Reflexão
O discurso do Rei
ou a anatomia da fala
Celso Gutfreind |
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Risos, fronte, cabelos, mãos e dedos
Viola, alaúde, voz que diz segredos
A fêmea em cujo peito a chama nasce!
Louise Labé
(Tradução
de Sérgio Duarte) |
Por ser um filme sobre a fala, O discurso do Rei, dirigido
por Tom Hooper, é uma história sobre histórias. Com tal conteúdo,
dá-nos a liberdade de contarmos o que nos fez sentir. Isso significa
narratividade para a psicanálise que se aproxima da teoria do apego.
E, também, para a teoria da literatura que se aproxima da recepção.
Eis o sonho de um discurso. Cada um recebe a trama do outro conforme
a própria trama necessita, bem como – vivente que ouve e conta –
falarei agora.
Em seu comentário, O discurso do Rei dá uma aula sobre narrar.
Sob diversos pontos de vista, conta o que está por detrás de uma
fala. George, interpretado por Colin Firth, é o segundo na sucessão
do trono, na Grã-Bretanha. Mas, quando tem a oportunidade de falar,
a língua claudica, as palavras trancam. E todos os precursores da
linguagem estão presentes na sombra do discurso quebrado, quase
ausente. Refiro-me aos precursores no sentido emocional, com uma
abordagem que circula entre a psicologia do desenvolvimento e a
psicanálise. A neurologia está fora. O aparelho fonador e o aparato
do corpo, idem, sem que os negligenciemos. Mas consistem em outra
história.
Embora a fala surja na esquina de, pelo menos duas histórias,
priorizamos a avenida da psicanálise, com Freud na alameda
principal. Depois, reparte-se em ruas recém-inauguradas (pós-freudianas),
como a de Bernard Goise, o psicanalista obcecado em mapear o começo
da fala e já tendo encontrado rastros no encontro entre os corpos da
mãe e do bebê.
Nas ruelas de um inconsciente, em seus primórdios, o principal são
imagens. Iniciamos como cinema; a literatura, paradoxalmente, vem
depois. Aliás, o roteiro premiado do filme apontaa dificuldade da
fala como questão de começos. Não se nasce gago, conta-nos o
terapeuta, mas se torna logo em seguida.
Há ali uma cena fundamental em que a mãe de George aparece como ser
humano. Dá-se na morte do marido, quando ela não corresponde ao
abraço do filho mais velho, o primeiro na sucessão do trono e também
a revelar o tamanho da falha na relação maternal.
A mãe do protagonista se mostra afetivamente reservada, vastamente
contida e culturalmente vitoriana. Ora a fala vem do corpo e,
sobretudo, de uma interação satisfatória com o corpo da mãe. É
preciso que as trocas sejam mesmo suficientes em um encontro com
qualidades reais de presença. E a fala esguichar: ser banhada de
afetos.
A dimensão afetiva faltante avulta na cena. E, nos relatos de
George, com o seu terapeuta, ao descrever os primeiros anos,
entregues a uma babá, substituta negligente que o preteria ao irmão
mais velho, castigando-o com privações afetivas de toda ordem. A
sequência da história repetiu o seu começo de privações, como
costuma ser o funcionamento mental humano, repleto de repetições
compulsivas – os tratamentos anteriores haviam falhado – até que
alguém consiga deter as paralisias de umpassado e relança-lo em uma
nova rede de falas e narrativas (com poesia). Aí sim, a repetição dá
lugar ao novo, à história autêntica e não alquebrado destino.
A fala não é filha da frieza, pelo contrário. Ela surge na ausência,
mas a insufla o calor dos encontros primordiais, anteriores a ela.
Lionel, o terapeuta da fala, interpretado por Geoffrey Rush, sabe
trabalhar no limite da fogueira humana e acolher os sentimentos
terríveis de um passado que vive no presente:
- Tu não tens mais cinco anos, tenta dizer ao paciente a fim de
cumprir a difícil tarefa de pôr o passado em seu lugar.
Lionel quer ser chamado de Lionel e chama o príncipe (depois Rei) de
Bertie, como era chamado em sua família. Com isso, garante condições
humanas capazes decandidatar-se, sem garantias, como no amor ou na
psicanálise, a mitigar uma relação primordial deficiente. A
formalidade e a frieza não engendram sujeitos nem falas verdadeiros.
Lionel se mostra afetivo, sem ser frouxo, e sequer ostenta o título
de terapeuta, em uma Inglaterra monarquista e absolutamente ligada
em formalidade que, como dissemos, não engendra dizer. Toda fala vem
dirigida ao outro, reedita cenas antigas e conta a história de um
encontro, presente permeado de passado.
Lionel retoma a história de George: a relação com os pais, os maus
tratos cometidos pela babá, o conflito com o irmão mais velho, a
dificuldade no apego e desapego, a impossibilidade de impor “a
própria voz”. Então, é preciso limpar um terreno repleto de
silêncios e não ditos e, especialmente, de relações afetivas de
silêncios e não ditos e, especialmente, de relações afetivas
insuficientes para a constituição de um sujeito capaz de falar.
Afinal, na vida de George e de todos nós, muito não foi falado em
termos de afetos, tornados fantasmas, neuroses, psicoses. E não foi
tocado nos corpos, transformados em mentes pouco expressivas. A fala
vem do corpo, lá onde foi banhado de gestos com sentidos afetivos.
O terapeuta Lionel sabe colocar-se de igual para igual com o seu
paciente e apagar as diferenças, porque o fazia em sua vida de ator
frustrado, mas capaz de brincar, com os filhos, de sua própria falta.
Ele soube, na relação com George, abrir espaços para os não ditos,
representação do pulsional, berço das emoções e dos ritmos. Assim,
um tipo mais rico de apego pode ser refeito. Com canções e toques.
Uma história é recontada com espaço para ouvi-la. Os precursores da
fala se tornam presentes.
Terapia da fala? A mais pura psicanálise, aliás, terapia da fala.
Agora sim, devidamente contado e tocado, George pode tornar-se rei,
mera metáfora na história do filme, que o transcende.
Somos todos uns reis que, devidamente banhados de afeto no corpo, lá
no começo, ou consertados disso, no meio da jornada, podemos
finalmente reinar em nossa vida, criar espaços com o outro,
apropriar-se da voz. E ser. E falar.
Transcrição
do Livro: A Dança das Palavras: poesia e narrativa para Pais e
Professores / Celso Gutfreind. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios,
2012, p. 130.
Celso
Gutfreind é escritor, psiquiatra e psicanalista, pós-doutor em
psiquiatria da infância e da adolescência. |