Artigo 1
As contas do
rosário da Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers
Virgínia Chamusca |
|
AS CONTAS DO ROSÁRIO DA SOCIOPSICOMOTRICIDADE
RAMAIN-THIERS
Virgínia Chamusca
Psicóloga. Mestre em
Psicologia da Educação. Sociopsicomotricista
Ramain-Thiers. Educadora Física. Especialista em atraso
profundo do desenvolvimento.
Gostaria de agradecer
à Sociedade Brasileira Ramain-Thiers, a honra e alegria
em participar desse Congresso junto a profissionais,
colegas e amigos queridos, cujas contribuições
científicas valorosas,os tornaram especiais e
necessários à construção de um mundo melhor.
Agradeço igualmente a oportunidade que este
encontro criou em minha vida, na medida em que assumi a
responsabilidade por esta apresentação, de buscar
concentrar a minha atenção de forma sistemática,
ordenada e focada, às reflexões que já vinha então
fazendo sobre um tema a mim precioso: refiro-me ao
sagrado, ou melhor, às experiências sagradas. E neste
caso, o que há de constitutivo nas mesmas. É verdade que
o tempo dedicado ao tema não fez com que me apropriasse
dele como gostaria. Mas tornou-me mais atenta e sensível
aos seus acontecimentos. Carrego-o em minhas entranhas,
o que prova que o sagrado nem sempre é comunicado
verbalmente, mas vivido. Inclusive com sofrimento.
Não poderia deixar de expressar o meu
contentamento e profunda gratidão à presença dos
senhores que se dispuseram a compartilhar comigo o que
pensam alguns autores sobre este fenômeno e a relação
que faço com o Ramain-Thiers.
Peço-lhes perdão, e me perdoo, pelo recurso
da leitura por mim utilizado, sem o qual, talvez, não
poderia estar aqui. Obrigada pelo gesto – que a presença
dos senhores simboliza – que me inclui; reconhece o que
tenho a dizer e me reconhece como pessoa. Prometo em
retribuição que ela transcorrerá de forma breve e será
realizada com muita ternura e o devido respeito que
merecem.
Conforme explicitado no resumo do trabalho,
esta apresentação tem como propósito sensibilizá-los a
respeito da importância da experiência do sagrado, ou
mais especificamente, sobre o que o professor Gilberto
Safra denomina ‘resgate da memória do humano’, que dela
provém, e que é essencial para a constituição de um self
integrado. A compreensão dessas ideias, absolutamente
imprescindíveis à educação, apesar de pouco exploradas e
consideradas, serão discutidas à luz das teorias de
Donald Winnicott, principalmente em seu livro O Brincar
e a Realidade e Gilberto Safra, em Hermenêutica na
Situação Clínica – O desvelar da singularidade pelo
idioma pessoal.
A perspectiva de o ser humano vir a constituir-se como
pessoa,característica primordial de um self integrado,
ocorre mediante dois registros fundamentais: o ôntico
e o ontológico. A manifestação concomitante dos
mesmos,como geralmente é observada, nos coloca frente
àextrema vulnerabilidade e força do ser humano.
O registro ôntico, nos ensina Safra, diz respeito
aos acontecimentos pertinentes à história de vida de
cada um de nós, inclusive a de nossos
ancestrais.Trata-se, portanto, de uma experiência que é
vivida no espaço e no tempo. De natureza fundante, o
registro ontológico tem como configuração principal o
fato de ser pré-existente. Esta condição originária faz
com que o ser humano se coloque existencialmente frente
à necessidade de ser.
É nesse sentido que,em função do que
testemunho junto aos meus pacientes e frente às minhas
próprias vivências durante a formação pessoal em
Ramain-Thiers, que postulo que este método, mediante as
suas diversas atividades de psicomotricidade de mesa e
corporais, acompanhadas dos momentos de verbalização,
além dos princípios que norteiam a sua práxis, oferece
um importante espaço de sustentação (holding) para a
ocorrência dessas experiências. São elas, mediante esta
rica diversidade de propostas, as Contas do seu lindo e
abençoado Rosário.
A escolha desse tema, que observo ter se
tornado uma espécie de mantra em minha prática
profissional em razão da constância com que aparece não
somente em meus trabalhos, mas eu diria que também
frente aos caminhos que busco trilhar, ou que me
descubro trilhando, têm como pano de fundo e motivação,
as questões existenciais ligadas àprofunda condição de
precariedade humana; “viver é perigososo”, nos
assegurava Guimarães Rosa. Refiro-me a esta condição,
não como um sentimento, mas como um acontecimento
inexorável e inescapável – real -, absolutamente
doloroso e muitas vezes devastador, e que é
substancialmente agravado pelo pensamento e modo de ser
racionalistaque trata de torná-las (as questões
existenciais) mais sombrias.
Sombrias e vergonhosas como a corrupção, a impunidade;
enlouquecedoras, como a avassaladora pobreza do mundo;
perversas como o cinismo dos nossos governantes frente
às nossas mazelas sociais e éticas, que nos roubam
despudoradamente direitos conquistados;desalentadoras
como a ‘violência passiva que alimenta a fornalha da
violência física’, nos alertava amorosamente, Gandhi.
Todas, sem exceção, circunstâncias que configuram no meu
entender,crimes hediondos contra a humanidade.
Nada melhor, ao se tentar definir um conceito, do que
criar uma situação em que as pessoas, no caso vocês,
possam vir a experimentá-lo na própria pele. Mas uma vez
que o nosso objeto de estudo é o ‘sagrado’, o ‘resgate
da memória do humano’, em verdade posso lhes dizer que
não é na pele, mas sim, naprópria alma que desejo que
elepossa vir a ser vivenciado. Trata-se de algo muito
parecido ao que os filósofos orientais, ou o nosso
eterno Paulo Freire, chamaria de ‘criar o caminho
caminhando’.
O vídeoque apresentarei a seguir, intitulado “Caminhando
com Tim Tim” (Genifer Gerhardt) segundo o meu parecer,
não só traduz o que estou chamando aqui de ‘sagrado’como
nos remete à experiência do próprio fenômeno e ao
‘resgate da memória do humano’, que nos permitirão
perceber, confirmar pressupostos e ainda vivenciar um
encontro cujo início foi anterior, muito anterior a este
que acontece aqui e agora.E caso conquiste a graça de
fazê-los perceberem-na nesses termos, meu gesto passa a
ser oferta. Sagrado,
portanto.https://m.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI&feature=share.
Muitos são aqueles que ao refletir sobre os seres
humanos a partir dos seus sofrimentos e angústias,
esperanças e caminhos por trilhar, comungam de uma mesma
compreensão a respeito das verdadeiras necessidades da
alma humana. Gilberto Safra (pág. 15, 2006), citando a
famosa frase de Dostoieviski “A Beleza salvará o mundo.
”, aponta para o anseio de ser, para o anseio de
Verdade, representado pela ética, para o anseio de
Beleza (estética) e para o anseio do Bem, representado
pelo sagrado, imprescindível à prática clínica e à
educação.
Premissa básica do pensamento de Winnicott –
para ele sagrada - e que a vinheta-poesia de modo
sublime nos consagrou – está contida na crença profunda
que ele sempre trouxe consigo, em relação à força e
potencial de criação e transformação do ser humano,
sendo da sua natureza poder ser e agir de forma
compassiva. É desta mesma reflexão que se origina também
a sua concepção de que é ainda dessa mesma natureza
humana a centelha divina da qual o ser humano é
dotado e que o faz buscar a realização plena desses
preceitos e princípios existenciais.
Outro aspecto importante é que este mesmo ser humano,
originariamente, sempre se expressou por uma busca
eterna de vir a constituir-se enquanto pessoa (registro
ontológico).Em seguida, e paradoxalmente, o
discernimento segundo o qual não existe um bebê sem a
sua mãe, ou alguém que cumpra esta função.Sendo assim, o
self winnicotiano seria constituído pelos desdobramentos
desse seu potencial inato e a sustentação (holding)
proporcionada pela mãe, principalmente em seus primeiros
meses de vida.
Estas proposições colocam em evidência, a
importância de a clínica, a educação e, em verdade a
sociedade como um todo, poder estar assentadas na
compreensão da necessidade de se contemplar o ethos
humano levando em consideração o idioma pessoal do ser.
O Ramain-Thiers, segundo o meu entendimento e
testemunho, qual a mãe dedicada winnicotiana e a mãe
sagrada de Valentim,reflete em seu contexto terapêutico
o que acredita/sabe ser o melhor para a vida e,
portanto, para o outro. Daí o seu profundo respeito e
dedicação ao ser único ali presente em cada um. Resistir
é sagrado porque existir é divino. E isto faz com que
possamos nos surpreender peregrinos. Diz Safra (pág. 17,
2006):
A clínica
precisa estar enraizada no ethos humano, contemplando a
singularidade de cada analisando, para que não só
possamos enfrentar o adoecimento do ser que nossos
pacientes apresentam, mas para que a nossa prática seja
uma ação política e de resistência às características do
mundo em nosso tempo.
A Educação ao seguir a lógica do pensamento
racionalista, preocupada única e exclusivamente, por
exemplo, com os resultados da aprendizagem enquanto
pontuação no intuito de conquistar uma colocação
privilegiada junto a um ranking, visando o
reconhecimento da instituição de ensino para obtenção de
lucro financeiro exacerbado ou político, trata o seu
aluno não como uma pessoa, mas como uma mercadoria
pronta para ser descartada quando não for mais
interessante (lucrativa).
O filme sobre Valentim nos oferta a experiência do
sagrado, ao dialogar com a leveza, a serenidade e
dedicação de sua mãe que aprende a ser uma mãe
satisfatoriamente boa, mediante os saberes do seu filho
queindica caminhos sagrados. A sua capacidade empática,
faz com que possa colocar-se em seu lugar, podendo
perceber as suas necessidades ontológicas a partir do
seu idioma pessoal, respeitando, portanto, o que faz
sentido para ele, segundo esta perspectiva. É filmada
sempre pela metade, assim como os outros personagens,
com exceção de Tim Tim. Não obstante, percebemos o
brilho dos seus olhos, a energia, esperança e gratidão
da força do seu olhar, mediante a ternura contida em
suas palavras, a doçura da sua voz e gestos abençoados
de onde depreendemos a felicidade que saltita das coisas
mais singelas e que nos dão a dimensão daquele encontro
sagrado, as coisas boas da vida.
O vídeo-poesia sobre Valentim, o seu mundo e entes
queridos, toda a atmosfera encantadora repleta de
ternura e graça–o som do acordeão... Mas também as cores
das Contas do Rosário do Ramain-Thiers – casarios,
mandalas, borboletas... Ah, as borboletas!Flores e mais
flores, fluxo de vida! -, nos inspira, promovendo em nós
o resgate de nossas raízes, os nossos antepassados, o
nosso senso de unidade! ... E ao invés de melancolia,
por exemplo, nossa alma se revela fazendo com que nos
identifiquemos com as saudades do humano adormecido em
nós. Experiência sagrada– Reverência à vida.
Gostaria de apresentar outra analogia sobre a
experiência do sagrado queidentifico na
Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers, e com ela, finalizo
este trabalho.
Manhã de sábado, final de abril, voltava de
mais uma infinita arrumação do meu consultório novo.
Exausta, preocupada com os preparativos finais de uma
sofrida mudança que não acabava nunca, para um lindo e
acolhedor lugar, mas cujo espaço físico era bem menor
que o anterior e no qual já estava há 22 anos, via-me
forçada a lidar com o desapego de uma maneira atroz e
repentina. O meu humor não era dos melhores.
Apesar de cedo, pesarosa, enfrentava o
dissabor de um pequeno, mas interminável trecho de
congestionamento, onde diversas eram as pessoas que
aproveitavam a situação caótica para vender produtos,
pedir esmola, fazer pesquisa, lavar vidro de carro, o
que só serviu para exacerbar o meu ânimo, deixando-me
mais irritada e de mal com o mundo e suas pessoas que,
em verdade, não tinham responsabilidade alguma com o que
acontecia comigo.
O constrangimento não era somente pelo fato
de estar sendo abordada, mas o que a situação em si
provocava em mim frente a este cenário de devastação
social tão conhecido e extremamente sofrido. Nisso, um
rapaz se aproxima e eu, sem que ele tivesse emitido
qualquer palavra, digo:
_“Não tenho nada”.
O jovem, não sei se por já estar acostumado,sem
titubear, responde de imediato:
_“Mas eu tenho”.
O modo como proferiu esta pequena e impactante frase, em
momento algum poderia ser traduzido como uma atitude
proveniente de uma pessoa arrogante ou prepotente, como
poderíamos de forma equivocada, interpretar. Ao
contrário, refletindo, sim, profunda humildade e
dignidade, qual poeta, colocou-se a falar sobre os
caminhos aos quais se destinou cuja forma de expressão
era de uma beleza sem precedentes.
A dignidade com que manifestou os seus sentimentos sobre
a paz, a liberdade e a saúde do planeta, criou um
apaziguamento em minha alma capaz de resgatar em mim
tudo aquilo que acredito ser o melhor para a vida e para
o mundo. Reconciliação sagrada.
Leonardo Boff (Vida para Além da Vida, pág. 107), nos
ensina que Deus vê o mundo a partir da eternidade.
Concebê-lo a partir dessa premissa, segundo ele, é
iniciar-se na esperança e na plenitude. O nosso rapaz,
de olhos brilhantes de esperança que vê o mundo e suas
pessoas com os olhos de Deus, ao mencionar com tanta
amorosidade a importância da prática espiritual,
resgatou em mim a capacidade de resistência, o que fez
com que me reconciliasse com a vida e o viver.
Experiência sagrada.
Este episódio me remete a uma Virgínia há mais de 30
anos atrás. Se eu não me engano, a última semana da sua
formação pessoal. Entre agonia e êxtase, posso lembrar,
não conseguia mudar o rumo da história que a mantinha
aprisionada, e dar por terminada a execução de uma
importante lanterna de arame que, diferentemente dos
outros trabalhos, seria levada por sua dona para,
simbolicamente, iluminar o seu caminho de eterna
peregrina. Condição originária, registro ontológico.
Aqueles que tiveram a oportunidade de vivenciar
Ramain-Thiers sabem, que do mesmo modo que a mãe de Tim
Tim, em muitas situações o terapeuta ‘só respeita e
acompanha, só olha e vibra’ (Genifer Gerhardt –
Caminhando com Tim Tim). Minha terapeuta de formação,
com o mesmo brilho do olhar do rapaz da minha história,
se sou capaz de reproduzi-la, me disse algo mais ou
menos assim: “Vá em frente, você há de conseguir terminá-la.
Leve-a consigo, ela lhe apontará caminhos”. Confesso não
saber por onde anda a minha lanterna. Mas não tenho
dúvida de que aquele olhar, aquele gesto, absolutamente
necessários naquele momento, trago comigo até hoje.
Acontecimento sagrado, resgate da memória do humano que
me impulsiona frente à constituição da espiritualidade,
que Safra define como – [...] o posicionamento
existencial do ser humano frente a seu porvir, que lhe
possibilita constituir um sentido para o seu percurso
pela vida [...](pág. 20, nota de rodapé, 2006).
Ramain-Thiers, assim como a mãe de Tim Tim e o rapaz que
conheci no congestionamento, parecem compartilhar
propósitos semelhantes. Olha para aquele que veio em
busca de auxílio para o abrandamento de seus sofrimentos,
com os mesmos olhos de esperança e fé daqueles que
desenvolveram a graça de saber apreciar e reconhecer na
vida e no ser ali à sua frente, o humano – adormecido -
e o divino a ser conquistado. “[...] O tempo é senhor
de delicadezas [...] chegar não é mais valioso
que a andança” (Genifer Gerhardt, Caminhando com Tim
Tim). Tarefa sagrada. Pura transcendência! ...
Obrigada.