Vol. X: Vitrais 84 - det 2017

A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers - ISSN 2317-0719

 

VITRAIS
Vol. X: Vitrais 84

                        set 2017

 

Editorial

Notícias

Literatura

Eckhart Tolle


Artigos

Marina Andrade e Maria de

  Nazaré Fonsêca

Irvin Yalom

 

Reflexão

Sigmund Freud

 

 

 


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Artigo 1

Bruxas e madrastas: A ameaça da castração feminina personificada

Marina Andrade e Maria de Nazaré Fonsêca


BRUXAS E MADRASTAS: A AMEAÇA DA

CASTRAÇÃO FEMININA PERSONIFICADA

Marina Andrade

Graduada em Letras pela UFPE

Graduanda do 9º Período de Psicologia pela FAFIRE

 

Maria de Nazaré Fonsêca

Graduada em Medicina Veterinária pela UFRPE

Graduada em Licenciatura em Ciências Agropecuárias pela UFRPE

Especialização em Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers

Graduanda do 9º. Período de Psicologia pela FAFIRE

 

COLEÇÃO
RAMAIN-THIERS

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Ramain-Thiers: a vida, os contornos
A re-significação para o re (nascer)
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Volume II
A potencialidade de cada um:
Do complexo de édipo a terapia de casais
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Volume III
A dimensão afetiva do corpo:
Uma leitura em Ramain-Thiers

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Volume IV
As interfaces de Ramain-Thiers

 

 

RESUMO 

Este trabalho tem por proposta realizar uma análise documental, à luz da teoria psicanalítica freudiana, de três feiticeiras de filmes infantis, a saber, Úrsula do filme A Pequena Sereia, Karabado filme Kirikou e a Feiticeira, e aMadrasta do filme Branca de Neve e os Sete Anões, buscando compreender a representação psíquica de aspectos da feminilidade em mulheres de meia idade. Busca compreender, sob essa perspectiva, os impactos na subjetividade dessas mulheres que se encontram na meia-idade, que permitem que ocupem, comumente, o lugar da vilã, lançando castigos e feitiços as mais jovens protagonistas, em decorrência das perdas da falicidade feminina vivenciada nesse período,em termos de sua diminuição da capacidade de sedução e de sua incapacidade de gerar filhos, o que faz com que encarnem facilmente a representação da castração.

Palavras-chave: Meia-idade.Feminilidade.Feiticeiras. Filmes infantis.

ABSTRACT

This work has proposal to conduct a documental analysis, in the light of Freudian psychoanalytic theory, three witches of children's movies, namely, Ursula of the film the Little Mermaid, That the film Kirikou and the sorceress, and the Stepmother of the film snow white and the seven dwarfs, seeking to understand the mental representation of aspects of femininity in middle-aged women.
Tries to understand, from this perspective, the impacts on subjectivity of those women who are middle-aged, that allow secure, commonly, the place of the villain by throwing punishments and spells the younger protagonists, due to the loss of generous feminine experienced during this period, in terms of its decreasing the capacity of seduction and of their inability to bear children, which causes embodied the representation easily castration.
Keywords: Middle age. Femininity. Sorceresses. Children's movies.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1.    I
1. iNTRODUÇÃO
 

Este trabalho tem por proposta analisar três vilãs de filmes infantis: Úrsula, do filme A Pequena Sereia;Karaba, do filme Kirikou e a feiticeira; e a Madrasta, deBranca de Neve e os Sete Anões, com o intuito de refletir sobre os aspectos relativos à feminilidade, sobretudo no que tange às mulheres de meia-idade, que se encontram na menopausa. Portanto, a análise focalizou-se nas feiticeiras, bruxas e madrastasdestes filmes e foi empreendida a partir da perspectiva psicanalítica freudiana. Também contribuíram para a análise em questão os estudos de Bruno Bettelheim e de Mário e Diana Lichtenstein Corso sobre os contos de fadas, os quais abordam os grandes enigmas da condição humana.

A primeira pergunta empreendida pela análise foi: por que as vilãs dos contos de fadas, entre feiticeiras, bruxas e madrastas, são sempre mulheres na meia idade? Ou, dito de outra forma: o que a figura da mulher de meia idade tem, no imaginário, que permite que ocupe comumente o lugar da vilã? Assim, procurou-se revisar a constituição subjetiva da mulher, procurando compreender aspectos do desenvolvimento sexual e da feminilidade, sobretudo a de meia-idade, representados nas personagens selecionadas para análise.

A importância desta pesquisa justifica-se pela compreensão do poder das histórias de conferir uma corporeidade a determinados conflitos vivenciados a nível inconsciente, o que facilita a elaboração dos mesmos e a sua assimilação e simbolização pelo ego. Assim, a análise de personagens das histórias vistas pelas crianças e pelos adultos que se permitem tocar por essas histórias, pode ser um instrumento importante de compreensão da subjetividade humana.

2.  CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS 

A análise aqui descrita foi empreendida a partir da pesquisa documental, em que os filmes infantis escolhidos foram tomados como documentos. Essa modalidade de pesquisa caracteriza-se por já terem disponíveis à análise o corpus materiais, ou seja, eles não são produzidos pelo próprio pesquisador.  

A pesquisa documental permite a investigação de determinada problemática não em sua interação imediata, mas de forma indireta, por meio do estudo dos documentos que são produzidos pelo homem e por isso revelam o seu modo de ser, viver e compreender um fato social.(SILVA, L.R.C, 2009, p. 4557) 

As histórias que perduraram ao longo da história da humanidade, mesmo que distorcidas pelo tempo ou pela mediocrização que muitas delas sofreram, têm, na base de sua permanência, algo de essencial que comunica às subjetividades de seus leitores, ou, no caso dos objetos escolhidos para análise, de seus telespectadores. Se são buscadas e continuam sendo por séculos a fio, é certamente porque trazem algo de muito importante sobre a subjetividade humana, apesar das distorções empreendidas, no caso, por uma indústria cinematográfica ávida por transformar em entretenimento vazio e lucrativo tudo que passa à sua frente. Sobre isso, Bettelheim afirma:  

A maioria das crianças agora conhece os contos de fadas só em versões amesquinhadas e simplificadas, que amortecem os significados e roubam-nas de todo o significado mais profundo – versões como as dos filmes e espetáculos de TV, onde os contos de fadas são transformados em dimensão vazia. (BETTELHEIM, 2002, p. 23) 

É importante esclarecer esse ponto. Mesmo não podendo deixar de concordar com a posição do autor de que muito do sentido original se perde nas versões de filmes e espetáculos de TV, sobretudo nas versões do Walt Disney, carregadas pelo propósito de divertir e distrair, foi feita, ainda assim, a opção de analisar as histórias mostradas justamente nessas versões. Tal escolha responde ao objetivo de compreender um dos aspectos da subjetividade em nossa cultura, e, sendo essas as versões a que, comumente, se tem mais acesso, acredita-se que o trabalho com elas possibilite uma compreensão mais próxima.

A análise foi empreendida a partir de uma perspectiva psicanalítica freudiana, e o critério para escolha dos filmes foi a presença de feiticeiras,que aparentam estar na meia-idade, ocupando o lugar de vilãs, e procurando, ao longo da trama, meios para destruir ou depredar o que se interpretou como representações da realização fálica dos protagonistas. Uma vez que o foco da análise foram as vilãs, os critérios para a construção do corpus basearam-se nos aspectos subjetivos vivenciados por essas personagens, e não nos dosprotagonistas das histórias.

3. A DESTRUTIVIDADE TOMA CORPO

Antes de aproximar o olhar dessas vilãs eleitas como focodesta análise, é importante esclarecer que se partiu, aqui, do pressuposto de que, em uma história, sobretudo estas que derivam de contos clássicos, todas as personagens podem ser compreendidas como elementos de uma mesma psique. Assim, a vilã, posição ocupada pela feiticeira, bruxa ou madrasta, é compreendida como o elemento ameaçador e destrutivo, constitutivo de qualquer psique, independente do sexo e da idade.

Corso (2006) traz contribuições importantes para a reflexão sobre as figuras da mãe e da madrasta nos contos de fada, vendo nelas representações das “várias mães” com que a criança teria que lidar ao longo do seu desenvolvimento: a primeira, acolhedora, de quem seria necessário desvincular-se, para “não ser cruelmente forçados à separação, como João e Maria”. (BETTELHEIM, 2002, p. 11); a segunda, a encarnação da maldade de que essa mãe precisa estar investida, para que a separação possa ter lugar. O desejo de partir ao mundo em busca de novas fontes de satisfação, como fazem os heróis e as heroínas nos contos de fadas, é possibilitado pelo afrouxamento dos laços com a mãe boa e carinhosa, facilitado pela visão desta como má, despeitada e ameaçadora.

Ainda que consideremos essencial a compreensão das madrastas e das bruxas como representações dessa face malvada da mãe, esta análise focou-se na compreensão dessas vilãs como o aspecto destrutivo e ameaçador da psique, que pode ser projetado nas figuras parentais.

 Chama a atenção o fato das mulheres eleitas para ocupar esse lugar serem comumente mulheres de meia idade, que invejam e lutam para destruir exatamente aquilo que representa o que Freud considera como os substitutos fálicos da jovem mulher, assumidos ao aceitarem a condição de castração - a beleza e os atributos signos da sedução e a capacidade de gerar filhos – justamente quando elas os estão perdendo por conta da meia-idade.

O DESENVOLVIMENTO SEXUAL DA MULHER E A MEIA-IDADE

A escolha de mulheres de meia-idade para representar a encarnação da maldade e do terror demanda uma compreensão do lugar que essa mulher ocupa em nosso imaginário. Para empreender essa compreensão a partir de uma perspectiva psicanalítica freudiana, faz-se igualmente necessário verificar o que diz essa teoria sobre o desenvolvimento sexual feminino.

Assim como o menino, a menina tem a mãe como o seu primeiro objeto de desejo. É essa constatação que leva Nasio(1997, p. 18) a afirmar que  

(...) o papel da mãe, ao contrário da opinião comum, é muito mais importante na vida sexual da menina que o do pai; a mãe está na origem e no término do complexo de castração feminino. 

O que leva a menina a renunciar a esse primeiro objeto de desejo e apaixonar-se pelo pai é a descoberta de sua própria castração, como uma realidade, bem como a constatação de que a mãe, igualmente castrada, não poderá oferecer-lhe o falo desejado. A menina volta-se, então, para o pai. Portanto, no caso da menina, a descoberta da castração possibilita a entrada no Édipo, e não a saída, como ocorre no menino. A saída desse conflito tem, ainda segundo Freud (apud LAZNIK, 2003, p. 72) “três saídas possíveis: a inibição sexual ou a neurose, o complexo de masculinidade, mas também a feminilidade normal. ” Esta última saída torna-se possível quando a menina aceita os substitutos que lhe são oferecidos para o falo que não tem: a possibilidade de seduzir os homens, tornando-se objeto de desejo destes, e a possibilidade de ter filhos. Assim, em um desenvolvimento saudável, a mulher renuncia ao pai e ao desejo de possuir um falo, em troca dos dois substitutos que a natureza (ou a nossa cultura que, durante muitos e muitos séculos, limitou a esses dois aspectos o poder da mulher?) lhe possibilita. Sairá do Édipo pronta para desempenhar os papeis de objeto de desejo e de mãe, e esses dois papeis a reparariam do rancor de não ser portadora do pênis até.... que atinja a meia idade e sofra os seus efeitos.

Nesse momento, a mulher teria arrancada a possibilidade de gerar filhos, e ela perderia, igualmente, uma cota do seu poder de sedução. Além de não poder mais gerarrebentos, essa fase, coincide, comumente, com a saída dos filhos de casa, o que contribuiria para esvaziar o papel de mãe que sustentara a falicidade dessa mulher até então. Sobre isso, Laznik(2003, p. 3) afirma:

Parece-nos possível afirmar que uma mulher perde então as duas promessas que lhe haviam sido feitas quando de sua entrada no Édipo e que lhe haviam permitido aceitar ser uma mulher: a de um filho em substituição ao falo e a de uma certa forma de falicidade de seu corpo inteiro. Ela tem que realizar o duplo luto de não mais poder pretender nem a falicidade do materno nem a de sua beleza.

Assim, a mulher de meia-idade, perdendo os seus substitutos fálicos, teria, enfim, que vivenciar a castração crua, visão que desperta horror tanto em homens quanto em mulheres. Ainda segundo Laznik (2003, p. 65), “A capacidade de procriar faz obstáculo à morte; uma vez esta capacidade perdida, nada interrompe mais, no plano fantasmático, a fuga do tempo em direção à aniquilação final”, 

A BRUXA CASTRADA E INVEJOSA 

Por representar a visão crua da castração é que a mulher da meia idade pode sugerir facilmente uma associação com a maldade, o instinto destrutivo, a ameaça.  

(...) Freud nos lembra que a convicção da ausência do pênis na mulher pode levar a uma grande depreciação, até mesmo ao horror da mulher: ‘Ferenczi recentemente fez uma relação precisa entre o símbolo mitológico do horror, a cabeça da medusa, e a impressão produzida pelo órgão feminino desprovido de pênis”. (LAZNIK, 2003, p. 64) 

Nesse sentido, é remarcável a semelhança entre os cabelos de Karaba, que está sendo aqui interpretada como a mulher privada de substitutos fálicos, e a representação da cabeça da medusa.

A associação com a morte é perceptível desde a observação dos lugares onde vivem cada uma das feiticeiras, todos dominados pelos tons sóbrios de cinza ou marrom, e pontuados por símbolos de horror e morte, mais ou menos sutis, como os seres cujas formas fazem pensar em vermes, na morada de Úrsula, ou a caveira no palácio da rainha de Branca de Neve.

Ferida em seu orgulho narcísico, a mulher da meia idade, revivendo a castração, pode voltar contra a mais jovem seus impulsos destrutivos.Na história da “Pequena Sereia”, Úrsula, feia, solitária e sem filhos, dirige seu ódioexatamente à filha preferida do rei Tritão, ou seja, aquela cujos atributos mais encantam o olhar masculino. Os ataques da feiticeira buscam atingir justamente a possibilidade de realização fálica de Ariel: não pode suportar que esta se case nem se transforme em humana, metamorfose que pode ser compreendida como o despertar para a vida sexual. Para impedi-lo, lançará mão de todas as artimanhas, inclusive o roubo da voz da protagonista

Embora Úrsula lance contra Ariel todo o seu potencial destrutivo, é Tritão que ela deseja atingire, em vários momentos, ela esclarece os seus intentos, como quando diz aos seus peixes-guardiões: “Fiquem de olho naquela garotinha. Ela pode ser a chave da queda de Tritão”, ou, ainda, quando, ao conseguir capturar Ariel, e arrastá-la na direção de sua morada, no fundo do mar, diz-lhe: “Pobre princesinha, não é você que eu quero. Eu quero um peixe bem maior”. O ódio de Úrsula, apesar de ser lançado contra a possibilidade de realização fálica da pequena sereia, tem por alvo central o rei dos mares, o que marca a inveja do pênis (FREUD, 1905) como estando na origem dos seus conflitos e da sua crueldade.

Sabe-se que a bruxa dos mares se sente injustiçada por ter sido expulsa do palácio do rei Tritão. Não sabemos qual era o papel de Úrsula quando morava no palácio, nem tampouco o que ocasionou a sua expulsão, mas sabemos que ela guarda uma mágoa não curada por esse episódio, sentindo-se miserável e excluída da fartura de que gozam os que fazem parte do reino. Pode-se compreender esse estado de miserabilidade como uma representação do luto que vive a mulher da meia-idade ao ver-se privada dos seus substitutos fálicos. Como coloca LAZNIK (2003, p. 83) 

(...) há uma retomada do complexo de castração neste momento da vida de uma mulher. Isto é interpretado da seguinte forma: ela se acha novamente confrontada com a humilhação narcísica produzida pela confrontação entre o clitóris e o pênis.

A autora esclarece, indo adiante em suas reflexões, que esse falo não é um órgão real, mas um significante. “O objeto da castração é imaginário, o que é visado é o falo enquanto imaginário e não enquanto órgão real”. (LAZNIK, 2003, p. 85). Podemos compreender que Úrsula revivência essa humilhação em decorrência da retomada da castração diante da beleza de Ariel, dona da  linda  voz que  seduz o  príncipe, ou  diante

da coroa que confere a Tritão um poder soberano nos oceanos. Aqui, podemos compreender como significantes fálicosa beleza e a voz da pequena sereia, bem como a coroa que confere poder ao rei, e que faz a bruxa aumentar de tamanho ao colocar na cabeça, indicando o empoderamento que o objeto lhe confere.

Como a mulher de meia idade, aqui representada na monstruosa figura de Úrsula, vê-se privadados atributos que lhe permitiram a saída do Édipo em direção à feminilidade, ela pode reviver esse momento de liquidação do Édipo como uma experiência bastante dolorosa. Na cena em que Ariel visita a bruxa para as negociações do contrato, há um momento em que esta última retoca o batom e ajeita os cabelos. A utilização de adornos tipicamente femininos cria um contraste irônico com a feiura de Úrsula, o que parece, ao invés de enfeitá-la ou amenizá-la, torna-a ainda mais medonha.

Também a madrasta da Branca de neve parece compreender a beleza da mulher mais jovem como uma potência fálica que está ameaçada de perder. Diferente de Úrsula, a madrasta de Branca de Neve não é feia. Ao contrário, é a mais bela do reino até que a beleza feminina da protagonista comece a despertar. No entanto, a insegurança e o medo de perder seus atributos fálicos lhe conferem a necessidade de ser única, e não suporta a possibilidade de que outra mulher possa ser mais capaz do que ela de conquistar os olhares admiradores.


(...) [nos contos de fadas]a beleza era sempre um bom sinal, e a feiura, o signo dos maus. Nisso, a madrasta de Branca de Neve é uma exceção, mas convive com uma eterna insegurança a respeito de seus atrativos, não lhe bastava ser bela, sua formosura tinha de ser insuperável. (CORSO, 2006,p. 79)
 

O apego da bela madrasta à própria imagem e o desespero ao vê-la ameaçada têm como elemento constitutivo a relação simbiótica que ela mantém com seu espelho, que pode ser compreendido como a representação do olhar masculino. 

A verdade é que a beleza só existe para um olhar, sem esse reconhecimento ela não faz sentido, por isso o espelho é o complemento necessário da imagem. O olhar no espelho traz sempre uma pergunta e uma resposta. Cada um o contempla tentando se ver de fora, buscando decifrar o impacto de sua imagem nos olhos dos outros, interrogando como somos vistos. (CORSO, 2006, p. 80) 

O insuportável para a madrasta é descobrir que uma mulher mais jovem pode desbancá-la, evidenciando a deterioração da sua beleza. Essa constatação a leva a cometeratos extremamente cruéis, lançando mão de feitiços como substitutos para a falicidade que se vê perdendo. No primeiro momento, a crueldade da rainha é destilada covardemente, por meio do caçador, cuja bondade visível a madrasta tenta perverter. Ao perceber que seu intento foi frustrado, ela toma a tarefa com as próprias mãos, disfarçando-se de bruxa e oferecendo uma maçã envenenada à protagonista. Segundo Corso (2006, p. 227), “em muitos mitos e contos de fadas, a maçã representa o amor e o sexo nos seus aspectos benevolentes e perigosos”. Ciente do poder do desejo sexual e de sedução, a rainha usa-os como arma para destruir Branca de Neve, como se soubesse que a perspectiva de realização sexual e de sedução seria tão irresistível para a moça quanto o era para ela mesma. A narrativa mostra que a rainha não estava enganada, uma vez que a protagonista aceita, sem pestanejar, a maçã oferecida.

A feiticeira de Kirikou é outra exceção a essa associação da beleza a algo bom. Sua beleza exerce um importante poder sobre os homens, embora os habitantes da aldeia onde o menino reside não sejam capazes de admiti-lo conscientemente. Horror e encanto se misturam diante dessa bela feiticeira que, segundo todos acreditam na Aldeia do pequeno Kirikou, devorou todos os homens da comunidade, depois de tentativas frustradas destes, de enfrentá-la. Kirikou, ainda muito pequeno, não podia desfazer-se da ideia de, por sua vez, encarar a feiticeira. A mãe, com a voz embalada de tristeza, diz-lhe: “Tu és como todos os homens, tu queres a qualquer preço olhar para Karaba”. A motivação dúbia da força irresistível que atraía os homens para a feiticeira fica clara quando Kirikou, depois do primeiro encontro com ela, responde, ao ser perguntado sobre o mesmo pelos habitantes terrificados da sua aldeia: “Ela é linda! ”. 

Essas histórias seriam, então, também um tratado sobre a relação de homens e mulheres com a feminilidade: seu preço, seu fascínio, a magia magnética de sua beleza, seus poderes e perigos. (CORSO, 2006, p. 76)

A insegurança resvalada em inveja e crueldade da madrasta de Branca de Neve e de Karaba falam do pânico vivido pela mulher da meia-idade diante da ameaça de perda de seus atributos femininos.Quando essa perda não pode mais ser negada, a mulher, revivendo a castração, precisaria lançar mão de outras artimanhas para garantir alguma cota do poder perdido. 

Os atrativos femininos seriam uma arma privilegiada de conquista de posição para uma mulher, como o envelhecimento a privaria destes, a mulher necessitaria recorrer a outros feitiços, os da bruxa. Um homem pode amar apaixonadamente uma princesa adormecida, aprisionada e passiva, mas quando a mulher desperta e perde a beleza inocente da juventude, resta a visão da sua verdadeira alma: poderosa, perigosa e ardilosa. Vemos então que, sob uma capa de elogio, essas histórias contêm um aviso de que todo cuidado é pouco com mães, sogras ou todo o tipo de mulher adulta. (CORSO, 2006, p. 76) 

A mulher como mascarada, proposta por Rivière e reinterpretada por Lacan (apud GRANT,1998), se presentifica mais duramente nessas feiticeiras que se utilizam dos poderes mágicos para encobrir a fragilidade da própria castração, e o vazio que ela encerra, o vácuo, a morte.Conforme afirma GRANT (1998), “Neste sentido, a máscara da feminilidade, seus adornos, teria uma função de tela para recobrir aquilo que está para além do gozo fálico- a vacuidade, o nada”.

O enredo de Kirikou e a feiticeira traz, em inúmeras cenas, a tensão entre o movimento da bruxa e dos moradores da aldeia que se esforçam por manter os necessários mascaramentos, e um movimento de desvelo dessas máscaras, que parece procurar revelar a fragilidade nua e assustadora de Karaba. A mãe de Kirikou, tentando explicar-lhe por que a feiticeira impede a chegada dos habitantes às montanhas onde mora o seu avô, o sábio da montanha, afirma: “O sábio da montanha explica as coisas como elas são, e Karaba, a feiticeira, precisa que acreditemos em ilusões”. Curiosamente, quando o protagonista, depois de longas aventuras, consegue encontrar o sábio, as explicações deste vêm justamente revelar a fragilidade de Karaba por trás do véu de crueldade de que esta se serve e ao qual se agarram os habitantes da aldeia. Quando Kirikou pergunta ao seu avô por que Karaba devora os homens, ele explica-lhe: “Isso é o que as pessoas da aldeia acreditam, e Karaba não desmentiu. Na verdade, ela não devora os homens. Ela prefere os inhames com um molho bem apimentado, como você e eu”.

O velho explica que a bela feiticeira carrega um espinho em suas costas, e que a dor constante que ela sente faz com que seja tão cruel. O espinho pode ser compreendido como um símbolo da inveja do pênis que aprisiona a feiticeira, e é esse sentimento que faz com que capture os homens da aldeia, mantendo-os prisioneiros em seu castelo. A feiticeira também lança um feitiço que acaba com a fertilidade da terra da aldeia, que também pode ser compreendida como uma potência fálica do feminino invejada, visto que implica em gerar frutos.

OS DESFECHOS 

Para compreender o final trágico de Úrsula e da bela madrasta de Branca de Neve, é necessário retomar a afirmação que serviu como ponto de partida para esta análise, de que se consideraram todas as personagens de um conto como representações dos elementos de uma mesma psique. Assim, uma vez que se compreendem essas personagens como representantes do elemento destrutivo e ameaçador que espreita a subjetividade de todos, é compreensível o final trágico que lhes sucede, pois é preciso, ao menos nessas versões contemporâneas, emitir a mensagem de que a resolução dos conflitos com esses elementos psíquicos é possível, de que a força destrutiva pode ser controlada. Para que essa mensagem seja passada sem ambivalências, é providencial a morte trágica das feiticeiras.

Apenas o destino de Karaba foge a essa tragicidade típica das vilãs de histórias infantis, e parece trazer uma mensagem de possibilidade de superação do complexo de castração. Superada a mágoa e ahumilhação por não ter o pênis, revividas na meia-idade, a mulher pode solucionar definitivamente o Édipo; foi obrigada a renunciar aos substitutos fálicos, podendo, portanto, se permitir a retirada do doloroso espinho, ser plenamente mulher, sem falos substitutos e sem poderes mágicos (Karaba perde, junto com o espinho, todos os poderes que tinha como feiticeira). Pode, então, aceitar o seu jovem companheiro, com toda a sua potência viril, em um momento que há um aumento de sua libido e sem mais precisar do anteparo do materno, como um homem inteiro, capaz “de fazê-la gozar vaginalmente” (LAZNIK, 2003, p. 61). É assim que, retirado o espinho, Karaba abandona a condição de feiticeira e assume plenamente a condição de mulher, sem máscaras, e Kirikou cresce, e se transforma em um belo príncipe, pronto para esposá-la. Kirikou conquista a mão de Karaba com a disposição de encará-la, com a coragem de assumir o encanto que ela despertava, e, depois, com a coragem de permanecer ao seu lado mesmo na ausência dos seus poderes.

Karaba representa a possibilidade de superação bem-sucedida dos conflitos vivenciados na meia-idade. Vista no conjunto com os demais elementos da história, parece trazer a mensagem de possibilidade de integração das forças destrutivas e ameaçadoras ao restante da psique.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A análise aqui empreendida reforça a ideia da contribuição dos estudos sobre filmes infantis para a compreensão de aspectos da subjetividade humana. No caso específico desta pesquisa, espera-se ter contribuído para a elucidação de aspectos ligados à sexualidade feminina, em termos dos impasses que a meia-idade traz para o sujeito feminino, bem como as repercussões em seus companheiros.

 É importante, contudo, considerar que não se teve, nem se poderia, a pretensão de encontrar uma interpretação que encerre uma verdade absoluta sobre o objeto estudado. Como afirma ROSE (2005, p. 344), 

Nunca haverá uma análise que capte uma verdade única do texto. (...) diferentes orientações teóricas levarão a diferentes escolhas sobre como selecionar para transcrição. (...). 

É importante lembrar, aqui, que as bases teóricas sobre as quais se apoiou esta análise – psicanálise freudiana - foram construídas em um contexto sociocultural específico e tais teorias foram úteis e produtivas para a leitura dos contextos que elas se propuseram a decifrar. Assim, a construção de uma teoria que toma como substitutos fálicos da mulher, a maternidade e o poder de sedução, só foi possível por situar-se em um momento social em que, de fato, a realização feminina era restrita a esses dois aspectos. Os filmes aqui analisados, apesar de produzidos em um momento posterior, são frutos dessa mesma realidade, que é, ao mesmo tempo, retratada e reforçada por esses documentos. Isso é ainda mais verdadeiro se considerarmos que as histórias em que eles se inspiram são ainda mais antigas e mais imbrincadas em tal realidade. Por isso, a perspectiva teórica aqui adotada continua sendo uma boa lente para a leitura dos aspectos enfocados por esta pesquisa.

Entretanto, seguindo o próprio exemplo que o pai da psicanálise nos deixou, no sentido de sempre revisar os seus conceitos conforme a clínica nos aponta, o corpo teórico não está fechado, mas passando por constantes mudanças a partir dos novos desafios e impasses que a contemporaneidade nos impõe. Lasnik (2003), baseada em Lacan, aponta para uma divisão do sujeito feminino, colocando que a mulher para continuar a ser mulher após a meia-idade, fazendo o duplo luto dos seus atributos fálicos, precisa se apoiar em elementos da insígnia paterna, tais como, investir em interesse sociais e na capacidade de sublimar. Portanto, podemos, a partir destes elementos, contemplar os novos papeis que a mulher pode exercer na contemporaneidade, sem ficar, necessariamente, presa a sua capacidade de sedução e de gerar filhos.

Para finalizar, novas realidades foram construídas desde a produção da perspectiva teórica aqui adotada, bem como das raízes sociais e ideológicas dos documentos analisados a partir dela. Já há algumas décadas, em alguns contextos, as possibilidades de realização fálica feminina se ampliaram, e essas mudanças demandam tanto a releitura das teorias, quanto novas pesquisas referentes às produções sociais contemporâneas, sobretudo no sentindo de analisar como essas novas realidades estão sendo retratadas.

Como o aprofundamento dessas considerações fugiria ao escopo deste trabalho, resta apontá-lo como sugestão para pesquisas posteriores.    

REFERÊNCIAS 

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos Contos de Fadas. 16ª edição. Ed. Paz e Terra: 2002

CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no Divã. Ed. Artmed, Porto Alegre, 2006

FREUD, S. Um caso de histeria: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vol VII, 1901-1905. Disponível em: http://portugues.free-ebooks.net/ebook/Um-Caso-de-Histeria-Tres-Ensaios-sobre-a-teoria-da-sexualidade-e-outros-trabalhos/pdf/view. Data do acesso: 02.07.2013.

GRANT, Walkíria Helena. A mascarada e a feminilidade. Psicologia USP, São Paulo, V. 9, n. 2, 1998. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65641998000200010&script=sci_arttext. Data de acesso: 04.07.2013.

LAZNIK, M.C.O Complexo de Jocasta: A Feminilidade e a Sexualidade Sob o Prisma da Meia-idade. Ed. Companhia de Freud, 2003

NASIO, J.D. Lições sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise. Tradução: Vera Ribeiro. Ed. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997.

ROSE, D. (2008). Análise de imagens em movimento. In: Bauer, M.W. & Gaskell, G. (2008). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – Um manual prático. 7 ed. Petrópolis: Vozes.

SILVA, L.[et al] Pesquisa Documental: alternativa investigativa na formação docente. In:Congresso Nacional de Educação, 4, 2009, Paraná. 4554 -4566. http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/3124_1712.pdf. Data de acesso: 02.07.2013

VIDEOGRAFIAS 

OCELET, Michel. Kirikou e a feiticeira. [Filme]. Produção de Didier Brunner, direção de Michel Ocelet. Bélgica, França e Luxemburgo. Les amateurs, Odec Kid Cartoons, Trans Europe Films e Studio O, 1998. DVD [Título original: Kirikou et la sorcière], 74 min, col., son.

DISNEY, Walt [et al]. Branca de Neve e os sete anões [Filme]. Produção de Walt Disney. Estados Unidos. 1937. DVD [Snow White and the seven dwarfs], 83 min, col., son.

CLEMENTS, R; MUSKER, J. A pequena sereia [Filme]. Produção de John Musker e Howard Ashman, direção de Jonh Musker e Ron Clements. Estados Unidos, 1989. DVD [Título original: The little mermaid], 85 min, col., son.
 

 
 

 

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