Artigo
Variações sobre a
inteligência
Rubem Alves |
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O
Benjamim estava certo. Eu era ridículo. Mas não pelas razões dele –
que eu era ridículo por ser caipira de Minas que falava os erre
torcendo a língua. Sou ridículo pelas idéias em que acreditei. Onde
estava a minha inteligência?
Tenho vergonha de haver acreditado no que acreditei. Mais
que vergonha, o que sinto é raiva de mim mesmo. Eu tinha certezas.
Meu caso foi mais grave que os casos do Vinícius e do Chico, que se
curaram logo. Eu não. Joguei minha vida inteira nas idéias doidas.
Por causa delas rompi meu namoro com a Débora que eu muito amava, e
o fiz com lágrimas me escorrendo pelo rosto. Por causa delas
abandonei as perspectivas de uma respeitável carreira de médico, que
teria trazido felicidade aos meus pais. Lembro-me da noite em que
chamei meu pai e minha mãe para comunicar=lhes que eu iria para o
seminário. Eles ficaram mudos de espanto. “Como é que você vai
sobreviver meu filho?”, meu pai me perguntou num tom de súplica,
tentando chamar-me à razão. Respondi convicto: “Deus cuidará de mim”.
De uma coisa eu sei: os pensamentos que eu tinha não são
pensamentos que tenho, mas a inteligência que eu tinha é a mesma que
agora tenho. Como é que a inteligência, a mesma inteligência, muda
assim de opinião?
Pensei muito sobre isso e acho que encontrei uma resposta
nas estórias das Mil e uma noites. Naqueles tempos mágicos,
gênios de poderes ilimitados eram presos em garrafas. Se alguém –
místico ou bandido – tirasse a rolha da garrafa, o gênio saía e se
tornava escravo daquele que o havia libertado. Os gênios tinham o
poder dos deuses, podiam fazer qualquer coisa. Mas eram destituídos
de vontade própria. Um gênio faz o que o seu mestre manda.
O místico lhe dirá que deseja ver Deus. O gênio, sem
discutir, o levará ao para Paraíso. O bandido dirá que deseja roubar
o tesouro de Ali Babá. O gênio, sem discutir, o levará até a gruta
onde o tesoura está escondido.
A inteligência é assim. Ela não faz discriminações, é um
poder que desconhece o que é o bem e o que é o mal. Falta-lhe a
sabedoria dos cães, que jamais comem sem antes testar a comida pelo
cheiro. O nariz então lhes diz: “Isso pode ser comido, isso não deve
ser comido”. Para ela inventar vacinas e inventar armas é a mesma
coisa.
Para distinguir o bem do mal, a inteligência teria que ser
serva da sabedoria. O sábio é um degustador.
Imagine um bufê em que os mais variados tipos de pratos são
servidos. O sábio degustador “escolhe” o prato que lhe dá prazer e
recusa o prato que não lhe dá prazer. Mas, para a inteligência pura,
todos os sabores são iguais. Por não saber degustar, uma sopa de
caranguejo e um angu mole sem sal são a mesma coisa.
O gênio como o que o seu dono lhe ordena comer. O gênio da
minha garrafa simplesmente me dava comida que o meu coração pedia.
Nada de errado com a minha inteligência. Era o coração que estava
errado.
Eu só consigo pensar por meios de analogias. E percebi que
existe uma analogia entre a inteligência e as lâmpadas.
As lâmpadas servem para iluminar. Nos gibis, o desenhista,
para dizer que um personagem teve uma boa idéia, desenha uma lâmpada
acesa sobre a sua cabeça. As inteligências, à semelhança das
lâmpadas, também têm potências de iluminação diferentes.
Os psicólogos inventaram testes para medir a “wattagem” das
inteligências. Ao poder de iluminação da inteligência eles deram o
nome de QI, coeficiente de inteligência. Mas eu prefiro falar em
“wattagem” da inteligência. A analogia explica com maior rapidez e
clareza. Assim, em vez de QI vou dizer WI wattagem da inteligência.
As inteligências não são iguais. Pessoas a quem os testes
inventados pelos psicólogos atribuíram uma WI 200 têm um poder muito
grande para iluminar. Havia um professor na Unicamp que se gabava de
ter WI 200 e, para provar, mostrava a carteirinha.
Mas nós não olhamos para as lâmpadas. As lâmpadas não são
para serem vistas. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam e não
pelo seu brilho. Olhar diretamente para a lâmpada ofusca a visão. Há
inteligências de Wl 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E há
inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma
vela, que iluminam sorrisos. Bachelard jamais trocaria a chama de
uma vela que iluminava a sua mesa de trabalho por uma lâmpada de 200
watts. A chama de uma vela ilumina os recantos sombrios da alma. O
Brilho de uma lâmpada de 200 watts estupra os recantos sombrios da
alma.
Uma lâmpada não tem vontade própria. Ela ilumina o objeto
que seu dono escolhe para ser iluminado. A inteligência dos
criminosos ilumina o crime, a inteligência dos artistas ilumina a
beleza. A inteligência é mandada. Só lhe compete obedecer.
O povo alemão, dentre todos os povos do mundo ocidental,
foi aquele que mais se educou no exercício da razão. A Alemanha é
pátria de grandes filósofos e de cientistas.
No entanto, essa inteligência educada pela razão abraçou o
nazismo. Por que?
“Nazismo” é uma palavra. E as palavras são bolsos. O
sentido de uma palavra é dado pelas coisas que colocamos dentro do
bolso.
Dentro do bolso chamado “nazismo” estavam palavras lindas,
sedutoras: saúde, limpeza, beleza. E a esperança da ressurreição do
povo alemão humilhado pelos vitoriosos da Primeira Guerra.
A palavra “nazismo” era um sonho de beleza e heroísmo, uma
raça pura de heróis louros, olhos azuis e pele branca, cujas raízes
se encontravam mergulhadas no mundo mágico da mitologia.
A beleza É SEDUTORA E PERIGOSA. Ela é a arena onde Deus e o
Diabo travam as suas batalhas.
Max, o judeu que a família de Liesel escondeu da Gestapo
por vários meses no porão da casa - se você quiser saber a estória
toda leia o livro À menina que roubava livros -, enchia o seu
tempo vazio escrevendo coisas. E elaborou uma teoria sobre Hitler:
Era uma vez um homenzinho estranho que decidiu três
detalhes importantes de sua vida.
1.
Ele repartiria o cabelo do lado contrário ao de todas as outras
pessoas.
2.
Ele criaria para si mesmo um bigode pequeno e esquisito
3.
Um dia, ele dominaria o mundo.
O homenzinho perambulou por muito tempo, pensando, fazendo planos...
E então, um dia, saído do nada, ocorreu-lhe o plano perfeito.
Ele viu uma mulher passeando com o filho. A horas tantas ela
repreendeu o garotinho até que ele acabou começando a chorar. Em
poucos minutos, ela lhe falou baixinho, e depois disso ele se
acalmou e até sorriu. O homenzinho correu até a mulher e a abraçou.
“Palavras!” e sorriu. Ö que?”Mas não houve resposta. Ela já se fora.
Sim, o Füher decidiu que dominaria o mundo com palavras. Seu
primeiro plano de ataque foi plantar as palavras em tantas áreas de
sua terra natal quantas acabaram crescendo por toda a Alemanha. Era
uma nação de pensamentos cultivados.
Enquanto as palavras cresciam, nosso jovem Fúher plantou ainda
sementes para criar símbolos...
O nazismo não triunfou somente com promessas econômicas. Triunfou
porque criou uma mitologia do povo alemão. E os mitos são sedutores.
A inteligência se ajoelha diante deles e os adora.
[De repente fiquei curioso: será que já houve alguma
interpretação do nazismo como fenômeno estético?]
Coisa parecida aconteceu com o comunismo. O Comunismo foi
um mito de justiça, a derrubada dos poderosos, a ressurreição dos
trabalhadores oprimidos, tudo sustentado pela força da dialética
histórica.
Milan Kundera, explicando o fascínio do comunismo, escreveu
o seguinte:
Aqueles que pensam que os regimes comunistas da Europa central
são obra exclusiva de criminosos deixam na sombra uma verdade
fundamental: os regimes criminosos não foram feitos por criminosos
mas por entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho
para o paraíso... (A insustentável leveza do ser)
A tragédia acontece porque o povo acredita. A sua
inteligência não tem forças para resistir ao fascínio do mito.
Assim, perdoem-me os meus amigos de esquerda pelos
pensamentos que tenho. Não sou culpado deles. Eu não os penso Poe
querer pensá-los. Meus pensamentos são mais fortes do que eu. Bem
que gostaria de ter pensamentos diferentes. Eu seria mais feliz. Mas,
de tudo isso que escrevi sobre a inteligência vem-me um pensamento
que se impõe: Santo Agostinho disse que o povo é um conjunto de
pessoas racionais unidas por um mesmo amor. Eu penso ao contrário:
povo é um conjunto de pessoas irracionais capazes de acreditar em
qualquer mito e por ele dar a sua vida. Não confio no povo. Ele não
é digno de confiança.
REFERÊCIAS
ALVES, Rubem. O sapo que queria ser príncipe:
[adolescência e juventude]. São Paulo: Planeta do Brasil, 2009.
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