Do contato
com a Formação em Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers resultam
lembranças de momentos em que são experimentados diversos
sentimentos, à medida que são elaboradas as propostas da metodologia,
assim são revivenciados, como na vida: a raiva pela percepção da
falha, a constatação da impotência diante dos limites que são
impostos pela realidade.
As
possibilidades são diversificadas, através dos papéis quadriculados,
triangulados e pontilhados, papéis com gramatura grossa ou fina,
fáceis ou difíceis de recortar. Outro importante material utilizado:
o arame, material de difícil modelagem quanto mais grossa sua
espessura, o que proporciona a revivência das relações com figuras
de autoridade, sendo que, à medida em que se aceita os limites
impostos através da relação com esse material, pode ocorrer a
abertura para o aprendizado de uma convivência social mais evoluída,
refletindo nas relações interpessoais
É
importante a consciência do papel do terapeuta nesse momento, a
proposta Ramain-Thiers funciona como a Lei Maior, sua elaboração
oferece o limite necessário para o crescimento emocional de quem a
vivencia, sendo de extrema importância o suporte emocional para que
as leituras sejam adequadas e promovam a conscientização desses
limites. Que as pontuações, clarificações ou interpretações das
verbalizações sejam frutos de uma atenta observação e análise da
história de cada pessoa que busca a psicoterapia.
Segundo
Solange Thiers “Cabe ao
terapeuta ajudar as pessoas a relacionar quadradinhos, recortes e
arames a seus conteúdos emocionais, pois, segundo Lacan, o discurso
encobre o discurso do inconsciente que subjaz à linguagem. Assim, o
terapeuta Ramain-Thiers sabe identificar que os quadradinhos que são
verbalizados se relacionam à história de cada um. ”
Em uma
sessão de psicoterapia utilizando a proposta de psicomotricidade
diferenciada, ocorrem diferentes relações com objetos, com os quais
há a vinculação: a proposta funciona como objeto. Alguns mecanismos
de defesa do ego são ativados e atualizados quando da execução da
proposta, tais como, identificação, projeção, introjeção, os quais,
segundo referências psicanalíticas, integram todo o trabalho
psíquico que envolve as relações objetais.
Embasando
a Metodologia Ramain-Thiers, encontramos Melanie Klein, psicanalista
estudiosa do desenvolvimento infantil, que, ao conceituar o básico
do desenvolvimento da mente humana, afirmou a importância das
primeiras relações objetais e o impacto delas durante toda a vida
emocional do indivíduo.
Na teoria
Kleiniana encontramos o estabelecimento dos sentimentos de luto,
culpa e reparação. O sentimento de luto, originado na perda do
objeto amado, leva a sentimentos ambivalentes direcionados a esse
objeto, mas a vivência da culpa, pela crença de poder destruir o
mesmo através de seus impulsos agressivos, mobiliza no bebê o desejo
de reparação.
Segundo
Klein, esse conflito que se estabelece nessa fase do desenvolvimento,
permanece por toda a vida, existindo, então, uma constante luta
entre impulsos de destrutividade e impulsos amorosos e reparatórios.
As
propostas de psicomotricidade diferenciada contidas em cada
orientador terapêutico Thiers, trazem a possibilidade de reviver
esse conflito básico do desenvolvimento.
A
ocorrência do erro na proposta Ramain-Thiers faz emergir o luto,
pela perda da relação com o objeto trazendo à tona os sentimentos de
negação, raiva, tristeza, partindo daí para a tentativa de reparação,
que é a utilização de durex para emenda nos cortes equivocados ou
modelagem de arame e troca de cores de lápis.
Pela
natureza de cada proposta de psicomotricidade diferenciada, ainda
que exista a possibilidade de correção, aprende-se que é impossível
a reparação voltando as características do material como no
original, revelando, assim, a impotência de cada um diante da
realidade de que que ninguém está imune às falhas. A tomada de
consciência dessa realidade, torna possível a busca das mudanças
necessárias para criar novas formas de agir nos relacionamentos.
“Ramain-Thiers
propõe o rompimento da célula narcísica, a procura do outro, o
encontro do outro, em separado de si e a busca incessante do
preenchimento da falta, que só pode ser completada pela visão
holística do ser.” .“torna-se difícil aceitar, corrigir os erros,
voltar atrás e retomar. Nossa orientação básica é reviver, isto é,
aceitar a angústia da castração”
“A
busca do preenchimento da falta é o que mobiliza, em Ramain-Thiers,
a motivação interna de cada um, para não desistir da tarefa”
Na prática
clínica, os atendimentos, de forma geral, são buscados por pessoas
em seus processos de luto, muitas dores emocionais, vividas e
revividas. Lutos em diversas fases da vida, pela perda do objeto
amado, foco de investimento afetivo, pela perda de um emprego, pelas
tentativas falhas de serem aprovadas em concursos, pelas separações
conjugais, pelos finais de namoro, pela dor dos pais ao perceberem
que o filho tem necessidades especiais, por experiências de
sofrimento com violência ou pelas perdas por morte. O luto acontece
por diversas perdas, pois são importantes os vínculos que se rompem
e o enlutado precisa empreender uma tarefa difícil!
O trabalho
escolhido para relato trata de um rompimento por morte, o que propõe
uma necessidade de um olhar criterioso e cuidadoso, pois, conforme
os referenciais teóricos, as reações a esse tipo de luto se
desenvolverá conforme cada indivíduo aprendeu a vivenciar suas
perdas, ou seja, é necessária a busca pelo conhecimento e
compreensão do indivíduo enlutado em sua história, os aspectos
cognitivos e emocionais, principalmente no que se refere às reações
vivenciadas nas perdas.
Ao receber
o encaminhamento para consulta de uma mulher, enlutada pela perda do
filho jovem, assassinado em situação de extrema violência, já se
passavam dois anos do falecimento. Essa mãe havia feito, em sua
solidão, uma expressiva tarefa de seu luto. Porém, a dor estava ali,
expressa no dia a dia, na dificuldade para voltar ao trabalho e
momentos de profunda tristeza. Estava medicada desde a época da
morte do filho, e como foi um fato bastante divulgado, persistiam
incômodos através dos olhares das pessoas, que pareciam reavivar a
dor.
Freud já
nos alertava sobre o fato: “O luto pela perda de algo que amamos
ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera
evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui
um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si só não podem ser
explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras
obscuridades”. (do texto Sobre a transitoriedade, p. 317).
O olhar
terapêutico, assim, precisaria estar atento para as escolhas das
propostas, pois, ao mesmo tempo em que colocassem aquela mãe no
enfrentamento das falhas, pudessem mostrar novos caminhos para
elaborar sua perda maior. As referências de estudos no assunto
apontam para essa atitude, de cuidar do luto atual tendo em vista
outros lutos que possam não ter sido bem elaborados naquela história
de vida.
Aquela mãe,
naquele momento, evitava mover os objetos de uso pessoal do filho,
relatava situações de regressão a sentimentos de tristeza profunda
ao enfrentar momentos que reafirmavam a falta dele. Dessa forma, a
falta toma uma dimensão imensa, ou seja, podemos pensar além da
falta dessa mãe enlutada, mas também pensar no lugar dela nessa
falta, a falta da função materna. Havia a dificuldade de reencontrar
suas funções, funções como profissional, mulher e mãe dos outros
filhos.
Sigmund
Freud, em Luto e Melancolia, v.XVI, p. 249, diferencia o luto normal
da melancolia, definindo que, na melancolia, há a ocorrência da
perda da libido, que fragiliza e adoece, por haver um mecanismo de
identificação com o objeto perdido, voltando para o próprio ego os
sentimentos ambivalentes, referentes ao objeto perdido, resultando
em autocensura e autopunição, levando a intensos momentos de
depressão e agitação. Melancolia seria, então, uma falha no processo
normal do luto, uma vez que o luto normal é visto como uma fase
transitória, superável e se resolve quando ocorre a substituição do
objeto e a energia é reinvestida no novo objeto.
Segundo
Freud, o luto tem uma função psíquica, uma vez que representa uma
forma de trabalho psíquico. Durante o período de luto o sujeito
realiza um reordenamento do investimento psíquico, uma reorganização
da sua posição diante dos seus investimentos. Para que haja o
reequilíbrio entre o ego e o mundo externo e o restabelecimento
deste lugar, é necessário o reinvestimento da libido em um novo
objeto, o que possibilita o trânsito da energia entre o ego, o
objeto e o meio externo. Acontecendo a elaboração do luto.
Assim
sendo, aqui se trata de um luto complicado, tanto pela natureza do
vínculo, da perda do filho do desejo, como a forma como aconteceu a
morte, violentamente. Seu luto ainda retoma intensidade diante de
fatos da realidade da região onde habita. Embora tenha investido
toda sua energia racional num trabalho criado para fortalecimento de
uma comunidade, o mesmo trabalho a coloca em um lugar onde precisa
estar sempre forte emocionalmente. De certa forma este trabalho a
fortalece, porém, a criação de um novo sentido para a vida pode
auxiliar na efetiva elaboração do seu luto.
No
processo de psicoterapia, ainda em andamento, ficam evidentes as
carências emocionais de uma vida, aparecem comportamentos que
demonstram a constante busca afetiva, alternando com fases de maior
isolamento.
Foi de
grande valia o estudo dos conceitos de J. William Worden, que
desenvolveu um modelo que ele chama de “Tarefas do luto” (1991). Sua
premissa é que, para processar a dor, é necessário trabalho. Esse
trabalho exige empenho e participação ativa por parte da pessoa que
está sofrendo. As tarefas do luto são: 1- Aceitação da perda; 2-
Processar a dor do luto; 3- Ajustar-se ao mundo sem a pessoa morta;
4- Encontrar conexão duradoura com a pessoa morta em meio ao início
de uma nova vida.
Worden
estabelece, também, os mediadores do luto, a serem considerados para
maior compreensão por parte do terapeuta e assegurar um trabalho
terapêutico de respeito para com o enlutado. São mediadores: a- quem
era a pessoa que morreu? (conforme o grau, forma de vínculo ou forma
de falecimento); b- Natureza do vínculo (força do apego, segurança
do apego, ambivalência, questões mal resolvidas, conflitos ou
relacionamentos dependentes); c- Como a pessoa morreu?; d-
Antecedentes históricos (perdas passadas e saúde mental do enlutado,
se há lutos que transcendem, ou seja, atravessa gerações); e-
Variáveis de personalidade do enlutado.
No luto em
questão, tanto a natureza do vínculo como as questões de conflitos
de relacionamento familiar e antecedentes históricos determinam a
intensidade dos sintomas. Há que se considerar as variáveis de
personalidade, também determinantes da forma como esse processo pode
ser elaborado.
Solange
Thiers, com sua criação, fornece um material sem comparativos para o
trabalho do luto, considerando as possibilidades de, através das
propostas, inseridas em um contexto terapêutico apropriado para o
necessário acolhimento, o que garante o fortalecimento emocional do
indivíduo.
A
oportunidade do enfrentamento dessas perdas em um meio terapêutico
continente, impulsiona para o encontro de novos significados em cada
criação, o que ocorre a partir das falhas, do erro na execução das
propostas, a cada indivíduo se oportuniza dar um novo significado em
cada criação que ocorre a partir das falhas.
A criação
em Ramain-Thiers é a possibilidade de reparar a perda. A busca e
escolha de novos caminhos, a partir do erro, levam ao aprendizado da
vida, aprendizado, que pode se efetivar, na elaboração das propostas
de psicomotricidade diferenciada.
A função
de reparação das propostas Ramain-Thiers pode ser percebida em cada
modalidade de proposta que oferecermos ao indivíduo que busca a
psicoterapia:
Nas
propostas de cópia, a reparação acontece a partir das trocas de
lápis, tanto pela atitude da troca quanto pelas cores que se
alternam, propiciando uma reparação saudável. Na cópia, o erro no
traçado significa a perda, a utilização do vermelho em primeiro
lugar possibilita a emergência de sentimentos de raiva pelo erro, o
azul utilizado a seguir, no próximo erro, traz o aprofundamento e a
vivência do luto,(trazendo à consciência o que está inconsciente), e
por fim, a utilização do verde, a cor da reparação, repouso de
tensão, pelo significado de esperança e longevidade é a cor verde
que traz tranquilidade e estimula para prosseguir na tentativa de
preenchimento da falha.
Nas
propostas de recorte, a utilização do durex é a possibilidade de
reparação, quando permite fechar, aderindo as partes em que o corte
foi feito equivocadamente e permitindo a escolha de novo traçado
para o recorte.
Observamos
também o valor reparatório que tem o acolhimento e contenção do
grupo e do terapeuta. Ao expressar o conteúdo verbal, entrando em
contato com seus limites, o indivíduo necessita ser aceito e
compreendido em seus sentimentos, para que possa seguir sua busca
pelo crescimento.
A escolha
de propostas semidiretivas para início desse processo, com essa mãe
enlutada, pareceu adequada, por considerar que propostas assim
privilegiam a criatividade e tranquilizam, pelo não enfrentamento
direto dos limites.
A seguir,
apresentei propostas de cópia, caleidoscópio e transformação,
objetivando inicialmente a vinculação ao trabalho terapêutico pela
identificação e é o que acontece até o momento, pois ainda estamos
trabalhando, objetivando a necessidade do seu autoconhecimento, o
conhecimento de suas habilidades de criação e recriação.
Recentemente, ela expressou verbalmente as diferenças que percebe em
si com o processo terapêutico, ao comparar suas expressões de dor
com as de outros enlutados com quem tem contato, disse sentir-se
mais forte diante de situações em que é solicitada a falar da morte,
creditando ao trabalho psicoterápico a visão mais fortalecida frente
à perda.
Quanto ao
término do luto, Worden evita definição de tempo para finalização,
porém, escreve: “Na perda de um relacionamento próximo, eu
desconfiaria de resolução completa em menos de um ano, e, para muito,
dois anos não é demais. Uma referência de que o processo de luto
está próximo de se completar é quando a pessoa consegue pensar na
pessoa que morreu, sem sentir dor. ” “... o processo de luto termina
quando a pessoa consegue reinvestir suas emoções na vida e no viver.”
Solange
Thiers, com a criação da Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers,
demonstra uma realidade difícil, porém necessária de ser aceita. Os
erros mostram a impotência de cada um, a impossibilidade de viver a
vida sem frustrações.
“Sabemos que um erro na vida deixa marcas, não se apaga...mas
sabemos, também, que o erro oferece condições de reparação. Assim, o
erro tem o mesmo peso que o acerto, pois ele é a possibilidade de
redescoberta de um novo caminho, de um novo potencial e isto é
gratificante, como acertar sem errar. ”
No caso
relatado, as propostas de psicomotricidade diferenciada e
verbalizações, componentes básicos da Metodologia Ramain-Thiers,
permitem uma continuidade, num processo de atividade e,
principalmente, criatividade. A disponibilidade pessoal dessa mulher
em participar do processo resulta em modificações em seu modo de se
relacionar com os outros filhos e com o marido, relações por vezes
muito prejudicadas pela falta de energia que apresentava
inicialmente, diante de situações que não fossem direcionadas às
recordações do filho perdido.
E esse
universo, de mães que convivem com as faltas dos filhos mortos
prematuramente, direcionou meu olhar à atenção, aceitação e,
principalmente o estudo para melhor entendimento dos processos mais
fortes, relacionados ao luto materno.
Referencial teórico:
FREUD, S. Luto e Melancolia, 1917. V. XIV, p.
249. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.
REUD, S. Sobre a transitoriedade, 1916. Vol.
XIV, pag.313, Obras Completas. Rio de janeiro: Imago Editora,
2006.
THIERS, S. e Cols. Sociopsicomotricidade
Ramain-Thiers - Uma leitura emocional, corporal e social. 2ª ed. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1998
THIERS, S. Ser Terapeuta - Teoria e
Técnica Ramain-Thiers. Caderno de Especialização Infantil. Rio de
Janeiro: Cesir, 1999.
THIERS, S. Orientador Terapêutico Thiers para
Adultos E. Rio de Janeiro, Cesir,
1995.
WORDEN, J. William. Aconselhamento do Luto e Terapia
do Luto. São Paulo: Ed. ROCA, 2013.