1.
I
1. iNTRODUÇÃO
Este trabalho tem por
proposta analisar três vilãs de filmes
infantis: Úrsula, do filme A Pequena
Sereia;Karaba, do filme Kirikou e a
feiticeira; e a Madrasta, deBranca de
Neve e os Sete Anões, com o intuito de
refletir sobre os aspectos relativos à
feminilidade, sobretudo no que tange às
mulheres de meia-idade, que se encontram na
menopausa. Portanto, a análise focalizou-se
nas feiticeiras, bruxas e madrastasdestes
filmes e foi empreendida a partir da
perspectiva psicanalítica freudiana. Também
contribuíram para a análise em questão os
estudos de Bruno Bettelheim e de Mário e
Diana Lichtenstein Corso sobre os contos de
fadas, os quais abordam os grandes enigmas
da condição humana.
A primeira pergunta
empreendida pela análise foi: por que as
vilãs dos contos de fadas, entre feiticeiras,
bruxas e madrastas, são sempre mulheres na
meia idade? Ou, dito de outra forma: o que a
figura da mulher de meia idade tem, no
imaginário, que permite que ocupe comumente
o lugar da vilã? Assim, procurou-se revisar
a constituição subjetiva da mulher,
procurando compreender aspectos do
desenvolvimento sexual e da feminilidade,
sobretudo a de meia-idade, representados nas
personagens selecionadas para análise.
A importância desta
pesquisa justifica-se pela compreensão do
poder das histórias de conferir uma
corporeidade a determinados conflitos
vivenciados a nível inconsciente, o que
facilita a elaboração dos mesmos e a sua
assimilação e simbolização pelo ego. Assim,
a análise de personagens das histórias
vistas pelas crianças e pelos adultos
que se permitem tocar por essas histórias,
pode ser um instrumento importante de
compreensão da subjetividade humana.
2.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS
A análise aqui
descrita foi empreendida a partir da
pesquisa documental, em que os filmes
infantis escolhidos foram tomados como
documentos. Essa modalidade de pesquisa
caracteriza-se por já terem disponíveis à
análise o corpus materiais, ou seja, eles
não são produzidos pelo próprio pesquisador.
A pesquisa documental permite a investigação
de determinada problemática não em sua
interação imediata, mas de forma indireta,
por meio do estudo dos documentos que são
produzidos pelo homem e por isso revelam o
seu modo de ser, viver e compreender um fato
social.(SILVA, L.R.C, 2009, p. 4557)
As histórias que
perduraram ao longo da história da
humanidade, mesmo que distorcidas pelo tempo
ou pela mediocrização que muitas delas
sofreram, têm, na base de sua permanência,
algo de essencial que comunica às
subjetividades de seus leitores, ou, no caso
dos objetos escolhidos para análise, de seus
telespectadores. Se são buscadas e continuam
sendo por séculos a fio, é certamente porque
trazem algo de muito importante sobre a
subjetividade humana, apesar das distorções
empreendidas, no caso, por uma indústria
cinematográfica ávida por transformar em
entretenimento vazio e lucrativo tudo que
passa à sua frente. Sobre isso, Bettelheim
afirma:
A maioria das crianças agora conhece os
contos de fadas só em versões amesquinhadas
e simplificadas, que amortecem os
significados e roubam-nas de todo o
significado mais profundo – versões como as
dos filmes e espetáculos de TV, onde os
contos de fadas são transformados em
dimensão vazia. (BETTELHEIM, 2002, p. 23)
É importante esclarecer esse ponto.
Mesmo não podendo deixar de concordar com a
posição do autor de que muito do sentido
original se perde nas versões de filmes e
espetáculos de TV, sobretudo nas versões do
Walt Disney, carregadas pelo propósito de
divertir e distrair, foi feita, ainda assim,
a opção de analisar as histórias mostradas
justamente nessas versões. Tal escolha
responde ao objetivo de compreender um dos
aspectos da subjetividade em nossa cultura,
e, sendo essas as versões a que, comumente,
se tem mais acesso, acredita-se que o
trabalho com elas possibilite uma
compreensão mais próxima.
A análise foi
empreendida a partir de uma perspectiva
psicanalítica freudiana, e o critério para
escolha dos filmes foi a presença de
feiticeiras,que aparentam estar na
meia-idade, ocupando o lugar de vilãs, e
procurando, ao longo da trama, meios para
destruir ou depredar o que se interpretou
como representações da realização fálica dos
protagonistas. Uma vez que o foco da análise
foram as vilãs, os critérios para a
construção do corpus basearam-se nos
aspectos subjetivos vivenciados por essas
personagens, e não nos dosprotagonistas das
histórias.
3.
A DESTRUTIVIDADE TOMA
CORPO
Antes de aproximar o olhar dessas
vilãs eleitas como focodesta análise, é
importante esclarecer que se partiu, aqui,
do pressuposto de que, em uma história,
sobretudo estas que derivam de contos
clássicos, todas as personagens podem ser
compreendidas como elementos de uma mesma
psique. Assim, a vilã, posição ocupada pela
feiticeira, bruxa ou madrasta, é
compreendida como o elemento ameaçador e
destrutivo, constitutivo de qualquer psique,
independente do sexo e da idade.
Corso (2006) traz contribuições
importantes para a reflexão sobre as figuras
da mãe e da madrasta nos contos de fada,
vendo nelas representações das “várias mães”
com que a criança teria que lidar ao longo
do seu desenvolvimento: a primeira,
acolhedora, de quem seria necessário
desvincular-se, para “não ser cruelmente
forçados à separação, como João e Maria”. (BETTELHEIM,
2002, p. 11); a segunda, a encarnação da
maldade de que essa mãe precisa estar
investida, para que a separação possa ter
lugar. O desejo de partir ao mundo em busca
de novas fontes de satisfação, como fazem os
heróis e as heroínas nos contos de fadas, é
possibilitado pelo afrouxamento dos laços
com a mãe boa e carinhosa, facilitado pela
visão desta como má, despeitada e ameaçadora.
Ainda que consideremos essencial a
compreensão das madrastas e das bruxas como
representações dessa face malvada da mãe,
esta análise focou-se na compreensão dessas
vilãs como o aspecto destrutivo e ameaçador
da psique, que pode ser projetado nas
figuras parentais.
Chama a atenção o fato das mulheres
eleitas para ocupar esse lugar serem
comumente mulheres de meia idade, que
invejam e lutam para destruir exatamente
aquilo que representa o que Freud considera
como os substitutos fálicos da jovem mulher,
assumidos ao aceitarem a condição de
castração - a beleza e os atributos signos
da sedução e a capacidade de gerar filhos –
justamente quando elas os estão perdendo por
conta da meia-idade.
O DESENVOLVIMENTO SEXUAL DA MULHER E A
MEIA-IDADE
A
escolha de mulheres de meia-idade para
representar a encarnação da maldade e do
terror demanda uma compreensão do lugar que
essa mulher ocupa em nosso imaginário. Para
empreender essa compreensão a partir de uma
perspectiva psicanalítica freudiana, faz-se
igualmente necessário verificar o que diz
essa teoria sobre o desenvolvimento sexual
feminino.
Assim como o menino, a menina tem a
mãe como o seu primeiro objeto de desejo. É
essa constatação que leva
Nasio(1997, p. 18) a afirmar que
(...) o papel da mãe, ao contrário da
opinião comum, é muito mais importante na
vida sexual da menina que o do pai; a mãe
está na origem e no término do complexo de
castração feminino.
O que
leva a menina a renunciar a esse primeiro
objeto de desejo e apaixonar-se pelo pai é a
descoberta de sua própria castração, como
uma realidade, bem como a constatação de que
a mãe, igualmente castrada, não poderá
oferecer-lhe o falo desejado. A menina volta-se,
então, para o pai. Portanto, no caso da
menina, a descoberta da castração
possibilita a entrada no Édipo, e não a
saída, como ocorre no menino. A saída desse
conflito tem, ainda segundo Freud (apud
LAZNIK, 2003, p. 72) “três saídas possíveis:
a inibição sexual ou a neurose, o complexo
de masculinidade, mas também a feminilidade
normal. ” Esta última saída torna-se
possível quando a menina aceita os
substitutos que lhe são oferecidos para o
falo que não tem: a possibilidade de seduzir
os homens, tornando-se objeto de desejo
destes, e a possibilidade de ter filhos.
Assim, em um desenvolvimento saudável, a
mulher renuncia ao pai e ao desejo de
possuir um falo, em troca dos dois
substitutos que a natureza (ou a nossa
cultura que, durante muitos e muitos séculos,
limitou a esses dois aspectos o poder da
mulher?) lhe possibilita. Sairá do Édipo
pronta para desempenhar os papeis de objeto
de desejo e de mãe, e esses dois papeis a
reparariam do rancor de não ser portadora do
pênis até.... que atinja a meia idade e
sofra os seus efeitos.
Nesse
momento, a mulher teria arrancada a
possibilidade de gerar filhos, e ela
perderia, igualmente, uma cota do seu poder
de sedução. Além de não poder mais
gerarrebentos, essa fase, coincide,
comumente, com a saída dos filhos de casa, o
que contribuiria para esvaziar o papel de
mãe que sustentara a falicidade dessa mulher
até então. Sobre isso, Laznik(2003, p. 3)
afirma:
Parece-nos possível afirmar que
uma mulher perde então as duas
promessas que lhe haviam sido
feitas quando de sua entrada no
Édipo e que lhe haviam permitido
aceitar ser uma mulher: a de um
filho em substituição ao falo e
a de uma certa forma de
falicidade de seu corpo inteiro.
Ela tem que realizar o duplo
luto de não mais poder pretender
nem a falicidade do materno nem
a de sua beleza. |
|
Assim, a
mulher de meia-idade, perdendo os seus
substitutos fálicos, teria, enfim, que
vivenciar a castração crua, visão que
desperta horror tanto em homens quanto em
mulheres. Ainda segundo Laznik (2003, p.
65), “A capacidade de procriar faz obstáculo
à morte; uma vez esta capacidade perdida,
nada interrompe mais, no plano fantasmático,
a fuga do tempo em direção à aniquilação
final”,
A BRUXA CASTRADA E INVEJOSA
Por
representar a visão crua da castração é que
a mulher da meia idade pode sugerir
facilmente uma associação com a maldade, o
instinto destrutivo, a ameaça.
(...) Freud nos lembra que a convicção da
ausência do pênis na mulher pode levar a uma
grande depreciação, até mesmo ao horror da
mulher: ‘Ferenczi recentemente fez uma
relação precisa entre o símbolo mitológico
do horror, a cabeça da medusa, e a impressão
produzida pelo órgão feminino desprovido de
pênis”. (LAZNIK, 2003, p. 64)
Nesse
sentido, é remarcável a semelhança entre os
cabelos de Karaba, que está sendo aqui
interpretada como a mulher privada de
substitutos fálicos, e a representação da
cabeça da medusa.
A
associação com a morte é perceptível desde a
observação dos lugares onde vivem cada uma
das feiticeiras, todos dominados pelos tons
sóbrios de cinza ou marrom, e pontuados por
símbolos de horror e morte, mais ou menos
sutis, como os seres cujas formas fazem
pensar em vermes, na morada de Úrsula, ou a
caveira no palácio da rainha de Branca de
Neve.
Ferida em seu orgulho narcísico, a mulher da
meia idade, revivendo a castração, pode
voltar contra a mais jovem seus impulsos
destrutivos.Na história da “Pequena Sereia”,
Úrsula, feia, solitária e sem filhos, dirige
seu ódioexatamente à filha preferida do rei
Tritão, ou seja, aquela cujos atributos mais
encantam o olhar masculino. Os ataques da
feiticeira buscam atingir justamente a
possibilidade de realização fálica de Ariel:
não pode suportar que esta se case nem se
transforme em humana, metamorfose que pode
ser compreendida como o despertar para a
vida sexual. Para impedi-lo, lançará mão de
todas as artimanhas, inclusive o roubo da
voz da protagonista
Embora Úrsula lance contra Ariel todo o seu
potencial destrutivo, é Tritão que ela
deseja atingire, em vários momentos, ela
esclarece os seus intentos, como quando diz
aos seus peixes-guardiões: “Fiquem de olho
naquela garotinha. Ela pode ser a chave da
queda de Tritão”, ou, ainda, quando, ao
conseguir capturar Ariel, e arrastá-la na
direção de sua morada, no fundo do mar,
diz-lhe: “Pobre princesinha, não é você que
eu quero. Eu quero um peixe bem maior”. O
ódio de Úrsula, apesar de ser lançado contra
a possibilidade de realização fálica da
pequena sereia, tem por alvo central o rei
dos mares, o que marca a inveja do pênis
(FREUD, 1905) como estando na origem dos
seus conflitos e da sua crueldade.
Sabe-se que a bruxa dos mares se sente
injustiçada por ter sido expulsa do palácio
do rei Tritão. Não sabemos qual era o papel
de Úrsula quando morava no palácio, nem
tampouco o que ocasionou a sua expulsão, mas
sabemos que ela guarda uma mágoa não curada
por esse episódio, sentindo-se miserável e
excluída da fartura de que gozam os que
fazem parte do reino. Pode-se compreender
esse estado de miserabilidade como uma
representação do luto que vive a mulher da
meia-idade ao ver-se privada dos seus
substitutos fálicos. Como coloca LAZNIK
(2003, p. 83)
(...) há uma retomada do complexo de
castração neste momento da vida de uma
mulher. Isto é interpretado da seguinte
forma: ela se acha novamente confrontada com
a humilhação narcísica produzida pela
confrontação entre o clitóris e o pênis.
A autora
esclarece, indo adiante em suas
reflexões, que esse falo não é
um órgão real, mas um
significante. “O objeto da
castração é imaginário, o que é
visado é o falo enquanto
imaginário e não enquanto órgão
real”. (LAZNIK, 2003, p. 85).
Podemos compreender que Úrsula
revivência essa humilhação em
decorrência da retomada da
castração diante da beleza de
Ariel, dona da linda
voz que seduz o
príncipe, ou diante
|
|
da coroa
que confere a Tritão um poder soberano nos
oceanos. Aqui, podemos compreender como
significantes fálicosa beleza e a voz da
pequena sereia, bem como a coroa que confere
poder ao rei, e que faz a bruxa aumentar de
tamanho ao colocar na cabeça, indicando o
empoderamento que o objeto lhe confere.
Como a mulher de meia idade, aqui
representada na monstruosa figura de Úrsula,
vê-se privadados atributos que lhe
permitiram a saída do Édipo em direção à
feminilidade, ela pode reviver esse momento
de liquidação do Édipo como uma experiência
bastante dolorosa. Na cena em que Ariel
visita a bruxa para as negociações do
contrato, há um momento em que esta última
retoca o batom e ajeita os cabelos. A
utilização de adornos tipicamente femininos
cria um contraste irônico com a feiura de
Úrsula, o que parece, ao invés de enfeitá-la
ou amenizá-la, torna-a ainda mais medonha.
Também a madrasta da Branca de neve parece
compreender a beleza da mulher mais jovem
como uma potência fálica que está ameaçada
de perder. Diferente de Úrsula, a madrasta
de Branca de Neve não é feia. Ao contrário,
é a mais bela do reino até que a beleza
feminina da protagonista comece a despertar.
No entanto, a insegurança e o medo de perder
seus atributos fálicos lhe conferem a
necessidade de ser única, e não suporta a
possibilidade de que outra mulher possa ser
mais capaz do que ela de conquistar os
olhares admiradores.
|
(...) [nos
contos de fadas]a beleza era
sempre um bom sinal, e a feiura,
o signo dos maus. Nisso, a
madrasta de Branca de Neve é uma
exceção, mas convive com uma
eterna insegurança a respeito de
seus atrativos, não lhe bastava
ser bela, sua formosura
tinha de ser insuperável. (CORSO,
2006,p. 79)
|
O apego da bela madrasta à própria
imagem e o desespero ao vê-la ameaçada têm
como elemento constitutivo a relação
simbiótica que ela mantém com seu espelho,
que pode ser compreendido como a
representação do olhar masculino.
A verdade é que a beleza só existe para um
olhar, sem esse reconhecimento ela não faz
sentido, por isso o espelho é o complemento
necessário da imagem. O olhar no espelho
traz sempre uma pergunta e uma resposta.
Cada um o contempla tentando se ver de fora,
buscando decifrar o impacto de sua imagem
nos olhos dos outros, interrogando como
somos vistos. (CORSO, 2006, p. 80)
O insuportável para a madrasta é descobrir
que uma mulher mais jovem pode desbancá-la,
evidenciando a deterioração da sua beleza.
Essa constatação a leva a
cometeratos extremamente cruéis, lançando
mão de feitiços como substitutos para a
falicidade que se vê perdendo. No primeiro
momento, a crueldade da rainha é destilada
covardemente, por meio do caçador, cuja
bondade visível a madrasta tenta perverter.
Ao perceber que seu intento foi frustrado,
ela toma a tarefa com as próprias mãos,
disfarçando-se de bruxa e oferecendo uma
maçã envenenada à protagonista. Segundo
Corso (2006, p. 227), “em muitos mitos e
contos de fadas, a maçã representa o amor e
o sexo nos seus aspectos benevolentes e
perigosos”. Ciente do poder do desejo sexual
e de sedução, a rainha usa-os como arma para
destruir Branca de Neve, como se soubesse
que a perspectiva de realização sexual e de
sedução seria tão irresistível para a moça
quanto o era para ela mesma. A narrativa
mostra que a rainha não estava enganada, uma
vez que a protagonista aceita, sem
pestanejar, a maçã oferecida.
A feiticeira de
Kirikou é outra exceção a essa associação da
beleza a algo bom. Sua beleza exerce um
importante poder sobre os homens, embora os
habitantes da aldeia onde o menino reside
não sejam capazes de admiti-lo
conscientemente. Horror e encanto se
misturam diante dessa bela feiticeira que,
segundo todos acreditam na Aldeia do pequeno
Kirikou, devorou todos os homens da
comunidade, depois de tentativas frustradas
destes, de enfrentá-la. Kirikou, ainda muito
pequeno, não podia desfazer-se da ideia de,
por sua vez, encarar a feiticeira. A mãe,
com a voz embalada de tristeza, diz-lhe: “Tu
és como todos os homens, tu queres a
qualquer preço olhar para Karaba”. A
motivação dúbia da força irresistível que
atraía os homens para a feiticeira fica
clara quando Kirikou, depois do primeiro
encontro com ela, responde, ao ser
perguntado sobre o mesmo pelos habitantes
terrificados da sua aldeia: “Ela é linda!
”.
Essas
histórias seriam, então, também um tratado
sobre a relação de homens e mulheres com a
feminilidade: seu preço, seu fascínio, a
magia magnética de sua beleza, seus poderes
e perigos. (CORSO, 2006, p. 76)
A insegurança
resvalada em inveja e crueldade da madrasta
de Branca de Neve e de Karaba falam do
pânico vivido pela mulher da meia-idade
diante da ameaça de perda de seus atributos
femininos.Quando essa perda não pode mais
ser negada, a mulher, revivendo a castração,
precisaria lançar mão de outras artimanhas
para garantir alguma cota do poder perdido.
Os atrativos femininos seriam uma arma
privilegiada de conquista de posição para
uma mulher, como o envelhecimento a privaria
destes, a mulher necessitaria recorrer a
outros feitiços, os da bruxa. Um homem pode
amar apaixonadamente uma princesa adormecida,
aprisionada e passiva, mas quando a mulher
desperta e perde a beleza inocente da
juventude, resta a visão da sua verdadeira
alma: poderosa, perigosa e ardilosa. Vemos
então que, sob uma capa de elogio, essas
histórias contêm um aviso de que todo
cuidado é pouco com mães, sogras ou todo o
tipo de mulher adulta. (CORSO, 2006, p. 76)
A mulher como mascarada, proposta por
Rivière e reinterpretada por Lacan (apud
GRANT,1998), se presentifica mais duramente
nessas feiticeiras que se utilizam dos
poderes mágicos para encobrir a fragilidade
da própria castração, e o vazio que ela
encerra, o vácuo, a morte.Conforme afirma
GRANT (1998),
“Neste sentido, a máscara da feminilidade,
seus adornos, teria uma função de tela para
recobrir aquilo que está para além do gozo
fálico- a vacuidade, o nada”.
O enredo de Kirikou e a feiticeira traz, em
inúmeras cenas, a tensão entre o movimento
da bruxa e dos moradores da aldeia que se
esforçam por manter os necessários
mascaramentos, e um movimento de desvelo
dessas máscaras, que parece procurar revelar
a fragilidade nua e assustadora de Karaba. A
mãe de Kirikou, tentando explicar-lhe por
que a feiticeira impede a chegada dos
habitantes às montanhas onde mora o seu avô,
o sábio da montanha, afirma: “O sábio da
montanha explica as coisas como elas são, e
Karaba, a feiticeira, precisa que
acreditemos em ilusões”. Curiosamente,
quando o protagonista, depois de longas
aventuras, consegue encontrar o sábio, as
explicações deste vêm justamente revelar a
fragilidade de Karaba por trás do véu de
crueldade de que esta se serve e ao qual se
agarram os habitantes da aldeia. Quando
Kirikou pergunta ao seu avô por que Karaba
devora os homens, ele explica-lhe: “Isso
é o que as pessoas da aldeia acreditam, e
Karaba não desmentiu. Na verdade, ela não
devora os homens. Ela prefere os inhames com
um molho bem apimentado, como você e eu”.
O velho explica que a bela feiticeira
carrega um espinho em suas costas, e que a
dor constante que ela sente faz com que seja
tão cruel. O espinho pode ser compreendido
como um símbolo da inveja do pênis
que aprisiona a feiticeira, e é esse
sentimento que faz com que capture os homens
da aldeia, mantendo-os prisioneiros em seu
castelo. A feiticeira também lança um
feitiço que acaba com a fertilidade da terra
da aldeia, que também pode ser compreendida
como uma potência fálica do feminino
invejada, visto que implica em gerar frutos.
OS DESFECHOS
Para compreender o final trágico de Úrsula e
da bela madrasta de Branca de Neve, é
necessário retomar a afirmação que serviu
como ponto de partida para esta análise, de
que se consideraram todas as personagens de
um conto como representações dos elementos
de uma mesma psique. Assim, uma vez que se
compreendem essas personagens como
representantes do elemento destrutivo e
ameaçador que espreita a subjetividade de
todos, é compreensível o final trágico que
lhes sucede, pois é preciso, ao menos nessas
versões contemporâneas, emitir a mensagem de
que a resolução dos conflitos com esses
elementos psíquicos é possível, de que a
força destrutiva pode ser controlada. Para
que essa mensagem seja passada sem
ambivalências, é providencial a morte
trágica das feiticeiras.
Apenas o destino de Karaba foge a essa
tragicidade típica das vilãs de histórias
infantis, e parece trazer uma mensagem de
possibilidade de superação do complexo de
castração. Superada a mágoa e ahumilhação
por não ter o pênis, revividas na meia-idade,
a mulher pode solucionar definitivamente o
Édipo; foi obrigada a renunciar aos
substitutos fálicos, podendo, portanto, se
permitir a retirada do doloroso espinho, ser
plenamente mulher, sem falos substitutos e
sem poderes mágicos (Karaba perde, junto com
o espinho, todos os poderes que tinha como
feiticeira). Pode, então, aceitar o seu
jovem companheiro, com toda a sua potência
viril, em um momento que há um aumento de
sua libido e sem mais precisar do anteparo
do materno, como um homem inteiro, capaz “de
fazê-la gozar vaginalmente” (LAZNIK,
2003, p. 61). É assim que, retirado o
espinho, Karaba abandona a condição de
feiticeira e assume plenamente a
condição de mulher, sem máscaras, e Kirikou
cresce, e se transforma em um belo príncipe,
pronto para esposá-la. Kirikou conquista a
mão de Karaba com a disposição de encará-la,
com a coragem de assumir o encanto que ela
despertava, e, depois, com a coragem de
permanecer ao seu lado mesmo na ausência dos
seus poderes.
Karaba representa a possibilidade de
superação bem-sucedida dos conflitos
vivenciados na meia-idade. Vista no conjunto
com os demais elementos da história, parece
trazer a mensagem de possibilidade de
integração das forças destrutivas e
ameaçadoras ao restante da psique.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
análise aqui empreendida reforça a ideia da
contribuição dos estudos sobre filmes
infantis para a compreensão de aspectos da
subjetividade humana. No caso específico
desta pesquisa, espera-se ter contribuído
para a elucidação de aspectos ligados à
sexualidade feminina, em termos dos impasses
que a meia-idade traz para o sujeito
feminino, bem como as repercussões em seus
companheiros.
É importante, contudo, considerar que não se
teve, nem se poderia, a pretensão de
encontrar uma interpretação que encerre uma
verdade absoluta sobre o objeto estudado.
Como afirma ROSE (2005, p. 344),
Nunca haverá uma análise que capte uma
verdade única do texto. (...) diferentes
orientações teóricas levarão a diferentes
escolhas sobre como selecionar para
transcrição. (...).
É
importante lembrar, aqui, que as bases
teóricas sobre as quais se apoiou esta
análise – psicanálise freudiana - foram
construídas em um contexto sociocultural
específico e tais teorias foram úteis e
produtivas para a leitura dos contextos que
elas se propuseram a decifrar. Assim, a
construção de uma teoria que toma como
substitutos fálicos da mulher, a
maternidade e o poder de sedução, só foi
possível por situar-se em um momento social
em que, de fato, a realização feminina era
restrita a esses dois aspectos. Os filmes
aqui analisados, apesar de produzidos em um
momento posterior, são frutos dessa mesma
realidade, que é, ao mesmo tempo, retratada
e reforçada por esses documentos. Isso é
ainda mais verdadeiro se considerarmos que
as histórias em que eles se inspiram são
ainda mais antigas e mais imbrincadas em tal
realidade. Por isso, a perspectiva teórica
aqui adotada continua sendo uma boa lente
para a leitura dos aspectos enfocados por
esta pesquisa.
Entretanto, seguindo o próprio exemplo que o
pai da psicanálise nos deixou, no sentido de
sempre revisar os seus conceitos conforme a
clínica nos aponta, o corpo teórico não está
fechado, mas passando por constantes
mudanças a partir dos novos desafios e
impasses que a contemporaneidade nos impõe.
Lasnik (2003), baseada em Lacan, aponta para
uma divisão do sujeito feminino, colocando
que a mulher para continuar a ser mulher
após a meia-idade, fazendo o duplo luto dos
seus atributos fálicos, precisa se apoiar em
elementos da insígnia paterna, tais como,
investir em interesse sociais e na
capacidade de sublimar. Portanto, podemos, a
partir destes elementos, contemplar os novos
papeis que a mulher pode exercer na
contemporaneidade, sem ficar,
necessariamente, presa a sua capacidade de
sedução e de gerar filhos.
Para finalizar, novas realidades foram
construídas desde a produção da perspectiva
teórica aqui adotada, bem como das raízes
sociais e ideológicas dos documentos
analisados a partir dela. Já há algumas
décadas, em alguns contextos, as
possibilidades de realização fálica feminina
se ampliaram, e essas mudanças demandam
tanto a releitura das teorias, quanto novas
pesquisas referentes às produções sociais
contemporâneas, sobretudo no sentindo de
analisar como essas novas realidades estão
sendo retratadas.
Como o aprofundamento dessas considerações
fugiria ao escopo deste trabalho, resta
apontá-lo como sugestão para pesquisas
posteriores.
REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos Contos
de Fadas. 16ª edição. Ed. Paz e Terra:
2002
CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no Divã.
Ed. Artmed, Porto Alegre, 2006
FREUD, S. Um caso de histeria: Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade.
Vol VII, 1901-1905. Disponível em:
http://portugues.free-ebooks.net/ebook/Um-Caso-de-Histeria-Tres-Ensaios-sobre-a-teoria-da-sexualidade-e-outros-trabalhos/pdf/view.
Data do acesso: 02.07.2013.
GRANT, Walkíria Helena.
A mascarada e a feminilidade.
Psicologia USP, São Paulo, V. 9, n. 2, 1998.
Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65641998000200010&script=sci_arttext.
Data de acesso: 04.07.2013.
LAZNIK, M.C.O Complexo de Jocasta: A
Feminilidade e a Sexualidade Sob o Prisma da
Meia-idade. Ed. Companhia de
Freud, 2003
NASIO, J.D. Lições sobre os 7 Conceitos
Cruciais da Psicanálise. Tradução: Vera
Ribeiro. Ed. Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro, 1997.
ROSE, D. (2008). Análise de imagens em
movimento.
In: Bauer, M.W. & Gaskell, G. (2008).
Pesquisa
qualitativa com texto, imagem e som
– Um manual prático. 7 ed.
Petrópolis: Vozes.
SILVA, L.[et al] Pesquisa Documental:
alternativa investigativa na formação
docente. In:Congresso Nacional de
Educação, 4, 2009, Paraná. 4554 -4566.
http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/3124_1712.pdf.
Data de acesso: 02.07.2013
VIDEOGRAFIAS
OCELET, Michel. Kirikou e a feiticeira.
[Filme]. Produção de Didier Brunner, direção
de Michel Ocelet. Bélgica, França e
Luxemburgo. Les amateurs, Odec Kid Cartoons,
Trans Europe Films e Studio O, 1998.
DVD [Título original: Kirikou et la sorcière],
74 min, col., son.
DISNEY, Walt [et al].
Branca de Neve e os sete anões [Filme]. Produção de
Walt Disney. Estados Unidos.
1937. DVD [Snow White and the seven dwarfs],
83 min, col., son.
CLEMENTS, R; MUSKER, J. A pequena sereia
[Filme]. Produção de John Musker e Howard
Ashman, direção de Jonh Musker e Ron
Clements. Estados Unidos, 1989. DVD [Título
original: The little mermaid], 85 min, col.,
son.
|