Vol. IX: Vitrais 79 - mar 2016
A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers - ISSN 2317-0719
 
     
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VITRAIS
Vol. IX: Vitrais 79

                        mar 2016

 

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Artigo 1

As contas do rosário da Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers

Virgínia Chamusca

 

AS CONTAS DO ROSÁRIO DA SOCIOPSICOMOTRICIDADE

RAMAIN-THIERS

Virgínia Chamusca

Psicóloga. Mestre em Psicologia da Educação. Sociopsicomotricista Ramain-Thiers. Educadora Física. Especialista em atraso profundo do desenvolvimento.

 

            Gostaria de agradecer à Sociedade Brasileira Ramain-Thiers, a honra e alegria em participar desse Congresso junto a profissionais, colegas e amigos queridos, cujas contribuições científicas valorosas,os tornaram especiais e necessários à construção de um mundo melhor.

            Agradeço igualmente a oportunidade que este encontro criou em minha vida, na medida em que assumi a responsabilidade por esta apresentação, de buscar concentrar a minha atenção de forma sistemática, ordenada e focada, às reflexões que já vinha então fazendo sobre um tema a mim precioso: refiro-me ao sagrado, ou melhor, às experiências sagradas. E neste caso, o que há de constitutivo nas mesmas. É verdade que o tempo dedicado ao tema não fez com que me apropriasse dele como gostaria. Mas tornou-me mais atenta e sensível aos seus acontecimentos. Carrego-o em minhas entranhas, o que prova que o sagrado nem sempre é comunicado verbalmente, mas vivido. Inclusive com sofrimento.

            Não poderia deixar de expressar o meu contentamento e profunda gratidão à presença dos senhores que se dispuseram a compartilhar comigo o que pensam alguns autores sobre este fenômeno e a relação que faço com o Ramain-Thiers.

            Peço-lhes perdão, e me perdoo, pelo recurso da leitura por mim utilizado, sem o qual, talvez, não poderia estar aqui. Obrigada pelo gesto – que a presença dos senhores simboliza – que me inclui; reconhece o que tenho a dizer e me reconhece como pessoa. Prometo em retribuição que ela transcorrerá de forma breve e será realizada com muita ternura e o devido respeito que merecem.

            Conforme explicitado no resumo do trabalho, esta apresentação tem como propósito sensibilizá-los a respeito da importância da experiência do sagrado, ou mais especificamente, sobre o que o professor Gilberto Safra denomina ‘resgate da memória do humano’, que dela provém, e que é essencial para a constituição de um self integrado. A compreensão dessas ideias, absolutamente imprescindíveis à educação, apesar de pouco exploradas e consideradas, serão discutidas à luz das teorias de Donald Winnicott, principalmente em seu livro O Brincar e a Realidade e Gilberto Safra, em Hermenêutica na Situação Clínica – O desvelar da singularidade pelo idioma pessoal.

A perspectiva de o ser humano vir a constituir-se como pessoa,característica primordial de um self integrado, ocorre mediante dois registros fundamentais: o ôntico e o ontológico. A manifestação concomitante dos mesmos,como geralmente é observada, nos coloca frente àextrema vulnerabilidade e força do ser humano.

O registro ôntico, nos ensina Safra, diz respeito aos acontecimentos pertinentes à história de vida de cada um de nós, inclusive a de nossos ancestrais.Trata-se, portanto, de uma experiência que é vivida no espaço e no tempo. De natureza fundante, o registro ontológico tem como configuração principal o fato de ser pré-existente. Esta condição originária faz com que o ser humano se coloque existencialmente frente à necessidade de ser.

            É nesse sentido que,em função do que testemunho junto aos meus pacientes e frente às minhas próprias vivências durante a formação pessoal em Ramain-Thiers, que postulo que este método, mediante as suas diversas atividades de psicomotricidade de mesa e corporais, acompanhadas dos momentos de verbalização, além dos princípios que norteiam a sua práxis, oferece um importante espaço de sustentação (holding) para a ocorrência dessas experiências. São elas, mediante esta rica diversidade de propostas, as Contas do seu lindo e abençoado Rosário.

            A escolha desse tema, que observo ter se tornado uma espécie de mantra em minha prática profissional em razão da constância com que aparece não somente em meus trabalhos, mas eu diria que também frente aos caminhos que busco trilhar, ou que me descubro trilhando, têm como pano de fundo e motivação, as questões existenciais ligadas àprofunda condição de precariedade humana; “viver é perigososo”, nos assegurava Guimarães Rosa. Refiro-me a esta condição, não como um sentimento, mas como um acontecimento inexorável e inescapável – real -, absolutamente doloroso e muitas vezes devastador, e que é substancialmente agravado pelo pensamento e modo de ser racionalistaque trata de torná-las (as questões existenciais) mais sombrias.

Sombrias e vergonhosas como a corrupção, a impunidade; enlouquecedoras, como a avassaladora pobreza do mundo; perversas como o cinismo dos nossos governantes frente às nossas mazelas sociais e éticas, que nos roubam despudoradamente direitos conquistados;desalentadoras como a ‘violência passiva que alimenta a fornalha da violência física’, nos alertava amorosamente, Gandhi. Todas, sem exceção, circunstâncias que configuram no meu entender,crimes hediondos contra a humanidade.

Nada melhor, ao se tentar definir um conceito, do que criar uma situação em que as pessoas, no caso vocês, possam vir a experimentá-lo na própria pele. Mas uma vez que o nosso objeto de estudo é o ‘sagrado’, o ‘resgate da memória do humano’, em verdade posso lhes dizer que não é na pele, mas sim, naprópria alma que desejo que elepossa vir a ser vivenciado. Trata-se de algo muito parecido ao que os filósofos orientais, ou o nosso eterno Paulo Freire, chamaria de ‘criar o caminho caminhando’.

O vídeoque apresentarei a seguir, intitulado “Caminhando com Tim Tim” (Genifer Gerhardt) segundo o meu parecer, não só traduz o que estou chamando aqui de ‘sagrado’como nos remete à experiência do próprio fenômeno e ao ‘resgate da memória do humano’, que nos permitirão perceber, confirmar pressupostos e ainda vivenciar um encontro cujo início foi anterior, muito anterior a este que acontece aqui e agora.E caso conquiste a graça de fazê-los perceberem-na nesses termos, meu gesto passa a ser oferta. Sagrado, portanto.https://m.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI&feature=share.

Muitos são aqueles que ao refletir sobre os seres humanos a partir dos seus sofrimentos e angústias, esperanças e caminhos por trilhar, comungam de uma mesma compreensão a respeito das verdadeiras necessidades da alma humana. Gilberto Safra (pág. 15, 2006), citando a famosa frase de Dostoieviski “A Beleza salvará o mundo. ”, aponta para o anseio de ser, para o anseio de Verdade, representado pela ética, para o anseio de Beleza (estética) e para o anseio do Bem, representado pelo sagrado, imprescindível à prática clínica e à educação.

            Premissa básica do pensamento de Winnicott – para ele sagrada - e que a vinheta-poesia de modo sublime nos consagrou – está contida na crença profunda que ele sempre trouxe consigo, em relação à força e potencial de criação e transformação do ser humano, sendo da sua natureza poder ser e agir de forma compassiva. É desta mesma reflexão que se origina também a sua concepção de que é ainda dessa mesma natureza humana a centelha divina da qual o ser humano é dotado e que o faz buscar a realização plena desses preceitos e princípios existenciais.

Outro aspecto importante é que este mesmo ser humano, originariamente, sempre se expressou por uma busca eterna de vir a constituir-se enquanto pessoa (registro ontológico).Em seguida, e paradoxalmente, o discernimento segundo o qual não existe um bebê sem a sua mãe, ou alguém que cumpra esta função.Sendo assim, o self winnicotiano seria constituído pelos desdobramentos desse seu potencial inato e a sustentação (holding) proporcionada pela mãe, principalmente em seus primeiros meses de vida.

            Estas proposições colocam em evidência, a importância de a clínica, a educação e, em verdade a sociedade como um todo, poder estar assentadas na compreensão da necessidade de se contemplar o ethos humano levando em consideração o idioma pessoal do ser. O Ramain-Thiers, segundo o meu entendimento e testemunho, qual a mãe dedicada winnicotiana e a mãe sagrada de Valentim,reflete em seu contexto terapêutico o que acredita/sabe ser o melhor para a vida e, portanto, para o outro. Daí o seu profundo respeito e dedicação ao ser único ali presente em cada um. Resistir é sagrado porque existir é divino. E isto faz com que possamos nos surpreender peregrinos. Diz Safra (pág. 17, 2006):

A clínica precisa estar enraizada no ethos humano, contemplando a singularidade de cada analisando, para que não só possamos enfrentar o adoecimento do ser que nossos pacientes apresentam, mas para que a nossa prática seja uma ação política e de resistência às características do mundo em nosso tempo.

A Educação ao seguir a lógica do pensamento racionalista, preocupada única e exclusivamente, por exemplo, com os resultados da aprendizagem enquanto pontuação no intuito de conquistar uma colocação privilegiada junto a um ranking, visando o reconhecimento da instituição de ensino para obtenção de lucro financeiro exacerbado ou político, trata o seu aluno não como uma pessoa, mas como uma mercadoria pronta para ser descartada quando não for mais interessante (lucrativa).

O filme sobre Valentim nos oferta a experiência do sagrado, ao dialogar com a leveza, a serenidade e dedicação de sua mãe que aprende a ser uma mãe satisfatoriamente boa, mediante os saberes do seu filho queindica caminhos sagrados. A sua capacidade empática, faz com que possa colocar-se em seu lugar, podendo perceber as suas necessidades ontológicas a partir do seu idioma pessoal, respeitando, portanto, o que faz sentido para ele, segundo esta perspectiva. É filmada sempre pela metade, assim como os outros personagens, com exceção de Tim Tim. Não obstante, percebemos o brilho dos seus olhos, a energia, esperança e gratidão da força do seu olhar, mediante a ternura contida em suas palavras, a doçura da sua voz e gestos abençoados de onde depreendemos a felicidade que saltita das coisas mais singelas e que nos dão a dimensão daquele encontro sagrado, as coisas boas da vida.

O vídeo-poesia sobre Valentim, o seu mundo e entes queridos, toda a atmosfera encantadora repleta de ternura e graça–o som do acordeão... Mas também as cores das Contas do Rosário do Ramain-Thiers – casarios, mandalas, borboletas... Ah, as borboletas!Flores e mais flores, fluxo de vida! -, nos inspira, promovendo em nós o resgate de nossas raízes, os nossos antepassados, o nosso senso de unidade! ... E ao invés de melancolia, por exemplo, nossa alma se revela fazendo com que nos identifiquemos com as saudades do humano adormecido em nós. Experiência sagrada– Reverência à vida.

Gostaria de apresentar outra analogia sobre a experiência do sagrado queidentifico na Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers, e com ela, finalizo este trabalho.

            Manhã de sábado, final de abril, voltava de mais uma infinita arrumação do meu consultório novo. Exausta, preocupada com os preparativos finais de uma sofrida mudança que não acabava nunca, para um lindo e acolhedor lugar, mas cujo espaço físico era bem menor que o anterior e no qual já estava há 22 anos, via-me forçada a lidar com o desapego de uma maneira atroz e repentina. O meu humor não era dos melhores.

            Apesar de cedo, pesarosa, enfrentava o dissabor de um pequeno, mas interminável trecho de congestionamento, onde diversas eram as pessoas que aproveitavam a situação caótica para vender produtos, pedir esmola, fazer pesquisa, lavar vidro de carro, o que só serviu para exacerbar o meu ânimo, deixando-me mais irritada e de mal com o mundo e suas pessoas que, em verdade, não tinham responsabilidade alguma com o que acontecia comigo.

            O constrangimento não era somente pelo fato de estar sendo abordada, mas o que a situação em si provocava em mim frente a este cenário de devastação social tão conhecido e extremamente sofrido. Nisso, um rapaz se aproxima e eu, sem que ele tivesse emitido qualquer palavra, digo:

_“Não tenho nada”.

O jovem, não sei se por já estar acostumado,sem titubear, responde de imediato:

_“Mas eu tenho”.

O modo como proferiu esta pequena e impactante frase, em momento algum poderia ser traduzido como uma atitude proveniente de uma pessoa arrogante ou prepotente, como poderíamos de forma equivocada, interpretar. Ao contrário, refletindo, sim, profunda humildade e dignidade, qual poeta, colocou-se a falar sobre os caminhos aos quais se destinou cuja forma de expressão era de uma beleza sem precedentes.

A dignidade com que manifestou os seus sentimentos sobre a paz, a liberdade e a saúde do planeta, criou um apaziguamento em minha alma capaz de resgatar em mim tudo aquilo que acredito ser o melhor para a vida e para o mundo. Reconciliação sagrada.

Leonardo Boff (Vida para Além da Vida, pág. 107), nos ensina que Deus vê o mundo a partir da eternidade. Concebê-lo a partir dessa premissa, segundo ele, é iniciar-se na esperança e na plenitude. O nosso rapaz, de olhos brilhantes de esperança que vê o mundo e suas pessoas com os olhos de Deus, ao mencionar com tanta amorosidade a importância da prática espiritual, resgatou em mim a capacidade de resistência, o que fez com que me reconciliasse com a vida e o viver. Experiência sagrada.

Este episódio me remete a uma Virgínia há mais de 30 anos atrás. Se eu não me engano, a última semana da sua formação pessoal. Entre agonia e êxtase, posso lembrar, não conseguia mudar o rumo da história que a mantinha aprisionada, e dar por terminada a execução de uma importante lanterna de arame que, diferentemente dos outros trabalhos, seria levada por sua dona para, simbolicamente, iluminar o seu caminho de eterna peregrina. Condição originária, registro ontológico.

Aqueles que tiveram a oportunidade de vivenciar Ramain-Thiers sabem, que do mesmo modo que a mãe de Tim Tim, em muitas situações o terapeuta ‘só respeita e acompanha, só olha e vibra’ (Genifer Gerhardt – Caminhando com Tim Tim). Minha terapeuta de formação, com o mesmo brilho do olhar do rapaz da minha história, se sou capaz de reproduzi-la, me disse algo mais ou menos assim: “Vá em frente, você há de conseguir terminá-la. Leve-a consigo, ela lhe apontará caminhos”. Confesso não saber por onde anda a minha lanterna. Mas não tenho dúvida de que aquele olhar, aquele gesto, absolutamente necessários naquele momento, trago comigo até hoje. Acontecimento sagrado, resgate da memória do humano que me impulsiona frente à constituição da espiritualidade, que Safra define como – [...] o posicionamento existencial do ser humano frente a seu porvir, que lhe possibilita constituir um sentido para o seu percurso pela vida [...](pág. 20, nota de rodapé, 2006).

Ramain-Thiers, assim como a mãe de Tim Tim e o rapaz que conheci no congestionamento, parecem compartilhar propósitos semelhantes. Olha para aquele que veio em busca de auxílio para o abrandamento de seus sofrimentos, com os mesmos olhos de esperança e fé daqueles que desenvolveram a graça de saber apreciar e reconhecer na vida e no ser ali à sua frente, o humano – adormecido - e o divino a ser conquistado. “[...] O tempo é senhor de delicadezas [...] chegar não é mais valioso que a andança” (Genifer Gerhardt, Caminhando com Tim Tim). Tarefa sagrada. Pura transcendência! ...

Obrigada.

 

 

COLEÇÃO
RAMAIN-THIERS

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Volume I
Ramain-Thiers: a vida, os contornos
A re-significação para o re (nascer)
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Volume II
A potencialidade de cada um:
Do complexo de édipo a terapia de casais
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Volume III
A dimensão afetiva do corpo:
Uma leitura em Ramain-Thiers

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Volume IV
As interfaces de Ramain-Thiers

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