Abalos sísmicos emocionais
Augusto Cury
Psiquiatra. Psicoterapeuta.Cientista. Escritor.
Todos no hospital acharam que o fato de dr. Alan ter passado por
aquelas avalanches emocionais contribuíra para que se tronasse um
ser humano melhor. Não entrava mais embates comfacilidade. Suas
críticas diminuíram. Passou a tolerar pessoas lentas.
Todavia, pouco a pouco, foi se esquecendo de que era um simples
mortal.Voltou a operar coma mesma frequência, escrever artigos na
mesma intensidade e aceitar convites para conferências com a mesma
facilidade de antes.
Falar do cérebro e seus segredos era com ele mesmo. Certa vez,
brilhou em uma exposição diante de uma plateia de quinhentas pessoas.
Mas já não tinha o mesmo vigor; o desgaste mental era rapidamente
sentido no corpo como sensação de fadiga, aperto no peito e leve
falta de ar. Ouviu de muitos espectadores:
– Parabéns, doutor Alan, pelos excelentes ensinamentos.
Entretanto, ele ansiava sair daquele ambiente, que, por mais amplo
que fosse, parecia um cubículo sem ar. Além de falar sobre segredos
do cérebro, suplicava às pessoas que praticassem esporte, dormissem
e se nutrissem bem. Sem dúvida era um grande apóstolo do bem, mas
não seguia seus próprios mandamentos. Sua vida era um rolo
compressor.
Pouco a pouco, os velhos monstros reapareceram. Esforçava-se para
não reclamar dos alunos relapsos, dos enfermeiros desatenciosos, dos
colegas despreparados, mas não os suportava. Claro, não podia se
omitir, precisava contribuir com eles, porém dr. Alan passava dos
limites. Tinha uma das mais desgastantes necessidades neuróticas: a
de mudar os outros. O resultado? Explodia.
– Como tem gente estúpida neste mundo, meu Deus! – dizia com
facilidade.
Então, de repente, tentava botar ordem na casa, dizendo a si mesmo:
– Acalme-se, Alan. Acalme-se....
Contudo isso não funcionava, ou não funcionava por mais de uma hora.
Tornou-se um mestre em sabotar sua saúde física e emocional. Era um
ser humano contraditório. Só tomava água mineral porque não queria,
em hipótese alguma, se contaminar com bactérias, mas não sabia
filtrar estímulos estressantes. Coava uma mosca e eixava passar um
elefante. O território da sua emoção era uma terra sem escritura,
sem proprietário: qualquer um a invadia. Claudia, observando-o
perder a paciência com facilidade, indagava-lhe:
– Você está tentando se controlar?
– Derrapo algumas vezes, mas estou conseguindo.
– Mas você ainda se estressa facilmente...
– E que mortal não se estressa, diga-me? Quem por mais calmo que
seja, não tem reações ansiosa? Que intelectual brilhante não tem
atitudes tolas? Só se estiver no silêncio de um túmulo – dizia
rapidamente e com astúcia.
Claudia se calava. Era muito difícil vencê-lo se desse a ele trinta
segundos para argumentar. Era um gênio. Gênio na profissão, ingênuo
em promover sua qualidade de vida. Mais um paradoxo de muitos
intelectuais...
– Por favor, querido, cuide de si. Cuide do nosso casamento. E cuide
de Lucila.
– Está certo general – expressava, brincando com a esposa como fazia
com a filha.
– Você é que é um general. Eu, Claudia Alcântara, sou uma simples
soldada tentando marcar audiência com quem amo.
Ninguém tinha prioridade na sua agenda; nem mesmo ele, só seus
compromissos. Na semana posterior às suas férias, levou Lucila para
jantar. Foi um momento memorável. Percebendo como a menina estava
angustiada, disse-lhe:
– Você parece um pouco triste, minha filha.
– Não é nada.
– Fale, filha. Sou seu pai, sou seu melhor amigo.
– É que um menino na minha classe falou que eu não tenho pai. Então
eu briguei com ele.
– Que menino mau, minha filha. Isso é bullying ! Vou ligar
para a diretora.
– Mas papai...
– O quê, princesa?
– Fiquei pensando... será que ele não tem razão?
– Por que ele teria razão?
– Porque você... nunca me levou para escola, nunca participou das
festas, nunca foi a uma reunião de pais.
Dr. Alan congelou um suspiro, e em seguida, balançou a cabeça em
sinal de concordância.
– Filha vou reparar isso. O papai está saturado de atividades neste
mês, mas prometo que, assim que meus compromissos diminuírem,
procurarei leva-la à escola de vez em quando, curtir as festas e
participar das reuniões de pais.
– Eba! Obrigada, papai. Você me deu o melhor presente do mundo!
Finalmente, parecia que as bases da relação com a filha iriam mudar.
Um dia após essa conversa, dr. Alan realizava uma cirurgia
delicadíssima para extrair um grande tumor de um paciente de
meia-idade. O risco de lesar áreas nobres do cérebro e comprometer a
visão era grande. Estava fazia sete horas no centro cirúrgico.
Subitamente, o terremoto emocional que parecia ter desaparecido de
sua vida retornou. Ele teve taquicardia intensa, suor excessivo,
sentiu falta de ar e pressão no peito. E um sintoma novo apareceu:
tremor nas mãos. Dessa vez não teve dúvida, estava em seus últimos
minutos de vida.
– Continue, Ronald, continue...
Um medo incontrolável e indescritível de morte súbita encarcerou sua
mente. Um novo ritual se instalou. O anestesista fez o primeiro
atendimento. Mediu a pressão: dezoito por onze. Estava alta.
– Vou ter uma parada... cardíaca – falou, claudicando.
O anestesista, desesperado, deu-lhe uma dose de ácido
acetilsalicílico e chamou a emergência. Dr. Paulo de Tarso, seu
dileto amigo e fiel escudeiro, novamente foi acionado às pressas.
Encontrou-o a vinte passos da entrada da UTI.
– O diagnóstico estava errado! – Dr. Alan apontou para o
cardiologista. Estou realmente enfartando!
– Calma, Alan. Vamos descobrir o que é e tratá-lo – disse dr. Paulo,
ansioso, sabendo que, se tivesse errado o diagnóstico, poderia não
apenas perder o amigo, mas também manchar ou até enterrar sua
carreira. Ponderou para si: “Será que tudo foi falso-negativo, ou
será que o primeiro ataque não foi um enfarto, mas este é?
Coincidências não são impossíveis”. Enfim, estava confuso e não
queria pecar por falta de zelo médico. Horas depois, vieram os
resultados.
– E aí Paulo?
– Nada. Nenhum exame acusa que você enfartou. A irrigação dos
músculos cardíacos está perfeita. Átrio, ventrículos, tudo em ordem.
Só um pequeno prolapso da válvula mitral, muito comum na população
em geral.
– Não é possível!
– Tudo indica que você teve mais uma crise emocional, um ataque de
pânico.
– Ataque de pânico? Eu, Paulo?
– E por que não, Alan? Ninguém é perfeito.
– Eu cuido do cérebro dos outros, e o meu está me traindo? Tenha
santa paciência!
– Traindo ou avisando.
– Avisando do quê?
– Já lhe disse, da sua sobrecarga de trabalho.
– E a sua sobrecarga? E a das centenas de médicos desta instituição?
E a dos magistrados, promotores, executivos, professores? Quem é
poupado nesta sociedade? Todos serão vítimas de ataques de pânico?
– A sobrecarga da mente semanifesta de várias formas, com os mais
diversos sintomas psicossomáticos. O coração é um dos órgãos mais
agredidos pela ansiedade crônica.
– Concordo, mas não no meu caso. Sinto que estou no apagar das luzes
da vida. E essa sensação é terrível. Será que meu instinto cerebral
é mais esperto do que a minha inteligência? Acreditar nisso é o
apogeu da ingenuidade.
– Você é inteligente e tem convicções fortíssimas. Mas,
infelizmente, é quase imutável.
– Pela primeira vez vejo como é estar do outro lado, ser um
paciente, estar numa relação desigual diante de um médico que lhe
distribui conselhos rápidos e s
– Então procure outra opinião, Alan.
– Eu o respeito como amigo e médico, porém quero não uma, duas,
três, quatro opiniões de cardiologistas.
Dr. Alan não voltou mais ao consultório de Paulo de Tarso. Bateu à
porta de outros profissionais. Como era conhecido de todos, os
cardiologistas que o assistiam eram minuciosos ao examiná-lo. E
todos chegavam a mesma conclusão: não houvera enfarto.
– Nada dr. Alan – disse um.
– Felizmente não sofreu um enfarto, professor – comentou outro. – A
minha receita é um bom anti-hipertensivo e um tranquilizante.
– Sua pressão está irregular, mas a cintilografia mostrou que o
tecido cardíaco
Dr. Alan saía das consultas indignado.
Queria encontrar uma resposta concreta, palpável, para seu terror
psíquico. Admitia que a emoção abalava o físico, mas não nessa
magnitude, obviamente, não o seu corpo. Era inadmissível que
estivesse desabando por fenômenos psíquicos. Além da resistência ao
tratamento, outro fantasma começou a assombrá-lo, um inimigo que ele
jamais imaginou que o atingisse: o orgulho. Preocupava-se com o que
seus colegas e pacientes pensariam dele. O orgulho, esse sentimento
que infecta o psiquismohumano, às vezes é mais forte do que a
própria dor.
Referências
CURY, Augusto. Felicidade roubada. 1ª ed. São Paulo: Saraiva,
2014. P.65.