O nome civil corresponde ao nome
individual (prenome) mais o nome de
família (sobrenome). Quando a mãe disse
nome, ela se referia ao nome completo,
que Daniela “esquecera”, ou seja, o
sobrenome. Conforme dispõe o Código
Civil, o nome se refere à identidade
pessoal, enquanto sujeito de direito e
com ele responde por seus atos sendo
mantido pelo sujeito por toda a sua vida,
salvo em casos especiais, como deste
texto. A alteração do nome, neste caso
clínico, revela a negação da história de
Daniela, de sua cultura, como se ela
fosse uma folha em branco, uma tabula
rasa, conceito estudado pela teoria
filosófica Empirismo pelo britânico John
Locke. Ora, alterar o nome pode
significar negar a história da pessoa,
porque existe a mais suprema identidade
entre o indivíduo e seu nome.
Filosoficamente, podemos dizer que
existe uma relação de ipseidade, termo
derivado de ipseitas, que, por sua vez,
deriva de ipse: eu mesmo/tu mesmo. A
íntima relação sujeito/nome pode ser
traduzida nos versos de Vinicius de
Moraes e Tom Jobim: Não há você sem mim/
eu não existo sem você.
(MORAES
e JOBIM.Eu não existo sem você.Disponível
em
www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49268).
Cumpre esclarecer que não consideramos,
neste texto, a adoção numa relação
causal com a queixa apresentada pela mãe,
mas sim, numa relação de contingência,
embora a mudança de sobrenome tenha se
originado da mesma. Não atribuímos à
adoção a diferença mas focamos na
singularidade do caso. Daniela transita
entre o ser e o não-ser. É filha do
coração, não é filha da barriga. E a
criança, assim que começa a falar, já
quer saber de sua origem, isto é, de
onde veio, buscando respostas para as
perguntas inerentes à existência humana:
de onde eu vim? Quem sou eu? Para onde
eu vou?
Nossa hipótese foi a de uma situação de
desamparo de Daniela. Desamparo este
sustentado pelo amor que “comeu ... nome
... identidade ...certidão ...
genealogia...”, como nos fala João
Cabral de Melo Neto, na epígrafe deste
texto. Que amor é este que caminha na
direção contrária à da vida? Amor que
não suporta a diferença, o conflito?
Sobre o amor, Freud nos fala que:
Uma
pessoa pode amar:
1- Em conformidade com o tipo narcisista:
(a) O que ela própria é (isto é, ela
mesma) (b) O que ela própria foi (c) O
que ela própria gostaria de ser (d)
Alguém que uma vez foi parte dela mesma.
2- Em conformidade como o tipo
anaclítico (de ligação): (a) a mulher
que a alimenta (b) o homem que a protege
e a sucessão de substitutos que tomam o
seu lugar. FREUD, 1996, v.XVI, p.97).
Ainda, sobre o amor do tipo anaclítico,
Freud(1996), nos ensina que: “Uma pessoa
que ama, priva-se, por assim dizer, de
uma parte de seu narcisismo, que só pode
ser substituída pelo amor de outra
pessoa por ela. ” Idem, ibidem. p. 105.
Assim, o amor tão cantado em prosa e
verso é pulsão de vida, mas também pode
rimar com dor, pode levar ao desamparo.
Interessa
salientar, como já dissemos, que, por
ordem judicial, foi cancelado o registro
civil de Daniela, que foi substituído
por novo registro, constando seu nome
com o sobrenome da mãe que a adotou, o
nome da adotante, isto é, de sua mãe
adotiva e, como esta era solteira e
também adotada por uma mulher solteira,
o nome da avó materna. Isso significa
que seu registro civil atual não
apresenta nome de figura masculina. Em
nome da lei, retirou-se o nome do pai, o
representante da lei. Lacan (apud Dor,
1989)
(DOR, Joel. Introdução à
leitura de Lacan: o inconsciente
estruturado como linguagem.Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989)
define o
complexo de Édipo como função simbólica,
lei inconsciente de organização da
cultura e o Nome do Pai é o conceito, no
qual a função simbólica se torna Leique
Lacan descreve através da Metáfora
Paterna.
Pelo exposto, indagamos: Daniela
esquecera ou não aprendera, já que o
sobrenome era novo para ela? A mãe se
surpreendeu com a nossa indagação. E o
que é aprender?
Numa perspectiva interacionista,
aprender é apropriar-se do novo, a
partir dos elementos que o sujeito já
tem consigo. No dizer de Alícia
Fernandez(1990), o aprender envolve:
inteligência, corpo, organismo, desejo.
E o que temos é uma situação de
desamparo de Daniela para que se
aproprie do novo. Diante do
desamparo pensamos na hipótese de
inibição, que, para Freud,(1996)
(FREUD, 1996, v. XX. P.
91, 93, 94).
“a inibição tem uma relação especial com
a função” (p. 91), que, no caso, seria
inibição no trabalho, que, “é a
expressão de uma restrição de uma função
do ego [...] para evitar conflito com o
id ou superego” (p. 93). Falamos, então
de uma inibição cognitiva, porque, para
Freud, as inibições “são restrições do
ego que foram impostas como medida de
precaução ou acarretadas como resultado
de um empobrecimento de energia. (p.94).
Nosso atendimento a Daniela se fez
conforme a metodologia e técnicas da
Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers. As
sessões de avaliação seguiram o Programa
de Avaliação Ramain-Thiers, de Ana Lucia
Mandacaru Lobo e Beatriz Pinheiro
Machado Mazzolini (1990). Foram
realizadas duas sessões semanais de uma
hora cada e seguimos, inicialmente, o
Orientador Terapêutico Para Crianças-CR,
passando, depois, para o Orientador
Terapêutico para Adolescentes – AD.
Iniciamos com propostas da fase de
reconstrução da maternagem, seguindo
conforme preconiza a metodologia citada.
Inicialmente, nas atividades
semidiretivas, ela sempre desenhava uma
criança e duas mulheres. Dizia que
gostava de desenhar e sempre repetia o
mesmo e, embora no início sua
verbalização sobre eles fosse rara, aos
poucos ela foi falando de sua origem.
Quando não desenhava, ela procurava o
Jogo da Memória,sempre o mesmo. Seguia o
mesmo ritual. Indagamos-nos: O que
significaria este ritual? Ora, poderia
ser uma forma de atualização do passado,
numa repetição avassaladora!
Freud (1996) aborda a
repetição como retorno do recalcado, em
sua obra de 1914: “Recordar, Repetir,
Elaborar”, em que a resistência provoca
a repetição pelo impedimento da volta do
recalcado. Em seu texto escrito em 1920:
“Além do Princípio do Prazer”, ele
aborda a repetição como compulsão –
pressão exercida pelo quantum de afeto,
cuja magnitude o aparelho psíquico não
consegue assimilar. A vida psíquica
tende a evitar o desprazer, e a
repetição corresponderia à sua descarga.
Nas atividades semidiretivas, Daniela
revelou dificuldade na proposta de
cópia. Perguntamos: dificuldade ou
resistência? Emocionalmente, essa
proposta é facilitadora de
identificação. Também, houve grande
resistência à troca de lápis,
manifestando agressividade, que pode
estar ligada à identificação com a
figura materna.Outra proposta de grande
resistência era a de recortes, que, de
fácil compreensão, aborda a separação.
A
Metodologia Ramain-Thiers apresenta os
três tipos de leitura no setting
terapêutico: a horizontal, a vertical e
a transversal. A visita que o Papa fez
ao Brasil mobilizou intensamente a
Daniela e ao pontuar, interpretar sua
verbalização, transitando pelo sagrado e
o profano, ela me disse que o nome do
Papa tinha um pedaço do nome dela. Esse
fato trouxe mudança para a terapia.
Daniela começou a falar de seu nome,
propus a ela que o escrevesse e o fez.
Depois, quis escrever o nome anterior e
o fez. Ofereci-lhe materiais diversos
para escrever, recortar, desenhar
representar o seu nome. Depois de
algumas sessões, ela me perguntou como
fazer para trocar de nome. Clarifiquei e
interpretei a pergunta. Orientei-a sobre
os aspectos legais, e ela me disse ser
mais um segredo nosso, que a mãe não
poderia saber.
As sessões continuaram e, pouco tempo
depois, a mãe me telefonou, dizendo que
não poderia mais manter a terapia de
Daniela.
Recentemente, recebi uma ligação de
Daniela, agora, prestes a completar
dezoito anos, propondo (re) começar a
terapia. Novos tempos, novas histórias?
Novos tempos, mesmas histórias com novo
significado!
Ao escrever sobre este caso clínico e
tendo no horizonte o fazer, enquanto
poiesis ocorrem-me os seguintes versos
de Drummond:
(ANDRADE, C. Drumond. Poesia Completa.
Nova Aguilar, 2002. P. 1256)
Se procurar bem você acaba encontrando
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida.
Referências:
FERNÁNDEZ, Alicia. A Inteligência
Aprisionada. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990.
FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo:
uma introdução. ESB. RJ: 1996, V..
XIV);
________. Recordar, Repetir, Elaborar.
ESB. RJ: 1996. V. XX.
________. Inibições, Sintomas e
Ansiedade. ESB. RJ: 1996. V. XX.
________. Além do Princípio do Prazer.
ESB. RJ: 1996. V. XVIII.