Literatura
Resta...
por: Rubem Alves
COMOVO-ME AO RECORDAR-ME DO POEMA DO
Vinícius “ O Haver”. É um poema crepuscular.
Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se
para trás e faz um inventário do que sobrou.
Fiquei com vontade de fazer algo parecido,
sabendo que não sou Vinícius, não sou poeta,
nada sei sobre métrica e rimas. E eu
começaria cada parágrafo com a mesma palavra
com que ele começou suas estrofes:
Resta...
Resta a luz do crepúsculo, essa mistura
dilacerante de beleza e tristeza. Antes que
ele comece ao fim do dia, o crepúsculo
começa na gente. O Miguelim menino já sentia
assim: “O tempo não cabia. De manhã já
era noite...” Assim eu me sinto, um ser
crepuscular. Um verso de Rilke me conta a
verdade sobre a vida: “Quem já foi assim
nos fascinou para que tivéssemos um ar de
despedida em tudo o que fazemos? ” .
Restam os amigos. Quando tudo está perdido,
os amigos permanecem. Lembro-me da antiga
canção “You got a friend”; “Se você está
triste, no fundo do abismo e tudo está dando
errado, precisando de alguém que o ajude –
feche os olhos e pense em mim. Logo logo
estarei ao seu lado para iluminar a noite
escura. Basta que você chame o meu nome....
Você sabe que eu virei correndo pra ver você
de novo. Inverno, primavera, verão ou outono,
basta chamar que eu estarei ao seu lado.
Você tem um amigo...”. Eu tenho muitos
amigos que continuam a gostar de mim a
despeito de me conhecerem. E tenho também
muitos amigos que nunca vi.
Resta a experiência de um tempo que passa
cada vez mais depressa. “Tempus Fugit”.
“Quando se vê já são seis horas. Quando se
vê já é sexta-feira. Quando se vê já é
Natal. Quando se vê já terminou o ano.
Quando se vê não sabemos por onde andam
nossos amigos. Quando se vê já passaram
cinquenta anos...” (Mário Quintana)
Resta um amor por nossa Terra, nossa
namorada, tão maltratada por pessoas que não
a amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios,
nos mares, nas matas. Mora nos bichos
grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento,
nas nuvens, na chuva. Eu poderia ter sido um
jardineiro... Como não fui, tento fazer
jardinagem como educador, ensinando às
crianças, minhas amigas, o encanto pela
natureza.
Resta um Rubem por vezes áspero, com quem
luto permanentemente e que, frequentemente,
burlando a minha guarda, aflora no meu rosto
e nas minhas palavras, machucando aqueles
que amo.
Resta uma catedral vazia, a luz dos vitrais
colorido, o silêncio, o repicar dos sinos, o
canto gregoriano, a música de Bach, de
Beethoven, de Brahms, de Rachmaninoff, de
Fauré, de Ravel...
Resta ainda, nos pátios da catedral
arruinada, a música de Jobim, do Chico, de
Piazzola...
Resta uma pergunta para a qual não tenho
resposta. Perguntaram-me se acredito em
Deus. Respondi com versos do Chico:
“Saudade é o revés do parto. É arrumar o
quarto para o filho que já morreu”. Qual
é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto
para o filho que vai voltar ou a que arruma
o quarto para o filho que não vai voltar?
Sou um construtor de altares. É o meu jeito
de arrumar o quarto. Construo meus altares à
beira de um abismo escuro e silencioso. Eu
os construo com poesia e música. Os fogos
que neles acendo iluminam o meu rosto e me
aquecem. Mas o abismo permanece escuro e
silencioso.
Resta uma criança que mora nesse corpo de
velho e procura companheiros para brincar.
De que é que a alma tem sede? “De
qualquer coisa como tudo que foi a nossa
infância. Dos brinquedos mortos, das tias
idas. Essas coisas é que são a realidade,
embora já morressem. Não há império que
valha que por ele se parta uma boneca de
criança” (Bernardo Soares).
Resta um palhaço.... Na véspera de minha
volta ao Brasil, a jovem ruiva sardenta que
havia sido minha aluna entrou na minha sala
e me disse: “Sonhei com você. Sonhei que
você era um palhaço”. E sorriu. Tenho o
prazer em fazer os outros rirem com minhas
palhacices. O que escrevo, frequentemente, é
um espetáculo de circo. Faço malabarismos
com palavras. Pois a vida não é um circo?
Resta uma ternura por tudo o que é fraco, do
pássaro de asa quebrada ao velho trôpego e
surdo. Fui um adolescente fraco e
amedrontado. Apanhei sem reagir. Cresceu
então dentro de mim uma fera que dorme. Toda
vez que vejo uma pessoa humilde e indefesa
sendo humilhada por uma pessoa que se julga
grande coisas, a fera acorda e ruge. Tenho
medo dela.
Resta a minha fidelidade às minhas opiniões
que teimo em tornar públicas, o que me tem
valido muitas tristezas e sucessivos exílios.
Mas sei que minhas opiniões, todas as
opiniões, não passam de opiniões. Não são a
verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu
passado está cheio de certezas absolutas que
ruíram com os meus deuses. Todas as pessoas
que julgam possuidoras da verdade se tronam
inquisidoras. Por isso é preciso tolerância.
Resta uma tristeza de morrer. A vida é tão
bonita. Não é medo. É tristeza mesmo. Lembro-me
dos versos da Cecília, que sentia a mesma
coisa. “E fico a meditar se depois de
muito navegar a algum lugar enfim se chega.
O que será, talvez, até mais triste. Nem
barcas e nem gaivotas. Apenas sobre humanas
companhias. De longe o horizonte avisto,
aproximado e sem recurso. Que pena a vida
ser só isso...”.
Resta um medo de morrer – aquelas coisas que
vêm antes que a morte chegue. Acho que as
pessoas deveriam ter o direito de dizer, se
quisessem: “É hora de partir...”. E
partissem. Se Deus existe e se Deus é
bondade, não posso crer que Ele ou Ela nos
tenha condenado ao sofrimento, como última
frase da nossa sonata. A última frase deve
ser bela.
Resta quanto tempo? Não sei. O relógio da
vida não tem ponteiros. Só se ouve o
tique-taque... Só posso dizer: “Carper
Diem” – colha o dia como um morango
vermelho que cresce à beira do abismo. É o
que tento fazer.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Pimentas: para provocar
um incêndio, não é preciso fogo. 1. Ed. São
Paulo: Planeta, 2012. P. 126.
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