O Aprendiz de alfaiate que tinha imaginação demais
Era uma vez um jovem órfão, aprendiz de alfaiate,
chamado Daud, que vivia no Cairo. Enquanto costurava,
sentado com as pernas cruzadas, na loja de seu patrão,
Daud sonhava acordado. Em sua imaginação ele
era sempre um príncipe ou um nobre, vestido com as mais
finas roupas.
Um dia um servo trouxe uma esplêndida capa à
loja do alfaiate. Pertencia a um rico mercador e tinha
que ser cortada em algumas polegadas.
-- Apronte-a para amanhã – disse o servo. –
Voltarei para buscá-la antes do meio dia.
-- Estará pronta e acabada, ainda que minha
loja tenha que permanecer aberta a noite toda – prometeu
o alfaiate.
-- Pôs-se a trabalhar, e já havia quase
terminado quando chegou a noite.
-- Se não voltar para comer em minha casa,
minha esposa me perturbará tanto que não acabarei nunca
de escutá-la.
Assim ele entregou a capa a Daud e disse-lhe
que continuasse cosendo o forro até que ele voltasse.
Logo que seu patrão partiu, Daud trabalhou
cuidadosamente e logo terminou o acabamento. A capa do
mercador era de uma linha lã marrom, e Daud colocou-a ao
redor dos ombros para assegurar-se de que o caimento
estava bom. Ela lhe caía perfeitamente. Recuou um pouco
para ver-se no espelho e pensou que tinha todo o aspecto
de um cavalheiro. Colocou um par de botas de couro
marroquino vermelho, que pertenciam ao alfaiate, amarrou
um lenço branco ao redor da sua cabeça e sentiu que
podia passar perfeitamente por um nobre.
“Poderia sair pelo mundo e fazer fortuna”,
disse para si mesmo. “Ninguém saberia que sou Daud, o
aprendiz de alfaiate.”
Remexendo embaixo do balcão, onde dormia
quando a loja estava fechada, pegou todos os seus
pertences e os colocou em uma pequena bolsa dentro do
cinturão.
Foi para a rua e entrou em um café, onde
pediu comida. Era muito tarde e o lugar estava cheio de
gente. Após alguns minutos, um jovem rapaz, da sua idade,
sentou-se à sua mesa. Logo começarão a conversar, e
rapidamente o recém-chegado começou a contar a Daud
sobre a sua vida.
-- Pela primeira vez na minha vida estou
visitando esta cidade – disse o jovem. – Fui criado por
meus tios no campo. Quando nasci meu pai teve um sonho
que o perturbou muito. Nesse sonho lhe apareceu um anjo
dizendo que eu morreria, a não ser que fosse envido para
longe, para um lugar seguro. Naquele tempo meus pais
viviam em Alexandria, e a doença e a fome atacavam a
cidade. Assim foi que me mandaram à casa da irmã de
minha mãe, que tinha então um menino de minha idade.
Minha mãe morreu e meu pai se mudou para o Cairo, porém
não lhe foi possível comunicar-se comigo até este mês,
em que completo meu décimo aniversário.
-- Que história curiosa, amigo! – disse Daud,
intrigado. – Qual é o seu nome e como encontrará seu pai,
agora que está aqui?
-- Meu nome é Jabir – disse o outro. – Vim
para encontrar meu pai neste mesmo café e ele deve
chegar agora. Vê este punhal? Devo tê-lo em minha mão
para que ele me reconheça e devo dizer em resposta à sua
saudação: “Sou aquele a quem Allah preservou!” E ele
responderá: “Louvado seja o Senhor do Mundo.
Ele entregou a Daud um formosíssimo punhal,
feito com o melhor aço de Damasco, com uma bainha
decorada com turquesas.
Enquanto segurava o punhal em sal mãos, Daud
imaginou-se côo filho que voltava para seu pai e se
escutou repetindo a frase que o outro acabara de dizer.
Jabir desculpou-se por ter que sair por
alguns minutos, pois devia ocupar-se de seu cavalo,
deixando Daud com o punhal.
Logo que saiu, um homem velho, alto e de
aparência nobre veio até Daud e saudou-o.
-- A paz esteja contigo! – disse-lhe.
-- Sou aquele a quem Allah preservou – disse
Daud, como num sonho.
-- Louvado seja o Senhor dos Mundos! –
exclamou o velho homem.
E abraçou Daud afetuosamente.
-- Meu querido filho! Depois de tantos anos!
Eu te reconheceria em qualquer lugar!
Daud ia dizer algo, porém o homem o fez calar-se.
-- Vem comigo – disse o velho homem. – Teu
caminho e o meu serão o mesmo de agora em diante, e te
contarei que planos tenho para ti.
Jabir não havia voltado ainda, quando Daud
tentado pela oportunidade, foi-se com o ancião para uma
enorme casa nos arredores do Cairo. Ali os quartos eram
luxuosos e belíssimos, e Daud sentiu que seus sonhos
finalmente tinham se tornado realidade. Pensava no
ancião como seu pai e tinha esquecido completamente do
desafortunado Jabir, cujo lugar havia tomado.
O aprendiz sonhador, imaginando que era o
herdeiro legítimo do velho senhor, estava sentado no
sofá olhando à sua volta enquanto traziam a ceia.
Um velho servo, chamado Hamid, estava
servindo água. Hamid não podia acreditar que este era
filho de seu amo, estava certo de que algo não estava
bem. Sussurrou no ouvido do velho:
-- Estás certo de que este é o seu
verdadeiro filho?
O amo respondeu:
-- Certamente. De que outra forma poderia
ter conseguido o punhal e saber a frase que deveria
dizer?
Repentinamente bateram muito forte na porta,
e em poucos minutos entrou Jabir gritando:
-- Aí está o bandido que roubou os meus
direitos de nascimento!
-- Não, não – disse Daud. – Pai, acredita-me,
nunca vi este homem em minha vida.
-- Quem é quem? – exclamou o velho. – Não
posso saber quem está dizendo a verdade.
Sem que os demais se dessem conta, o servo
Hamid escorregou por detrás do seu amo e rasgou seu
manto com uma navalha.
O aprendiz de alfaiate, ao ver o rasgão, tirou
linha e a agulha de sua pequena bolsa e tentou cosê-lo.
Então Hamid apontou para Daud dizendo:
-- Olhem, este deve ser o aprendiz de alfaiate
que tinha fugido! A polícia está a sua procura a noite
toda! Há menos de uma hora vieram aqui. Estão fazendo
averiguações em cada casa.
Daud correu até a porta, porém Hamid foi mais
rápido que ele. Derrubou o desgraçado aprendiz e prendeu
suas mãos com um pedaço de corda.
-- Jabir, meu filho – disse o velho senhor. –
Então era você e não ele!
E abraçou finalmente seu verdadeiro filho.
-- Perdôo-te – disse a Daud. – Vá embora.
O pobre aprendiz foi levado de volta à loja do
alfaiate, onde devolveu a capa que havia roubado. A
polícia queria prender Daud, porém, diante das súplicas
de seu patrão, deixaram-no livre.
-- Este meu ridículo aprendiz – disse o
alfaiate – tem uma imaginação demasiado vivaz e posso
entender muito bem que tenha sido tentado a levar a capa
e personificar um nobre. Visto que é órfão, eu o
perdoarei e voltarei a empregá-lo, pois não tem mão ruim
para coser.
Foi assim que Daud aprendeu sua lição e
tentou corrigir-se.
Com o tempo, viveu até esquecer a história de
sua fuga e se converteu em um bom alfaiate, como seu
patrão. Herdou a loja e nunca mais deixou que sua
imaginação o dominasse.
Referência
GRILLO, Nícia de Queiróz, Coord.; PEREIRA NETTO, Annibal
Duarte.; PAULA ILG, Clarissa de.; GUIMARÃES Suzi Dias.
Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro:
Seleções Dervish – Instituto Tarika, 1993. P. 81 a 85.