Artigo
Infância e atualidade; causas internas e
causas externas
por:
Contardo
Calligaris
Doutor em Psicologia. Psicanalista. Ensaísta.
Cara amiga,
Pelo que você me conta, seus
primeiros pacientes falam sobretudo do que
lhes acontece hoje. Queixam-se das dores do
dia e eventualmente, da sensação de uma
certa falta de futuro. É você, com suas
perguntas, que tenta evocar o passado,
especialmente a infância. Aliás, de vez em
quando, leva uma bronca, como aquela
paciente que lhe disse: “Olhe, eu não estou
aqui para falar de meus pais, de meus irmãos
e de meus primeiros anos no interior, meu
problema é agora”.
Claro, você não se deixa
abalar e segue perguntando. Afinal, passou
anos de formação aprendendo que, para que a
cura aconteça, é preciso tocar na raiz das
dores de seus pacientes e que essa raiz, de
uma maneira ou de outra, está na infância.
Mesmo assim, você se pergunta: deveríamos
sempre procurar na infância e só na infância
as razões do sofrimento psíquico, mesmo que
nosso paciente afirme o contrário? É certo
insistir na evocação do passado diante de
uma catástrofe atual? Às vezes, você observa,
“sinto-me um pouco idiota: ‘Perdi o emprego
e estou desesperado’, anuncia o paciente, e
eu faço o que? Pergunto-lhe se lembra de
quando o filho dos vizinhos roubou o seu
carrinho de madeira? O que você acha? ”.
Na verdade, não faço uma
grande diferença entre acontecimentos da
infância e acontecimentos da vida adulta (também
não sei muito bem quando começa a vida
adulta). Explico melhor: não estou nada
certo de que os acontecimentos da infância
sejam de uma natureza diferente do que nos
acontece hoje. Tampouco sei se é verdade que
pela receptividade de nossos primeiros anos,
eles nos marcam com um ferro mais quente,
que deixaria vestígios para a vida inteira.
Mas uma coisa sei: qualquer
evento nos marca e nos transforma só na
repetição ou, melhor dito, num segundo
momento, em que ele é evocado, retomado,
revivido. Por exemplo (fictício e obviamente
simplificado), se eu fui abandonado na porta
da igreja quando nenê, esse evento por si só
não tem uma implicação necessária em minha
vida; mas ele se torna decisivo no dia em
que, aos quinze anos, minha namorada some de
uma festa para onde fomos juntos de mãos
dadas. É esse segundo evento que dá destaque
(consciente ou inconsciente) ao primeiro. É
a partir desse segundo evento que,
eventualmente, começarei a viver a angústia
desamparada cada vez que estiver sozinho ou
(também possível) a não tolerar a presença
de ninguém o meu lado, pois “sei” que todos
são traidores que abandonam.
O funcionamento do trauma
propriamente dito é o melhor exemplo. Você
sabe que a categoria de “transtornos de
estresse pós-traumático por psiquiatras
americanos que trabalhavam com veteranos da
Guerra do Vietnã. Eles contaram duas coisas:
1) a Guerra do Vietnã produziu
umapercentagem de veteranos traumatizados
muito maior do que qualquer outra guerra
americana (Segunda Guerra Mundial, Guerra da
Coréia); 2) os sintomas de estresse
pós-traumáticos não apareciam logo após as
situações extremas de batalha; eles
apareciam quase sempre quando o veterano
terminava seu tempo de serviço, voltava ao
país e deixava o exército.
Concluíram assim: o caráter
traumático de um acontecimento não depende
de alguma qualidade específica da
experiência vivida, mas é um efeito de como,
mais tarde, essa experiência pode ou não
integrar uma história que faça sentido para
o sujeito. Os veteranos da Guerra da Coréia
e ainda mais os da Segunda Guerra viveram
situações tão horríveis quanto os
combatentes do Vietnã, mas, ao voltar para
casa, eles encontraram multidões agitando
bandeirinhas de boas-vindas. Os veteranos do
Vietnã voltaram para um país indignado e
envergonhado com uma guerra que parecia não
ter sentido para ninguém.
Um trauma é isso: um evento,
mais ou menos difícil, que, num segundo
momento, não consegue ser integrado na
história do sujeito.
Outro exemplo. Será que um
tapa na cara de uma criança constitui um
trauma ou não? Não é possível responder;
ainda é preciso saber se, mais tarde, o
sujeito esbofeteado encontrará ou não
argumentos para dar algum sentido ao dito
tapa. Os sentidos que podem ser encontrados
a posteriori são muitos; o nosso
sujeito, num segundo momento, poderá
entender o tapa como a expressão de uma
autêntica vontade pedagógica de pais
amorosos ou como a manifestação de uma
irritação que não tinhanada a ver com ele ou
do desespero de quem não consegue ser pai ou
mãe. O tapa será propriamente um trauma caso
o sujeito, num segundo momento, não encontre
sentido algum para a violência que o golpeou.
Mas não é a definição do
trauma que nos importa. Com esses exemplos,
queria apenas lhe mostrar que os fatos de
nossas vidas agem em nós pela história em
que se integram ou, melhor, pela história em
que conseguimos ou não integrá-los.
Não que a vida seja um
continuum. Ao contrário, não é;
reconstruir (melhor dito, inventar) um
sentido que ligue o presente ao passado é
uma obra incessante, que nos oferece um
conforto necessário, nos dá sensação de que
atos e fatos se inserem numa história, num
conjunto, que somos nós. Aliás,
reinterpretar o passado, descobrir (ou
inventar) novos sentidos para o que
aconteceu é quase sempre uma maneira de
mudar nosso presente. Pois, no fim dessa
empreitada, sendo o resultado de uma
narração diferente, somos mesmo diferentes.
Qualquer cura tem duas faces:
uma, digamos assim, demolidora, que desfaz
as certezas cristalizadas da história que
nos acua em sintomas que, à vista de nosso
passado, parecem inelutáveis, e outra,
construtiva, que nos permite reinventar ou
modificar um pouco a história da qual
seríamos o fruto.
Talvez tenha conseguido
explicar um pouco por que a infância se
torna importante no nosso trabalho. Não é
porque os eventos da infância seriam mais
marcantes do que os de hoje, mas porque os
eventos de hoje tornam relevância e sentido
a partir dos de nosso passado e, portanto,
de nossa infância.
Agora, cuidado: um dos traços
evidentes de nossos tempos é que o sentido
do presente é procurado muito mais no futuro
do que no passado. Era inevitável: a
modernidade define o sujeito não por sua
herança, mas por suas potencialidades. À
primeira vista, é uma libertação: o passado
não nos define mais com a mesma veemência,
os anseios de mudança podem salvar meu dia.
De fato, a libertação é apenas aparente: o
futuro projeta sobre o presente uma sombra
tão escura quanto a que antigamente era
projetada pelo passado.
Parece que saímos de uma
cultura em que o passado nos impedia de
inventar o presente para entrar numa cultura
em que o futuro nos impede de saborear o que
estamos vivendo.
É frequente, por exemplo,
que alguém recuse um namoro porque “não sei
se vai dar certo”. O prazer que uma relação
proporciona é preterido porque duvidamos de
seu futuro. Mais um exemplo, que conheço bem,
por tê-lo encontrado em muito pacientes e
por ter passado perto de vivê-lo. Durante
quase dez anos, vivi entre Nova York e São
Paulo. O grande prazer de viver em duas
metrópoles entre as mais interessantes do
mundo podia ser facilmente estragado pela
incumbência da escolha futura do lugar onde
fincaria pé na hora em que parasse de viajar.
Enfim, para entender como e
quanto o futuro pode parasitar o presente,
pergunte aos adolescentes. Em geral, eles
não aguentam mais ser considerados sempre
promessas de um futuro e vivem na impressão
de que os adultos que mais os amam
desconsideram o presente de suas vidas.
Duas razões, então, para que
façamos o esforço de evocar o passado, em
cada cura: para reinventar o sentido de uma
história e para amenizar o peso do futuro,
devolvendo assim, quem sabe, seu justo lugar
ao presente de nossas vidas.
Você se queixa também de que
alguns de seus pacientes parecem considerar
que todos os seus males são, por assim dizer,
resultados de causas externas: perderam o
emprego e não encontram um que os satisfaça;
foram abandonados por suas esposas e esposos;
carregam uma doença que os ameaça e os
assola. Enfim, eles lhe propõem o catálogo
de todos os vasos de flores que um ser
humano pode receber na cabeça ao sair de
casa.
Claro, você me escreve, deve
ser possível ajudá-los a aguentar melhor os
golpes de destino e mesmo a reagir com mais
eficácia, mas, no fundo, ao escutá-los,
parece que sofrem só da adversidade do mundo.
Às vezes, você acha que sua intervenção
seria mais eficaz se você se transformasse
em casamenteira, agência de emprego ou
orientadora profissional. Chega a suspeitar
que suas perguntas sejam desonestas, como se
elas supusessemsempre a responsabilidade de
seu paciente e como se essa suposição
tivesse, como finalidade, a de convencer
seupaciente da utilidade de recorrer aos
seus serviços.
Essa distinção entre eventos
externos e eventos internos, culpa da gente
e culpa dos outros, alimenta um conflito
infindável entre sociólogos e
psicoterapeutas ou, às vezes, entre
psicólogos clínicos. No ringue, parece que
se enfrentam dois lutadores; de um lado, os
que acham que a personalidade e os sintomas
são frutos da cultura, do emaranhado das
relações e dos acidentes da vida, do outro,
os que acham que personalidade e sintomas
são frutos da dinâmica interna de impulsões,
desejos e censuras que se originariam no
fundo singular da alma.
É um enfrentamento idiota;
mais um na lista dos conflitos inúteis.
Primeiro, FernandoPessoa (em
muitas ocasiões, os poetas são mais sábios
do que os psicanalistas) já sabia que “o
mundo exterior é uma realidade interior”.
Segundo, como disse uma vez Lacan, o
inconsciente não é nem individual nem
coletivo, ele é “o” coletivo mesmo. Em
outras palavras, nosso lugar único e
singular é como o assento que nos é
reservado numa sala de teatro; ele é nosso,
está escrito no ingresso, mas ele é o lugar
imposto pela distribuição dos outros na
mesma sala; às vezes, há lugares sobrando e,
no meio do espetáculo, dá para mudar e se
aproximar do palco, mas será um pouco de
penetra; nosso lugar designado é o que
recebemos na compra do bilhete. Será que faz
sentido perguntar-se se é um lugar
individual o coletivo, posto que é o nosso,
mas é decidido pela distribuição na sala dos
que assistem ao espetáculo junto com a gente?
Acrescente a isso a
constatação de que, uma vez sentados, o que
comandará nossas emoções e nossa
participação na peça, sim, nossa
singularidade, mas uma singularidade feita
de valores, obrigações, censuras, repressões
e desejos que são os mesmos que agitam os
outros espectadores, ao quais aplaudem, riem,
choram ou vaiam conosco.
Também considere (esse é um
conselho clínico) que existe uma ampla gama
de transformações da personalidade que são
propriamente ditadas pela situação coletiva
na qual um sujeito se encontra;
Por exemplo, a mudança de
cultura que acontece numamigração, acarreta
verdadeiras mudanças subjetivas.
Mesmo benigno e muito
frequente é o caso dos sujeitos que sucumbem
ao grupo.
É bem conhecido o exemplo de
homens comuns, de todos os horizontes da
vida, que se transformaram em torturadores
ou assassinos de massa nas burocracias
totalitárias, sem que nada na singularidade
de suas histórias, sintomas ou fantasias os
predispusesse a essas tarefas. Desistiram de
seus valores, de seus desejos, de suas
representações singulares e ganharam em
troca o conforto de uma vida regrada por uma
só exigência: a de ser um membro funcional
do grupo, um bom funcionário.
A gangue de adolescentes
produz resultados parecidos, transformando
facilmente cordeiros em assassinos. Nela,
cada um suspende radicalmente sua existência
à aprovação dos outros.
São casos aparentemente
extremos pelas consequências que acarretam.
Mas, não esqueça que somos todos membros de
algum grupo burocrático, assim como somos
todos suficientemente narcisistas para
deixar ao olhar dos outros o cuidado de
decidir quem somos.
Enfim, psicólogo social e
psicoterapeuta não têm o mesmo por que
brigar. O psicólogo social pode não ser
psicoterapeuta; o psicoterapeuta não pode
ser de alguma forma, psicólogo social. Pois,
se ele entender e abordar seu paciente como
se fosse um Robson Crusoé vivendo desde
sempre na ilha deserta e sem nunca encontrar
Sexta-Feira, o terapeuta se parecerá com um
físico de antes da física moderna. Sabe,
aqueles que achavam que os corpos caem por
uma propriedade interna, porque são
obstinadamente pesados. Parece que, desde
então, descobriu-se que os corpos caem
porque há muitos corpos de tamanhos
diferentes, e eles se atraem.
Abç.
Referências
CALLIGARIS, Contardo.Cartas a um jovem
terapeuta: reflexões para
psicoterapeutas, aspirantes e jovens. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008. P. 133/144.
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