Vol. XIV: Vitrais 93 - dez 2020

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIV: Vitrais 93 - dez 2020

 

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Artigo 1

 

Fatores que influenciam nas funções do pensamento

por: Sâmara Nick

 

Pedagoga. Psicóloga. Sociopsicomotricista Ramain-Thiers.

Conselheira Municipal de Direitos e Deveres da Criança e do Adolescente.

 

Repito: a alma ordena que queira –

Porque se não quisesse não mandaria –

E não executa o que lhe manda!

Mas não quer totalmente.

Portanto, também não ordena terminantemente,

Manda na proporção do querer.

St. AGOSTINHO. Confissões, liv. VIII, cap. 9, § 21

 

Ao pensar sobre os fatores que influenciam as funções do pensamento, é fundamental considerar o conceito das diversas correntes sobre a dimensão da construção do pensamento. Podemos dizer que a função básica do pensamento é distinguir e determinar as diferentes formas de realidade. Por outro lado, se esta fosse a única função do pensamento, não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas em suas conexões e as relações que há entre essas realidades que são muito diferentes.

Filósofos Idealistas partem do pressuposto de que o pensamento precede a matéria já os Materialistas entendem que a matéria é anterior ao pensamento.

Psicanalistas analisam sobre duas maneiras o pensamento. Falam de um pensamento dirigido, que é o pensamento inteligente, e de um pensamento não dirigido, que denominariam como pensamento autístico.

O pensamento dirigido é consciente, persegue o objetivo, está presente no espírito daquele que pensa; é inteligente, isto é, adaptado à realidade, procura agir sobre ela e é comunicável pela linguagem. Já o pensamento denominado autístico é subconsciente, isto é, os objetivos a que visa ou os problemas que enfrentarão estão presentes na consciência, não é adaptado para a realidade externa, mas cria para si uma realidade de imagem e sonho, tende a não estabelecer verdades, mas a satisfazer seus desejos e permanece estritamente individual, não sendo assim comunicável pela linguagem.

Podemos ter como exemplo a água que, para o pensamento inteligente, trata-se de uma substância natural de origem explicável ou pelo menos observável, podendo ser estudada. Para a inteligência autística, a água interessa somente pela satisfação orgânica: serve de bebida. Mas como tal, a água tornou-se motivo de todas as fantasias dos povos, das crianças e do inconsciente dos adultos.

Piaget em seus estudos sobre a linguagem e pensamento da criança apresenta contribuições significativasquando afirma que crianças pensam mais coisas do que dizem. Criança é incapaz de guardar para si os pensamentos que lhe vêm ao espírito. O pensamento adulto socializado, capaz de intimidade, é diferente do pensamento infantil egocêntrico, mas incapaz de intimidade. O adulto mesmo no seu trabalho pessoal pensa socialmente, pois ele tem continuamente presente em seu espírito a imagem dos seus colaboradores ou contraditores reais ou eventuais. Já a criança fala infinitamente mais que o adulto; quase nunca a criança se pergunta se é compreendida, pois não pensam nos outros; quando fala monologa coletivamente. Ele ainda conclui que o sistema de signos, que é fundamental para o desenvolvimento da linguagem, permite a formação do pensamento racional e que as funções psicológicas têm suporte biológico e são produtos das atividades cerebrais. O cérebro não é um sistema de funções fixas e imutáveis, é um sistema aberto com grande plasticidade e constante transformação.

A afirmativa piagetiana de que o ser humano transforma-se de um ser biológico em um ser histórico, em um processo em que a cultura é parte essencial de constituição da natureza humana, está ancorada em ideias materialistas e dialéticas.

Vygotsky amplia os fundamentos do funcionamento psicológico, quando, ao estudar as funções psicológicas superiores, assinala que as origens das formas superiores do comportamento (lembrar, falar, comparar, pensar, etc.) deveriam ser estudadas a partir das relações sociais que os indivíduos estabelecem com o meio social em que vivem, confirmando que o processo de aprendizagem do ser humano é cultural e, portanto, histórico.

O sujeito humano é constituído por aquilo que é herdado fisicamente e pela experiência individual, mas sua vida, seu trabalho e seu comportamento também se baseiam claramente na experiência histórica social, isto é, aquilo que não foi vivido pessoalmente pelo sujeito, mas está na experiência dos outros, na conquista acumulada pela geração que o precedeu.

A estrutura psicológica é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre a história individual e a história social. A internalização das formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica e tem como base as operações com os signos que caracterizam a linguagem.

A relação entre pensamento e palavras é um processo vivo, o pensamento nasce na palavra. Uma palavra privada de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento sem expressão por meio de palavras mantém-se nas trevas.

Fatores biológicos, ambientais e sociais colaboram para gerar um processo mental que, em nossa espécie, pode levar a resultados dramáticos e paradoxais. As característicascognitivas desse processo fazem com que a qualidade e quantidade de elementos envolvidos na tomada de decisão influenciem diretamente no resultado das escolhas que fazemos.

Antônio Damásio, neurologista, que contesta a afirmativa de Descartes “Penso logo existo! ”, apresenta seus fundamentos sobre a influência das emoções na elaboração e na construção do pensamento.

Para nós, portanto, no princípio, foi a existência e, só mais tarde, chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e. só mais tarde, pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser. (DAMÁSIO, 1995:254)

Alguns pontos são fundamentais na discussão proposta por Damásio:

  a emoção exerce influência nos processos de raciocínio;

 os sistemas cerebrais destinados à emoção estão intrinsecamente

enredados aos sistemas destinados à “razão”;

  a mente não pode ser separada do corpo.

O cérebro possui a capacidade de exibir imagens internas e de ordenar essas imagens em um processo chamado pensamento. De acordo com Damásio (1996), “as imagens não são somente visuais: existem imagens sonoras, imagens olfativas, etc.”.

O que Damásio sugere não entra em oposição com Piaget, quando defende que a mente surge da atividade de circuitos neurais, mas muitos desses circuitos são configurados durante a evolução por requisitos funcionais do organismo, ou seja, à medida que o sujeito atua sobre o meio, os circuitos neurais melhor representam o organismo. Piaget não afirma que o conhecimento se dá sobre a ação?

O erro de Descartes assim está na concepção dualista que separa amente do cérebro, que conduz muitos, atualmente, a perceberem a mente como um software   que roda no hardware cérebro. O “Penso, logo existo! ”confirma a separação da “ coisa pensante”– mente – do corpo não pensante. Como Damásio argumente, os seres já eram seres, antes do aparecimento da humanidade. No princípio, foi a existência e, só depois, chegou o pensamento.

A emoção é parte integrante do processo de raciocínio e pode auxiliar o processo ao invés de somente perturbá-lo. A beleza do modo como a emoção tem funcionado abre a possibilidade de levar seres vivos a agir de maneira inteligente sem precisar pensar com inteligência.

O alerta, para os pesquisadores da área educacional, é de que a investigação da mente deve aliar os recursos da Neurobiologia, sob pena de estar de assumindo uma postura dualista, ainda que não se admite. Os neurocientistas também correm o mesmo perigo, ao insistirem em que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social.

Para finalizar, descrevo uma reflexão de Damásio:

[...] a compreensão cabal da mente humana requer a adoção de uma perspectiva do organismo; que não só a mente tem de passar de um cogitumnão físico para o domínio do tecido biológico, como deve ser também relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um meio ambiente físico e social.

 

REFERÊNCIAS

DAMÁSIO, Antônio R. O Erro de Descarte: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

MARTINS, João Batista. Vygotsky e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

DESCARTE, René. Discurso do Método.São Paulo: Nova Cultural: 1991.

PIAGET, Jean. A Formação dos Símbolos na Criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 1973.

OLIVEIRA, Martins Khol. Vygotsky: Alguns Equívocos na Interpretação de seu pensamento. São Paulo: Scipione, 1993.y

PAIN, Sara. A Função da Ignorância. As estruturas inconscientes do pensamento. Vol. 1. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

GERALDI, Ana Cristina; THIERS, Solange. (Orgs). Corpo e Afeto: reflexões em Ramain-Thiers. Rio de Janeiro: Wak. Ed.,2009. P. 21-25.