Vol. XIII: Vitrais 91 - jun 2020

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers

ISSN 2317-0719

VITRAIS
Vol. XIII: Vitrais 91 - jun 2020

 

Editorial

Notícias

Literatura

Rubens Alves

 

Artigos

Helenice Soares da Silva

Maria do Carmo Domingues Alves da Silva  

 

Reflexão

Joel Goldsmith

 

Como publicar seus artigos

Contato com Elisabete Cerqueira

elisabeteccerqueira@yahoo.com.br


Números anteriores

 

 

Vol. l:  

Vitrais 56 jun 2007

Vitrais 57 – fev 2008

Vitrais 58 – nov 2008  
Vol. ll:  

Vitrais 59 – mar 2009

Vitrais 60 – jul 2009

Vitrais 61 – dez 2009

 

Vol. lll:

 

Vitrais 62 mar 2010

Vitrais 63 - jul 2010

Vitrais 64 dez 2010

 

Vol. IV:  
Vitrais 65 mai 2011 Vitrais 66 - set 2011
Vol. V:  
Vitrais 67 mar 2012

Vitrais 68 - ago 2012

Vitrais 69 dez 2012  
Vol. VI:  
Vitrais 70 mar 2013 Vitrais 71 – jul 2013
Vitrais 72 – out 2013 Vitrais 73 – dez 2013
Vol. VII:  
Vitrais 74 – mai 2014 Vitrais 75 - ago 2014
Vitrais 76 – nov 2014  
Vol. VIII:  
Vitrais 77 – jun 2015

Vitrais 78 -  nov 2015

Vol. IX:  
Vitrais 79 – mar 2016 Vitrais 80 -  jun  2016
Vitrais 81   out  2016

Vitrais 82 -  dez  2016

Vol. X:  
Vitrais 83  abr  2017 Vitrais 84 -  set  2017
Vol. XI:  
Vitrais 85 – jan 2018 Vitrais 86 – mai 2018
Vitrais 87 – jul 2018 Vitrais 88 – dez 2018
Vol. XII:  
Vitrais 89 – abr 2019 Vitais 90 - ago 2019

 

                  

 

 

Literatura

 

Resta... 

por: Rubem Alves

 

 

COMOVO-ME AO RECORDAR-ME DO POEMA DO Vinícius “ O Haver”. É um poema crepuscular. Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se para trás e faz um inventário do que sobrou. Fiquei com vontade de fazer algo parecido, sabendo que não sou Vinícius, não sou poeta, nada sei sobre métrica e rimas. E eu começaria cada parágrafo com a mesma palavra com que ele começou suas estrofes:

Resta...

Resta a luz do crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que ele comece ao fim do dia, o crepúsculo começa na gente. O Miguelim menino já sentia assim: “O tempo não cabia. De manhã já era noite...”  Assim eu me sinto, um ser crepuscular. Um verso de Rilke me conta a verdade sobre a vida: “Quem já foi assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos? ” .

Restam os amigos. Quando tudo está perdido, os amigos permanecem. Lembro-me da antiga canção “You got a friend”; “Se você está triste, no fundo do abismo e tudo está dando errado, precisando de alguém que o ajude – feche os olhos e pense em mim. Logo logo estarei ao seu lado para iluminar a noite escura. Basta que você chame o meu nome.... Você sabe que eu virei correndo pra ver você de novo. Inverno, primavera, verão ou outono, basta chamar que eu estarei ao seu lado. Você tem um amigo...”. Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi.

Resta a experiência de um tempo que passa cada vez mais depressa. “Tempus Fugit”. “Quando se vê já são seis horas. Quando se vê já é sexta-feira. Quando se vê já é Natal. Quando se vê já terminou o ano. Quando se vê não sabemos por onde andam nossos amigos. Quando se vê já passaram cinquenta anos...” (Mário Quintana)

Resta um amor por nossa Terra, nossa namorada, tão maltratada por pessoas que não a amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios, nos mares, nas matas. Mora nos bichos grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento, nas nuvens, na chuva. Eu poderia ter sido um jardineiro... Como não fui, tento fazer jardinagem como educador, ensinando às crianças, minhas amigas, o encanto pela natureza.

Resta um Rubem por vezes áspero, com quem luto permanentemente e que, frequentemente, burlando a minha guarda, aflora no meu rosto e nas minhas palavras, machucando aqueles que amo.

Resta uma catedral vazia, a luz dos vitrais colorido, o silêncio, o repicar dos sinos, o canto gregoriano, a música de Bach, de Beethoven, de Brahms, de Rachmaninoff, de Fauré, de Ravel...

Resta ainda, nos pátios da catedral arruinada, a música de Jobim, do Chico, de Piazzola...

Resta uma pergunta para a qual não tenho resposta. Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu”. Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um construtor de altares. É o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso.

 Resta uma criança que mora nesse corpo de velho e procura companheiros para brincar. De que é que a alma tem sede? “De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias idas. Essas coisas é que são a realidade, embora já morressem. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança” (Bernardo Soares).

Resta um palhaço.... Na véspera de minha volta ao Brasil, a jovem ruiva sardenta que havia sido minha aluna entrou na minha sala e me disse: “Sonhei com você. Sonhei que você era um palhaço”. E sorriu. Tenho o prazer em fazer os outros rirem com minhas palhacices. O que escrevo, frequentemente, é um espetáculo de circo. Faço malabarismos com palavras. Pois a vida não é um circo?

Resta uma ternura por tudo o que é fraco, do pássaro de asa quebrada ao velho trôpego e surdo. Fui um adolescente fraco e amedrontado. Apanhei sem reagir.  Cresceu então dentro de mim uma fera que dorme. Toda vez que vejo uma pessoa humilde e indefesa sendo humilhada por uma pessoa que se julga grande coisas, a fera acorda e ruge. Tenho medo dela.

Resta a minha fidelidade às minhas opiniões que teimo em tornar públicas, o que me tem valido muitas tristezas e sucessivos exílios. Mas sei que minhas opiniões, todas as opiniões, não passam de opiniões. Não são a verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu passado está cheio de certezas absolutas que ruíram com os meus deuses. Todas as pessoas que julgam possuidoras da verdade se tronam inquisidoras. Por isso é preciso tolerância.

Resta uma tristeza de morrer. A vida é tão bonita. Não é medo. É tristeza mesmo. Lembro-me dos versos da Cecília, que sentia a mesma coisa. “E fico a meditar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega. O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas e nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias. De longe o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isso...”.

Resta um medo de morrer – aquelas coisas que vêm antes que a morte chegue. Acho que as pessoas deveriam ter o direito de dizer, se quisessem: “É hora de partir...”. E partissem. Se Deus existe e se Deus é bondade, não posso crer que Ele ou Ela nos tenha condenado ao sofrimento, como última frase da nossa sonata. A última frase deve ser bela.

Resta quanto tempo? Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o tique-taque... Só posso dizer: “Carper Diem” – colha o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo. É o que tento fazer.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo. 1. Ed. São Paulo: Planeta, 2012. P. 126.