considerações acerca das
construções e reflexões que pude fazer: não
trarei, portanto, a história de um garoto ou
garota, mas o caminho que tenho percorrido
com estes sujeitos.
Diante
desse enquadre, pensar, em que medida as
queixas referentes à desatenção,
hiperatividade, organização, disfunção
executiva, disgrafia, entre outras, têm
relação com questões de ordem psicomotoras
não observadas e não cuidadas desde os
primeiros anos de escolaridade.
As queixas iniciais trazidas para a clínica
têm em comum o insucesso escolar, entretanto
as características e/ou dificuldades
apresentadas se diferenciam: transtornos de
linguagem, transtorno psíquico, desatenção,
inadequação à modalidade do ensino regular
ou a falta de vínculo com a aprendizagem.
Embora
fiquem claras as diferenças e singularidades
pessoais, a convergência para os aspectos de
ordem psicomotora e afetiva foram um ponto
de partida para inquietações e para o
aprofundamento dessas questões em meus
registros individuais e nos espaços de
formação profissional, grupos de estudo e
supervisão, em direção a esta escrita.
No início
de um dos trabalhos com a metodologia Ramain
Thiers, a minha escolha pelo conjunto Cópia,
fez-se no sentido de trabalhar com a
transposição literal dos desenhos,
oferecendo, desse modo, um amparo localizado
no modelo a ser copiado, favorecendo a
transferência e a identificação.
O contato inicial com o modelo é feito e se
inicia o processo: O erro não surge apenas
por se ter maior ou menor habilidade motora,
mas sim por mobilizar processos cognitivos
como também aspectos relativos ao
inconsciente, como associações livres,
vínculo com a proposta ou transferências.
Considerando um atendimento que teve como
foco inicial o tratamento das questões
relativas à linguagem, no sentido de
fortalecer o reconhecimento e controle das
dificuldades com a leitura e escrita,
questões de ordem psicomotora e
afetivo-emocionais se apresentaram e, desse
modo, o investimento na aplicação da
metodologia Ramain Thiers têm se estruturado
como um instrumento importante.
As
questões quanto à motricidade estiveram
sempre presentes e causando grande angústia:
a organização espacial e a lateralidade
foram aspectos a serem considerados em um
diagnóstico de dislexia, com uma confusão e
desordem clara quanto à imagem e
representação corporal que aparecem nos
registros de escrita, bem como nas
dificuldades com a leitura.
Na
aplicação da proposta AD04-07, deste
conjunto Cópia, constatei, mais uma vez, que
todo o "amparo" não é garantia de que o
contato com conteúdos subjetivos será o
esperado: A escolha dessa proposta,
transposição da paisagem com a casa e o uso
dos lápis para colorir me davam a direção de
um trabalho leve. Pois bem, o que vi foi
expressão de angústia e muita raiva. O papel
pontilhado ofereceu, nesse caso, um
desamparo e a cópia, que inicialmente seria
"apenas uma transposição do modelo",
tornou-se um desafio e um confronto com o
erro: " Por que tem que trocar de lápis? O
que é erro? Isso aqui, sair um pouco torto,
é erro? Tá horrível, cheio de emenda com
cor...melhor seria apagar e pronto!"
Seguiram-se muitas reclamações. Ao final, a
escolha em usar o lápis preto para cobrir
todo o desenho, com traçado forte e muito
marcado: "Já sei, você vai dizer que tá
errado, mas vai ficar assim mesmo!"
O
Trabalho de Corpo, após a atividade
diferenciada, ofereceu a possibilidade de
aquietar e entrar em contato consigo e com a
vivência no trabalho de mesa.
Numa
outra sessão, o Trabalho Corporal, dessa vez
no início, foi realizado com muita fala e
desconforto, ainda que sem a negativa em
realizar os movimentos: "Você sabe que sou
horrível com isso, não poderia fazer nada
mais 'difícil' não?"
Durante o
TC, numa proposta que envolvia simetria,
percebi a dificuldade em realizar os
movimentos e a angústia gerada com o
reconhecimento desse "desencontro" com o seu
corpo: "Tenho dificuldade com o movimento,
quer dizer, acho que é com o corpo em
movimento, é difícil"
Esse
desconforto com o corpo aparece lá no papel,
no movimento do corpo no papel, nele(s)
diante do papel e da proposta a ser
realizada.
Descompasso com o corpo, o ritmo, os
movimentos isolados, alternados e em
conjunto. Descompasso desse corpo com a sua
imagem e representação.
Cito
Jorge da Cruz:
"... temos de tratar
de ver que ali há um sujeito que desenha,
que de alguma maneira construiu um corpo e
um espaço, os quais vão estar representados
nessa folha de papel e nesses desenhos que
aparecem aí ... desenhar é sempre expressão,
projeção da corporeidade no espaço
simbólico, representado pela folha, nesse
caso ... perceber um modelo e desenhá-lo
inclui dois momentos: o primeiro com
predomínio da acomodação e o segundo com
predomínio assimilativo, ainda que requeira
acomodações. "
(Jorge Gonçalves da Cruz em "Os testes e a
clínica" in A Inteligência Aprisionada de
Alicia Fernández)
Em um
dado momento do trabalho, mais uma vez, a
dificuldade em realizar propostas do
conjunto, Motivos Simétricos, inclusive pela
não compreensão ainda do significado de
simetria, orientou a minha escolha em
retomar nas sessões seguintes, o Orientador
CR, conjunto CR10-9 e CR10-5, em papel
quadriculado e tabuleiro de pregos,
respectivamente, buscando o trabalho com o
eixo, que aparece nas duas propostas,
marcado como referência: "Já sei que você
vai repetir pra eu contar e me responder com
uma pergunta, em vez de me responder
mostrando... já sei, sou uma pessoa que não
gosta de parar para pensar e de olhar o que
não sei... tá, vou contar e definir onde vou
fazer o meu eixo".
As
sessões corporais que se seguiram,
apresentaram um corpo mais integrado, leve e
com a atenção voltada para si mesma, sem me
solicitar e com muito relaxamento.
Retornando ao AD04, Cópia, dessa vez com a
proposta 05, transpor o modelo como está e,
depois, copiá-lo em rotação de 90º, a
percepção de que foi possível fazer o
deslocamento espacial, enquanto
representação mental, mantendo a referência
no modelo e no seu corpo, com o manuseio do
papel com o modelo, realizando o movimento
de rotação sem ainda copiar, fazendo o giro
com o papel, incluindo giros que lhe
permitissem pensar na simetria: "Tenho medo
desse sapato... tenho medo de errar..."
Depois,
uma pausa e um pedido de ajuda, iniciando a
cópia, olhando para mim muitas vezes como
que para assegurar-se que não estava só,
verbalizando: " A gente errou, vamos trocar
de lápis". E agora, sem a dúvida quanto ao
que seria considerado erro e nos colocando
juntas na reparação da sua produção.
Diante do
Conjunto Integração, mais uma vez, a
necessidade, quase regredida, da minha
presença e mediação todo o tempo,
localizando a referência para prosseguir
integrando as setas: " ai meu Deus porque
não me deu logo um liga-ponto... que figura
mais estranha é essa? Quem inventou um
negócio desses? Tava até gostando, mas agora
comecei a errar e não tô gostando mais
não... meleca... ai Deus"
Concluiu
e ao observar o desenho da figura no modelo
para correção, respirou e pode encontrar
onde estavam os erros, considerando que,
dessa vez, o erro não estava mais na direção
das setas e sim nos espaçamentos e
integração entre elas.
Não mais
na direção, mas ainda na integração.
Seguem algumas considerações a respeito de
outro adolescente que trazia a queixa sobre
a desmotivação na vida escolar, desatenção
diante das aprendizagens e negação em
envolver-se ou realizar qualquer
investimento pessoal.
Nesse casoà medida em que o vínculo com o
trabalho psicopedagógico foi sendo
fortalecido, questões foram trazidas quanto
à dificuldade em dar conta dos estudos
regulares e de se submeter a uma rotina de
disciplina, investindo na reflexão sobre si
mesmo e suas modalidades para aprender. A
possibilidade de “fracassar” ou de não
responder à demanda na escola e nos grupos
sociais, causava grande sofrimento psíquico,
deixava-o cada vez mais desorganizado com as
solicitações que lhe chegavam e assim um
ciclo de repetição se formava. Pouco a
pouco fomos criandoespaços para a leitura,
escrita e atividades que lhe desafiassem,
com o suporte do vínculo estabelecido na
clínica e deste outro, a psicopedagoga, que
lhe servia como amparo e referência de
ensinante/aprendente.
O Ramain-Thiers foi aplicado com essa
perspectiva, favorecendo o contato com as
suas matrizes de aprendizagem, com a sua
subjetividade, reconhecendo medos,
fragilidades e possibilidades.
Com o
Conjunto Percursos, em outra sessão, ao
receber a orientação, investiu um tempo
maior nas perguntas para certificar-se do
que teria que ser feito, como que para
assegurar que não fizesse errado,
demonstrando muita ansiedade no momento em
que foi preciso fazer a estimativa quanto ao
tamanho das linhas para iniciar o trabalho:
"Qual a primeira linha? Qual linha fica
sobre a outra? É para cortar o tamanho certo
da linha? É ruim fazer assim, não dá pra ter
uma medida certa? Não tenho certeza, e se
não der?"
Fez a
estimativa para mais, cortando uma grande
quantidade de linha e no final, muita
dificuldade em jogar no lixo as suas sobras...
Numa outra proposta de Integração, essa
ansiedade apareceu novamente no momento da
orientação e enquanto ia transpondo as setas
e não sabia qual figura iria formar. Fez o
trabalho de forma minuciosa, bastante
investida e concentrada, mas ao finalizar,
verbalizou o quanto foi difícil traçar um
desenho sem saber do que se tratava, dizendo:
"foi bizarro".
Fiz uma
associação com o momento que está vivendo:
terceiro ano do ensino médio e com os exames
de vestibulares sendo prestados, diante da
escolha profissional e ainda sem saber, ao
certo, qual figura irá se formar após o seu
desenho...
Na aplicação de Sequências Codificadas, em
dado momento do ditado de formas através dos
cartões, errei repetindoa mesma coluna duas
vezes, vi o erro (aqui não era possível
trocar os lápis) e pedi que parasse. Falei
do meu erro e aguardei a verbalização: "Tudo
bem, eu já tinha errado antes aqui (apontando
com o dedo)... acho que você só se
atrapalhou...".
E então, quando a terapeuta erra, não é erro?
É atrapalhação? O que fazemos com o erro?
Qual a possibilidade de reparação nesse caso?
Qual o modelo, a referência que podemos
oferecer?
Falamos sobre erro e tipos de erro, houve
espaço para a reflexão e verbalização,
pensando sobre as inúmeras vezes em que o
erro é sentenciado como "falta de atenção".
E somente erra que não está atento?
Seguir com o erro e apesar de, não destruir
ou se destruir. Vínculo, reparação, perdão.
Diante de outro adolescente, mais um desafio:
Estabelecer um vínculo de confiança e ter o
meu saber reconhecido: A passagem por vários
profissionais e algumas avaliações
diagnósticas, inclusive, a conclusãonumérica
de suas altas habilidades cognitivas.
Quando o meu lugar foi ficando mais claro,
se estabeleceu um espaço de maior segurança
e tranquilidade, ao tempo em que íamos
ampliando as reflexões sobre o seu fazer,
sua percepção como um adolescente com um
grande potencial cognitivo, mas com algumas
dificuldades em dar conta das demandas
próprias da idade e escolarização.
Em uma das propostas Ramain Thiers, teve
muita dificuldade em realizar a atividade,
ficando bastante ansioso, perguntando várias
vezes se outra pessoa já tinha conseguido
fazer ou se eu já tinha feito aquele
trabalho. A reparação através da troca de
lápis provocou agressividade manifestada por
ironias, marcando que a beleza em ter tantas
cores diferentes no traçado foi uma ação
planejada pra que o desenho ficasse
diferente. Foi possível dar conta de um
corpo desarrumado que aparecia no papel, ali
representado num movimento desordenado,
mudando de critériosa todo momento,
permitindo-se pedir e aceitar ajuda,
lentificando a sua produção a fim de concluí-la.
Vi, também, neste momento, a vinculação, a
transferência positiva ali claramente
apresentada.
“Não é erro, é falha, é
diferente, falha é uma parte do erro... tá é
só um pouquinho errado, mostra que não estou
pronto... a pessoa erra uma questão e falha
na prova, a falha é maior, não gosto de
errar, nem de falhar, parece que não estou
pronto."
No final da sessão, o pedido de um papel em
branco e, silenciosamente, com muita
concentração e investimento, a produção de
um pássaro em origami para mim.
Os erros diante das propostas Ramain Thiers,
tão ameaçadores ao ponto da negativa em
arriscar-se em atividades desconhecidas ou
que não tivesse o domínio para realizá-las,
ofereceram uma grande oportunidade para que
se percebesse errando e mais ainda, vendo
claramente a possibilidade de reparação, nos
dando condições de aprofundar questões
quanto à sua insegurança e o uso da
onipotência como defesa de ego, fazendo uma
marca em nosso trabalho, nas suas vivências,
impulsionando, sob meu ponto de vista, uma
escolha antes não imaginada em participar de
seleção para um curso em uma instituição
pública, com grande número de concorrentes e
colocando a sua competência à prova.
Durante essa escrita, fui lembrando
naturalmente de situações vividas na clínica,
há muito mais, coisas boas, outras nem tanto,
acertos, erros e reparações, muitas e sempre
possíveis.
A Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers tem
oferecido um importante recurso enquanto
metodologia escolhida e abraçada, elucidando,
dando mais visibilidade aos processos
vivenciados na minha clínica.
Concluo com um agradecimento a esses garotos
e garotas, que partilham suas aprendizagens
comigo, a "quem inventou tudo isso", como me
foi bem dito e aos profissionais envolvidos
de modo significativo na minha formação
profissional e pessoal.
Referências:
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Corpo, Ação e Movimento. Rio de Janeiro:
Wak, 2003.
AUCOUTURIER, B e LAPIERRE.
Psicomotricidade e Terapia. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
FERNÁNDEZ, Alicia. A Inteligência
Aprisionada. Porto Alegre: Artmed,1991.
FONSECA, Vítor da. Desenvolvimento
Psicomotor e Aprendizagem. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2008.
FONSECA, Vítor da. Introdução às
Dificuldades de aprendizagem. Porto
Alegre: ArtesMédicas, 1995.
GERALDI, Ana Cristina, THIERS,
Solange.Organizadoras.Corpo e Afeto:
reflexões em Ramain-Thiers. Rio de Janeiro:
Wak, 2009.
THIERS, Elaine. Org.Compartilhar em
Terapia: seleções em Ramain-Thiers. Rio
de Janeiro: Casa do Psicólogo, 1998.
THIERS, Solange e Cols.
Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers: uma
leitura emocional, corporal e social. Rio de
Janeiro: C |