Artigo 2
Os diferentes
saberes da modernidade
Carlos Alberto de
Mattos Ferreira |
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OS DIFERENTES SABERES DA MODERNIDADE
- Imagem e esquema corporal –
“
O que tem valor duradouro em nós, numa sociedade
impaciente, que se concentra no momento imediato? “
(Richard Sennett)
“Uma meta existe para ter um alvo, mas quando o poeta
diz meta, pode estar dizendo o inatingível” (Gilberto
Gil)
Carlos Alberto de Mattos
Ferreira
Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ),
Mestre em Educação (UFRJ),
Psicólogo (USU), Fonoaudiólogo (IBMR), Psicanalista e
Psicomotricista.
Coordenador de pós-graduação em Psicomotricidade (IBMR).
RESUMO:
A modernidade vem produzindo novas formas de
subjetividades e gerando desafios para o campo da
educação e da saúde. Considerando-se as noções de imagem
e esquema corporal como produzidas na interface do
sujeito com a cultura e o outro, compreende-se que o
meio é agente de novas formas de subjetividades e afeta
as relações do sujeito consigo mesmo, com o outro, com o
meio físico e o social. Relações de espaço e tempo
apresentam-se cada vez mais instáveis, mutantes, e em
surpreendentes transformações no uso de instrumentos e
signos. A efemeridade, a indiferença e a fragilidade dos
laços sociais inscrevem o sujeito num modelo social que
prioriza o produto no lugar do vínculo.
O resultado é a descartabilidade das relações. Em nível
individual, irrompem as depressões, as ansiedades,
fobias, inibições e uma gama de sintomas nessa interface
da imagem e do esquema corporal, com a modernidade.
Introdução:
A modernidade pode ser entendida como uma etapa da
civilização identificada com a razão cientifica e a
tecnologia. Sob um aspecto mais amplo, significa o que é
mais recente e o que não tem identidade; é aquilo que se
opõe ao velho e ao passado (SUBIRATS, E., 1984/1991).
Sennett (2012:9) analisa a modernidade sob a ótica do
capitalismo flexível. Flexibilidade que gera ansiedade
por não saber muito bem quais os melhores caminhos a
seguir. Em um passado recente, a noção de carreira
apontava para um caminho a ser percorrido. Algo análogo
ao que Bauman denominou de período sólido.
No presente, dentre as características sociais que
provocam sintomas, temos, por exemplo, o imediatismo,
que é a busca de resultados no mais curto prazo possível.
Há um projeto que impede ou inibe as propostas de longo
prazo. No mundo corporativo contemporâneo, as próprias
empresas têm vida lábil, desfazendo-se para se
constituir em novos agregados. Todos os seus
funcionários estão submetidos a essa mudança.
As novas ideologias que afetam a organização do tempo no
trabalho, também alteram o próprio sentido deste.Por
exemplo, com a compreensão de que “não há longo prazo”,
também corroem-se os afetos ligados à confiança, à
lealdade, à construção de vínculos, e ao compromisso
mútuo. As novas empresas fomentam o distanciamento e a
cooperatividade superficial, gerando laços frágeis de
relacionamentos no trabalho.
Leader (2013/2015) sinaliza que os manuais de
administração contemporâneos apresentam conteúdos com
fortes traços maníacos e eufóricos. Sinais de traços da
bipolaridade estão presentes nos valores da sociedade. A
compulsão para atingir metas, o estímulo à produtividade
que leva o sujeito à exaustão; onde o valor do
funcionário é avaliado pelo desgaste em oferecer suas
horas livres de dedicação.Eventuais estresses e
adoecimentos são vistos como valores positivos no mundo
corporativo contemporâneo. É a nova escravidão global. O
status da entrega para o adoecimento.
A cultura contemporânea também contribui pela forma que
instiga nossa autoimagem. Gil expressa em Metáfora
(1982) que “a meta pode ser o inatingível”. E
Sennett corrobora ao dizer que as metas são criadas para
não serem atingidas, mas, sim, para que os indivíduos
doem o máximo de si.
Dentre as principais contribuições de Bauman (2007),
destaca-se que a cultura da patologização da educação é
a mesma que cria as normas do mercado. Sobre a atenção,
por exemplo, exigir que jovens imersos num modelo
consumidor, com alto grau de descartabilidade de objetos
e multiplicidade de estímulos, possam ter excelente
desempenho em todos os níveis de aprendizagem, parece
ser um imperativo um tanto quanto ansiogênico.
O Eu, a imagem e o
esquema corporal ou
Os efeitos do social
no psiquismo
Os conceitos de esquema e imagem corporal são
compreendidos dentro do campo psicomotor sob diferentes
perspectivas. Sob uma ótica clássica, o conceito de
esquema corporal foi criado pelo neurologista Henry
Head, em 1911.O conceito de imagem corporal foi
estabelecido pelo psiquiatra Paul Schilder, em 1935, ao
sustentar que a imagem do corpo é constituída por suas
bases fisiológicas, estruturas libidinais e pelas
influências sociais.
Os trabalhos de Jean Piaget influenciaram
psicomotricistas, tais como Jean Le Boulch, que
estabelece uma concepção de esquema, fortemente
vinculada ao desenvolvimento das funções sensório
motoras e indo em direção até às hipotético-dedutivas.
Como descrito por FERREIRA (apud Le Boulch, 2008:23),
“contribuir na construção da imagem do corpo operatório,
por meio de uma estruturação continuada do corpo vivido,
corpo percebido e corpo representado”.
Henri Wallon (1932/1971) sustenta a ideia de um esquema
corporal constituído pelas interocepções, propriocepções
e estereocepções, ou seja, das informações vindas do
interior do corpo, das sensações tônico-musculares e das
informações provenientes do mundo exterior. Estas
informações estão indissociavelmente ligadas ao conteúdo
afetivo de cada momento em que se exercem. O tônus é
produto de uma experiência afetiva, por excelência.
Wallon descreve um importante estágio da construção do
Eu, quando a criança começa a relacionar sua imagem e
seu nome, ao próprio corpo. Primeiro, a criança se vê no
espelho, sem relacionar a imagem ao corpo próprio.
Segundo, por meio de um adulto, a criança se vê no
espelho e começa a relacionar aquela imagem refletida à
sua percepção corporal. Não coincidem no espaço a
propriocepção e a estereocepção. O Eu se inscreve
dividido. A percepção do corpo com suas sensações, não
ocupa o mesmo lugar que a imagem.
O desenvolvimento da imagem e do esquema corporal é
observável durante a ontogênese. A criança que,
inicialmente se chama na terceira pessoa, passa a se
chamar na primeira, geralmente, por volta dos três anos.
É quando passa a dizer “Eu”. Seus movimentos
incoordenados vão perdendo impulsividade e ganhando
maior controle voluntário.
Com essa contribuição sobre a
imagem do espelho, em Wallon, Jacques Lacan constrói uma
teoria do estádio do espelho, na qual a criança
se vê numa totalidade antecipando um corpo ainda
fragmentado, gerando uma dissociação entre imagem e
corpo próprio. Seguindo esses passos, Levin (2003)
desenvolve um campo teórico e
clínico, na psicomotricidade, baseado na construção da
imagem do corpo apreendida pelo desejo do Outro. Em
outras palavras, a criança constrói sua imagem e seu
esquema na relação com o Outro e em função do desejo
deste. Seguindo uma trilha iluminada por Rimbaud (1871):
“O Eu é o outro”.
Dessa perspectiva, entende-se que esquema corporal é
formado pelos instrumentos corporais que podem ser
avaliados, tais como: movimento, atenção, linguagem,
percepção, etc, e que a imagem é não avaliável, pois
trata da subjetividade de cada sujeito. O
desenvolvimento das funções não se confunde com o
sujeito, entretanto, pode depender da imagem que este
tem de si e que, inicialmente, é constituída pelo Outro.
Para o psicólogo russo L.S. Vygotsky (1930), a formação
da representação de si e do mundo passa por uma
interação entre o individuo (e seu organismo) e o meio
sócio-histórico.
A imaginação é o sustentáculo de toda a organização
mental e é constituída na experiência do sujeito no
mundo, por meio da sua relação entre movimento e
linguagem. Todas as funções superiores, tais como ação
voluntária, atenção voluntária estável, memória
semântica, percepção significante, pensamento verbal-lógico
e fala são construídas por meio desta relação e
sustentadas pela imaginação.
O Neuropsicólogo, A. R. Luria, seguindo os caminhos de
Vygotsky, vem a definir sensação, como o processo básico
de recepção das informações, tanto externas (sons,
cheiros, afagos, toques e etc.), quanto internas (sede,
fome, dor, prazer, etc.). Por isso, podemos
considerá-lacomo a fonte primordial e primitiva dos
conhecimentos pertinentes a leitura sensorial do mundo
exterior e do nosso próprio corpo. Segundo Luria:
“Elas representam os
principais canais por onde a informação relativa aos
fenômenos do mundo exterior e ao estudo do organismo
chega ao cérebro, permitindo ao homem compreender o meio
ambiente e seu próprio corpo”
(1979:1).
Ao classificar as sensações, Luria estabelece as
interoceptivas, as proprioceptivas e as extereoceptivas.
As interoceptivas são informações viscerais, cujos
estímulos vêm de dentro do organismo eestão entre as
formas menos conscientes e mais difusas, e conservam sua
semelhança com os estados emocionais (desconforto, fome,
tensão, frustração, calma e conforto).
As proprioceptivas asseguram os sinais referentes à
posição do corpo no espaço e, em primeiro lugar, à
posição do aparelho de apoio e movimento no espaço. Tem
como base aferente a regulação, por ex: a resposta de
uma atividade é o que regula e modifica o curso de um
novo programa de ação. São constituídas pelas
informações musculares e articulatórias e suas
respectivas sensações de equilíbrio ou estática. As
exteroceptivas são informações de contato (paladar, tato)
e de distância (olfato, visão e audição).
Estas idéias de Luria influenciam o trabalho do
psicomotricista Vitor da Fonseca ao compreender a
atividade mental como um complexo de unidades, cuja
atividade sincronizada, plural e harmoniosa permite ao
ser humano receber informações do mundo exterior, criar
uma auto-imagem subjetiva da realidade objetiva,
predizer e antecipar o futuro, avaliar os resultados das
suas ações e regular e ajustar os seus comportamentos (Luria,
A., 1964 apud Fonseca, V.).
Em síntese, Vitor da Fonseca denomina de somatognósia o
esquema corporal e assim o define:
“Trata-se de uma
noção que envolve uma dimensão singular e plural, não
uma exploração solitária (Vygotsky) do envolvimento,
instrumento simbólico por excelência, substrato da
linguagem, unidade e diferenciação afetiva e emocional,
identidade do sujeito e seu instrumento de aprendizagem,
uma mistura do significativo e do existencial pessoal,
numa palavra, envolve o psíquico, é o psíquico“ (2002:30
in Ferreira e Thompson).
Dentro destas perspectivas aqui descritas, pode-se
pensar quantos olhares distinguem-se na compreensão dos
conceitos de imagem e esquema corporal. E, mesmo estes,
são apenas um fragmento de muitas outras miradas sobre
este tema.
Conclusão
Esses são alguns pontos que podem elencar sobre esta
perspectiva de que as influencias socioculturais afetam
a constituição do psiquismo. Muitos sintomas da clínica
contemporânea têm causa nas organizações
sócio-econômico-culturais. A hipervalorização do ter (o
produto, a marca), em vez do ser (o talento, a
afetividade) produzem sintomas que se expressam no corpo.
Corpo que responde pelo Eu. Eu da imagem e do esquema
corporal, afetados pelo meio físico e social. Eu do
inconsciente e o Eu da consciência. Diferentes
subjetividades servindo múltiplos saberes. Relação
tateada, neste sintético artigo, sobre os diferentes
saberes da modernidade.
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