcões
jamais desaparecem. Eles são eternos. Eles
moram dentro de nós.
Será possível, então, um triunfo do amor?
Sim. Mas ele não se encontra ao final do
caminho. Ele se encontra no meio do caminho:
não na partida, não na chegada, mas na
travessia. O amor triunfa quando ele é capaz
de abraçar o lobo e o falcão. Quando o amor
abraça o lobo e o falcão eles deixam de ser
selvagens destruidores e passam a ser – se
não amigos – pelo menos companheiros.
Parafraseando Rilke: “ Conter o selvagem, o
selvagem inteiro, sem perder a doçura – isso
é inefável! ”.
Mas pode ser que o amor se vá e que o
momento efêmero não mais apareça quando o
Sol nasce e quando o Sol se põe. Então o
lobo se revela como fera e o falcão como ave
de rapina...
Quando isso acontece é hora de dizer adeus...
REFERÊNCIAS
Alves, Rubem. Palavras para desatar
nós. Campinas, SP: Papirus,2011. P.
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