Vol. VIII: Vitrais 77 - jun 2015
A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers - ISSN 2317-0719
 
     
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VITRAIS
Vol. VIII: Vitrais 77

                        jun 2015

 

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Reflexão 2

 

Ostra feliz não faz pérola

Rubem Alves

 

 

 

OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA

Rubem Alves

 

        Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos.  Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos -, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem.  Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com exceção: de uma ostra solitária que fazia solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai de sua depressão...”. Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera. Ele a tomou e deu-a de presente para a sua esposa.

          Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzsche observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiam ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregam ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que o homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa...

 

Referência 

ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola, São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. P. 11.

 

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