Vol. XIV: Vitrais 93 - dez 2020

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIV: Vitrais 93 - dez 2020

 

Editorial

Notícias

Literatura

Deborah Anna Luepnitz

 

Artigos

Sâmara Nick

Renata Christina dos Santos Valle

 

Reflexão

Roberto Shinyashiki

 

Como publicar seus artigos

Contato com Elisabete Cerqueira

elisabeteccerqueira@yahoo.com.br


Números anteriores

 

 

Vol. l:  

Vitrais 56 jun 2007

Vitrais 57 – fev 2008

Vitrais 58 – nov 2008  
Vol. ll:  

Vitrais 59 – mar 2009

Vitrais 60 – jul 2009

Vitrais 61 – dez 2009

 

Vol. lll:

 

Vitrais 62 mar 2010

Vitrais 63 - jul 2010

Vitrais 64 dez 2010

 

Vol. IV:  
Vitrais 65 mai 2011 Vitrais 66 - set 2011
Vol. V:  
Vitrais 67 mar 2012

Vitrais 68 - ago 2012

Vitrais 69 dez 2012  
Vol. VI:  
Vitrais 70 mar 2013 Vitrais 71 – jul 2013
Vitrais 72 – out 2013 Vitrais 73 – dez 2013
Vol. VII:  
Vitrais 74 – mai 2014 Vitrais 75 - ago 2014
Vitrais 76 – nov 2014  
Vol. VIII:  
Vitrais 77 – jun 2015

Vitrais 78 -  nov 2015

Vol. IX:  
Vitrais 79 – mar 2016 Vitrais 80 -  jun  2016
Vitrais 81   out  2016

Vitrais 82 -  dez  2016

Vol. X:  
Vitrais 83  abr  2017 Vitrais 84 -  set  2017
Vol. XI:  
Vitrais 85 – jan 2018 Vitrais 86 – mai 2018
Vitrais 87 – jul 2018 Vitrais 88 – dez 2018
Vol. XII:  
Vitrais 89 – abr 2019 Vitais 90 - ago 2019
Vol. XIII:  
Vitrais 91 – jun 2020 Vitrais 92 – set 2020

 

                   

Literatura

 

Abrindo espaço no amor para o ódio

por: Deborah Anna Luepnitz

Psiquiatra. Psicanalista. Psicoterapeuta.

 

Ele dizia que suas estatuetas e imagens ajudavam a estabilizar a ideia evanescente, ou impedir que ela fugisse por exemplo completo.

                             H. D., Tributo a Freud.

 

ERA UMA CLARA MANHÃ londrina, incomumente para novembro, e eu estava a caminho do número 20 de Maresfield Gardents. Tinha visitado a Casa de Freud muitas vezes, mas esse dia seria diferente: a diretora do museu me oferecera algum tempo atrás as cordas de veludo.

Imagino que seja uma fantasia comum caminhar sozinha por entre as grandes coleções de arte do mundo. Os objetos desses aposentos específicos haviam moldado as reflexões de Freud sobre o inconsciente, o que tornava a visita particularmente tocante para gente como eu, uma psicoterapeuta psicanalítica.

Erica Davies é uma galesa de olhos azuis da cor das centáureas e com um conhecimento detalhado dos cerca de dois mil objetos que há na casa. Forneceu-me a data de algumas peças gregas, etruscas, coptas, romanas. Onde está, perguntei a estátua de Atena mencionada pela poetisa norte-americana Hilda Doolittle nas exuberantes memórias de sua análise com Freud?

 ̶   Está aqui.

Erica deu uma tapinha na pequena escultura, com um respeito cheio de familiaridade, quase sem cerimônia. Os deuses estavam acostumados com ela.

 ̶  E o que você sabe me dizer sobre este porco-espinho? – Apontei para uma imagem de bronze, de costas para as antiguidades, agachada no centro da escrivaninha.

Minha guia sorriu. Até os antigos Shabtis (Estatuetas fúnebres, quase sempre em forma de múmias, que representavam o morto para trabalhar por ele na vida após morte, em geral na agricultura. O termo se aplica a essas figuras até a 21ªdinastia, após a qual seus equivalentes recebem o nome de ushsbtis e shawabtis. (N. da T.) egípcios são mais conhecidos! O porco-espinho foi um presente oferecido a Freud pelo psicólogo G. Stanley Hall, por ocasião da única visita de Freud aos Estados Unidos, em 1909. Segundo um relato, Freud teria afirmado estar indo a América para ver um porco-espinho selvagem e fazer algumas conferências. Ao que parece, esse comentário estapafúrdio serviria para afastar sua apreensão com as conferências. Mas por que um porco-espinho? Sabemos apenas que o fundador da psicanálise manteve essa criaturinha bem à vista em sua mesa de trabalho.

Perguntei se a estátua poderia referir-se aos porcos-espinhos da antiga fábula de Arthur Schopenhauer, história de que Freud gostava a ponto de havê-la citado em seu livro sobre a psicologia das massas. Erica pareceu encantada com minha pergunta. Quando nos sentamos para o chá, fiz a seguinte paráfrase da fábula:

 

Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não     congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o congelamento.

 

Essa história teve para Freud o sentido de uma aula sobre os limites. (“Ninguém consegue tolerar uma aproximação íntima demais do próximo. ”) Tocou também em sua crença de que o amor é sempre uma questão espinhosa. Escreveu Freud: “Os dados da psicanálise mostram que quase toda relação afetiva íntima de certa duração entre duas pessoas – casamento, amizade, relações entre pais e filhos – contém um depósito sedimentar de sentimentos de aversão e hostilidade, que só escapa à percepção em decorrência do recalque. “Freud acreditava que a única exceção a isso era o amor da mãe pelo filho, que se “baseava no narcisismo”, o que apenas prova que, entre muitas outras coisas, ele era um patriarca do Velho Mundo.

Nas décadas de 1940 e 1950, o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott estendeu-se no tema das relações de amor/ódio entre pais e filhos. Num artigo clássico, listou umas dezoito razões pelas quais a mãe amorosa comum podia odiar seu bebê – uma menina ou menino. (Por exemplo: o bebê representa um risco para o seu corpo durante a gravidez e o parto. Pode ficar irritadiço e implacável a manhã inteira, e depois “sorrir para um estranho”.) Winnicott afirmava que as mães capazes de reconhecer a realidade desconcertante de que o amor - mesmo pelos bebês – é ambivalente teriam menos probabilidade de prejudica-los do que aquelas que o negam. Ele teria gostado, creio eu, da observação feita pela romancista Fay Weldon: “A maior vantagem de não ter filhos deve ser a possibilidade de continuar acreditando que se é uma boa pessoa. Depois de ter filhos, a gente compreende como começam as guerras”.

Todas as relações, não apenas os familiares, exigem que sejamos continentes de sentimentos contraditórios por uma mesma pessoa. Como observou a poetisa Molly Peacock, “tem de haver espaço no amor para o ódio”.

As definições de amor, agressão, intimidade e privacidade variam imensamente, é claro – conforme a cultura, o momento histórico e a classe social. Sem fazer afirmações universais, podemos presumir que as pessoas do ocidente contemporâneo, com s possível exceção das freiras enclausuradas, levem vidas atormentadas pelo dilema do porco-espinho. Ou seja, lutamos cotidianamente para equilibrar a privacidade e a comunhão, o interesse por nós mesmos e pelo outro, a união sexual e um teto só para nós. (Alusão da autora a um ensaio de Virgínia Wolf, intitulado A Room of One’s [um teto todo seu, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1985], ao qual ela se referirá mais adiante. (N.da T.)

 

REFERÊNCIAS

LUEPNITZ, Deborah Anna. Os porcos-espinhos de Schopenhauer: a intimidade e seus dilemas. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. P. 13 – 16.