Literatura
Abrindo espaço no amor para o ódio
por:
Deborah
Anna Luepnitz
Psiquiatra. Psicanalista. Psicoterapeuta.
Ele dizia que suas estatuetas e imagens
ajudavam a estabilizar a ideia evanescente,
ou impedir que ela fugisse por exemplo
completo.
H. D., Tributo
a Freud.
ERA UMA CLARA MANHÃ londrina, incomumente
para novembro, e eu estava a caminho do
número 20 de Maresfield Gardents. Tinha
visitado a Casa de Freud muitas vezes, mas
esse dia seria diferente: a diretora do
museu me oferecera algum tempo atrás as
cordas de veludo.
Imagino que seja uma fantasia comum caminhar
sozinha por entre as grandes coleções de
arte do mundo. Os objetos desses aposentos
específicos haviam moldado as reflexões de
Freud sobre o inconsciente, o que tornava a
visita particularmente tocante para gente
como eu, uma psicoterapeuta psicanalítica.
Erica Davies é uma galesa de olhos azuis da
cor das centáureas e com um conhecimento
detalhado dos cerca de dois mil objetos que
há na casa. Forneceu-me a data de algumas
peças gregas, etruscas, coptas, romanas.
Onde está, perguntei a estátua de Atena
mencionada pela poetisa norte-americana
Hilda Doolittle nas exuberantes memórias de
sua análise com Freud?
̶ Está
aqui.
Erica deu uma tapinha na pequena escultura,
com um respeito cheio de familiaridade,
quase sem cerimônia. Os deuses estavam
acostumados com ela.
̶
E o que você sabe me dizer sobre este
porco-espinho? – Apontei para uma imagem de
bronze, de costas para as antiguidades,
agachada no centro da escrivaninha.
Minha guia sorriu. Até os antigos
Shabtis
(Estatuetas fúnebres, quase sempre em forma
de múmias, que representavam o morto para
trabalhar por ele na vida após morte, em
geral na agricultura. O termo se aplica a
essas figuras até a 21ªdinastia,
após a qual seus equivalentes recebem o nome
de ushsbtis e shawabtis.
(N. da T.)
egípcios são mais conhecidos! O
porco-espinho foi um presente oferecido a
Freud pelo psicólogo G. Stanley Hall, por
ocasião da única visita de Freud aos Estados
Unidos, em 1909. Segundo um relato, Freud
teria afirmado estar indo a América para ver
um porco-espinho selvagem e fazer algumas
conferências. Ao que parece, esse comentário
estapafúrdio serviria para afastar sua
apreensão com as conferências. Mas por que
um porco-espinho? Sabemos apenas que o
fundador da psicanálise manteve essa
criaturinha bem à vista em sua mesa de
trabalho.
Perguntei se a estátua poderia referir-se
aos porcos-espinhos da antiga fábula de
Arthur Schopenhauer, história de que Freud
gostava a ponto de havê-la citado em seu
livro sobre a psicologia das massas. Erica
pareceu encantada com minha pergunta. Quando
nos sentamos para o chá, fiz a seguinte
paráfrase da fábula:
Um grupo de porcos-espinhos
ia perambulando num dia frio de inverno.
Para não congelar, os animais chegavam
mais perto uns dos outros. Mas, no momento
em que ficavam suficientemente próximos para
se aquecer, começavam a se espetar com seus
espinhos. Para fazer cessar a dor,
dispersavam-se, perdiam o benefício do
convívio próximo e recomeçavam a tremer.
Isso os levava a buscar novamente a
companhia uns dos outros, e o ciclo se
repetia, em sua luta para encontrar uma
distância confortável entre o emaranhamento
e o congelamento.
Essa história teve para Freud o sentido de
uma aula sobre os limites. (“Ninguém
consegue tolerar uma aproximação íntima
demais do próximo. ”) Tocou também em sua
crença de que o amor é sempre uma questão
espinhosa. Escreveu Freud: “Os dados da
psicanálise mostram que quase toda relação
afetiva íntima de certa duração entre duas
pessoas – casamento, amizade, relações entre
pais e filhos – contém um depósito
sedimentar de sentimentos de aversão e
hostilidade, que só escapa à percepção em
decorrência do recalque. “Freud acreditava
que a única exceção a isso era o amor da mãe
pelo filho, que se “baseava no narcisismo”,
o que apenas prova que, entre muitas outras
coisas, ele era um patriarca do Velho Mundo.
Nas décadas de 1940 e 1950, o pediatra e
psicanalista inglês Donald Winnicott
estendeu-se no tema das relações de amor/ódio
entre pais e filhos. Num artigo clássico,
listou umas dezoito razões pelas quais a mãe
amorosa comum podia odiar seu bebê – uma
menina ou menino. (Por exemplo: o bebê
representa um risco para o seu corpo durante
a gravidez e o parto. Pode ficar irritadiço
e implacável a manhã inteira, e depois
“sorrir para um estranho”.) Winnicott
afirmava que as mães capazes de reconhecer a
realidade desconcertante de que o amor -
mesmo pelos bebês – é ambivalente teriam
menos probabilidade de prejudica-los do que
aquelas que o negam. Ele teria gostado,
creio eu, da observação feita pela
romancista Fay Weldon: “A maior vantagem de
não ter filhos deve ser a possibilidade de
continuar acreditando que se é uma boa
pessoa. Depois de ter filhos, a gente
compreende como começam as guerras”.
Todas as relações, não apenas os familiares,
exigem que sejamos continentes de
sentimentos contraditórios por uma mesma
pessoa. Como observou a poetisa Molly
Peacock, “tem de haver espaço no amor para o
ódio”.
As definições de amor, agressão, intimidade
e privacidade variam imensamente, é claro –
conforme a cultura, o momento histórico e a
classe social. Sem fazer afirmações
universais, podemos presumir que as pessoas
do ocidente contemporâneo, com s possível
exceção das freiras enclausuradas, levem
vidas atormentadas pelo dilema do
porco-espinho. Ou seja, lutamos
cotidianamente para equilibrar a privacidade
e a comunhão, o interesse por nós mesmos e
pelo outro, a união sexual e um teto só para
nós. (Alusão
da autora a um ensaio de Virgínia Wolf,
intitulado A Room of One’s [um teto
todo seu, trad. Vera Ribeiro, Rio de
Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1985], ao qual
ela se referirá mais adiante.
(N.da T.)
REFERÊNCIAS
LUEPNITZ, Deborah Anna. Os
porcos-espinhos de Schopenhauer: a
intimidade e seus dilemas. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
P. 13 – 16.
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