Artigo
Violência e constituição do sujeito
Leila Maggio T. de Mello |
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Leila MaggioTeixeira de Mello
Psicóloga Clínica; Mestre em
Psicanálise Saúde e Sociedade;
Membro psicomotricista da Sociedade
Brasileira de Psicomotricidade.
Estudar psicanaliticamente a dimensão subjetivada violência
pressupõe um retorno ao estudo da constituição do sujeito e das
pulsões. Começaremos pelo “Projeto de uma psicologia científica”,
escrito por Freud em 1895 antes mesmo da fundação da psicanálise, em
que designou o complexo do próximo, no qual descreve o primeiro laço
social que o bebê estabelece com seu próximo (Nenmensch).
O
próximo é um desconhecido, situado numa relação de proximidade, é o
primeiro objeto de satisfação e que oferece prazer absoluto, como
também é a matriz do desprazer, devido ao fato de ser o primeiro
objeto hostil. Fuks(2003) afirma que o próximo é a única potência
capaz de prestar socorro, sendo aquele que acolhe e responde
afetivamente ao desconforto do bebê, ordenando suas manifestações
pulsionais.
Freud (1895) revela as duas facesdeste próximo, fazendo a distinção
entre o outro, como meu semelhante e com o qual me identifico, e o
Outro, inominável, incomparável, estranho e, ao mesmo tempo, tão
íntimo.
Os pais e a família já esperam o bebê que vai nascer com
expectativas advindas de seus desejos, demandas, e que serão
dirigidos a ele. Esse campo, da linguagem, já está constituído antes
de sua chegada. É de importância crucial para a psicanálise, não
somente a chegada do bebê ao mundo e o processo da sua constituição,
mas as condições que a família cria para a sua chegada. A função do
simbólico é crucial na organização da experiência humana. A partir
da identificação com a imagem do semelhante, o bebê no plano
imaginário irá antecipar o domínio sobre sua unidade corporal. Para
se apropriar de sua imagem, ele necessita do reconhecimento
simbólico do Outro, no processo de constituição do eu.
A
perda imaginária é a separação do bebê de sua mãe (o cordão
umbilical), ele perde um pedaço de si, esse ser incompleto, fendido,
e precisará de limites corporais. A pulsão ilimitada será
constrangida pelas zonas erógenas e se transformará em pulsão
parcial que se ligará a uma zona erógena. O seio será o primeiro
objeto da pulsão para preencher a falta, paralelamente ‘a satisfação
da necessidade, que se produz no prazer de sugar. O bebê introjeta
os objetos que são fontes de prazer e irá expelir o que cause
desprazer. Garcia Rosa (2008, p. 194) ressaltam que “essa passagem
do exterior para o interior se faz de modo fantasmático, o que
remete ao imaginário [...] é nesse nível que vão ser fixados o
primeiro significante, que passarão a ser os primeiros
representantes da pulsão”.
A
psicanálise nos diz que através das marcas libidinais que o bebê
recebe do seu próximo são importantes na constituição do sujeito
juntamente com as marcas das representações sociais.
Foi no caminho da construção teoria da libido que Freud chega ao
conceito de narcisismo. Sua pesquisa é feita a partir dos estudos da
neurose, da sexualidade e também dafixação da libido. Sobre a teoria
da libido, no terceiro ensaio dos “Três ensaios...”, As
Transformações da Puberdade, contrasta ‘a libido de objeto a libido
do eu, afirmando que o narcisismo é o estado que não se apaga no
sujeito por sua força de origem.
O
conceito de narcisismo traz modificações ao pensamento freudiano e
acréscimo à metapsicologia. Ele preencheu uma lacuna em relação à
constituição do eu, no sentido de afirmar que o eu não existe a
partir do nascimento, sendo constituído a partir do encontro com o
outro. O que existia antes eram as pulsões autoeróticas fragmentadas,
que caracterizavam o autoerotismo como um estado original da
sexualidade, em que a pulsão se satisfazia sem recorrer ao objeto
externo.
Freud oferece ao eu um novo estatuto: o caráter sexual através da
teoria da libido. A partir do narcisismo que toma a cena, eu e
objeto vão indicar a forma pela qual a pulsão se presentifica no
psiquismo através da libido em seu dinamismo. É na dialética da
libido que o eu se torna o objeto primordial oferecido à pulsão.
Podemos afirmar, tomando os escritos de Freud, que a ação do
narcisismo inaugura o nascimento do eu como objeto privilegiado pelo
investimento da libido. A libido é a energia total disponível de
Eros, substrato da pulsão sexual. Este momento configura uma etapa
intermediária localizada entre o auto-erotismo e o amor objetal. A
idéia de um narcisismo relacionado à constituição do eu sugere o
narcisismo primário.
O
eu é o grande reservatório da libido, à medida que o investimento
passa a incidir nas representações de objeto transforma a libido
narcísica em objetal. A libido apresenta uma característica de
mobilidade, passando de um objeto a outro.
A
libido designa uma etapa do desenvolvimento sexual infantil
caracterizada por uma organização. Suas fontes são somáticas e se
originam de diversas partes do corpo, as zonas erógenas. No ano de
1915, Freud transformou as fases da libido e foram incluídas nos
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. O conceito de fase de
desenvolvimento foi mais bem compreendido com a noção de zona
erógena e a relação de objeto.
A
primeira zona erógena, a boca, surge com o nascimento e com a
necessidade de satisfação. Através do alimento, a libido permanece
fixada nessa zona, dando prazer para além da nutrição. A fase oral é
sexual e seu objeto é o seio.
No texto “Esboço de psicanálise”, na terceira parte:“O
desenvolvimento da função sexual”, Freud (1940[1938]) afirma que na
fase anal-sádica, a satisfação estará ligada à agressividade e a
função excretória, seu objeto são as fezes. “Para incluir na libido
os impulsos agressivos baseia-se na opinião de que o sadismo
constitui uma fusão pulsional de impulsos puramente libidinais e
puramente destrutivos, fusão que persiste ininterruptamente”. (ibidem,
p. 179)
As necessidades do bebê serão atendidas pela mãe que é um ser de
linguagem. O bebê ainda não é um sujeito, ele é um ser de
necessidade que precisa de cuidados essenciais para a sua
sobrevivência. Esses cuidados serão feitos através da
palavra-significante: o bebê recebe alimento do Outro, que o
introduz no campo da linguagem. A sua dependência e o seu desamparo,
a urgência de sua ligação com o outro, faz com que esse Outro se
torne a pessoa fundamental, importante em sua vida. As excitações
internas vão sendo nomeadas pelo Outro, marcando o bebê como ser
falante.
A
cultura erotiza a criança, depois, a fim de diminuir a força das
pulsões sexuais, das pulsões agressivas e eróticas, interdita.
Freud (1923) afirma que o eu é corporal, ele próprio é a projeção na
superfície, é efeito de representações e identificações. A imagem de
si vista no outro marca a vertente mortífera, pois rivaliza com ela
dando origem à agressividade que faz parte da estrutura narcísica. A
estrutura narcísica, ao mesmo tempo em que inclui o Outro, o exclui,
havendo uma discordância entre corpo e imagem
Podemos compreender melhor o processo de diferenciação de um sujeito
pela via lacaniana de forma didática, cada instância desse processo:
o estádio do espelho e o objeto da pulsão.
Lacan vai desenvolver o estádio do espelho pela via do inconsciente,
onde o mundo especular se exprimiria pela identidade primordial do
eu, através de imagos cujas representações inconscientes são
estruturadas na relação primeva com o Outro. O estádio do espelho
marca a passagem do sujeito por uma operação onde a primitiva
formação do eu é elaborada. Lacan buscou diferenciar o eu da
psicanálise do eu da psicologia evolucionista, que é baseado na
percepção-consciência, posicionando a questão do eu e do corpo na
vertente imaginária.
O
momento inicial do estádio do espelho constitui um triunfo
jubilatório, mas também corresponde a um eu rivalizado consigo mesmo.
A tomada da imagem como objeto de amor implica em um estranhamento
de ser tomado por ela como objeto.
Para que o bebê se aproprie de sua própria imagem, ele necessita
identificar-se com a imagem do semelhante e ser reconhecido
simbolicamente pelo Outro no processo de constituição do eu. A
dependência do próximo faz emergir o sujeito. O registro do
imaginário é caracterizado pela identificação através da imagem do
semelhante, que irá resultar o eu especular. O corpo é imaginário e
se forma através das marcas maternas. De acordo com Fuks (2003, p.
130):
O
conceito do estádio do espelho é um instrumento que permite
concentrar o entendimento psicanalítico em três direções: na leitura
dos processos do eu em termos de identificação: Nas oscilações e
tensões que ocorrem entre o eu e o outro. Na gênese do processo de
identificação imaginária, em ação na constituição das grandes massas
políticas modernas, fontes de conflitos trágicos entre vida social e
processo narcísico.
A
cultura impõe sacrifícios e se edifica através da sufocação das
pulsões, onde o sujeito cede espaço à satisfação pulsional. A pulsão
é uma força constante cuja finalidade é fazer o circuito no qual
precisa encontrar o objeto para obter satisfação. Não há objeto que
a satisfaça, pois não é uma necessidade, emana de grande variedade
de fontes orgânicas. A teoria das pulsões nasce com a teoria sobre a
sexualidade. Freud escreve “Os três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” em 1905, em 1915. “As pulsões e suas vicissitudes”,
quando sistematiza a primeira teoria das pulsões. Pulsão é aqui
definida por Freud como: “um dos que se situam na fronteira entre o
psíquico e o físico.[...] O que distingue a pulsão uma das outras e
as dota de qualidades específicas é sua relação com suas fontes
somáticas e com seus objetivos” (FREUD, 1905, p. 171). Freud
formulou algumas hipóteses, relatando que as pulsões em si mesmas
não possuem nenhuma finalidade, além de ser uma medida de trabalho
para a vida psíquica. A relação com a fonte somática e suas metas é
o que vai imprimir sua distinção, ou seja, sem corpo, a pulsão não
existiria.
O
conceito de pulsão ganha sua especificidade com a introdução da
pulsão de morte. Freud conclui que algo sempre escapa ao prazer,
sendo da dimensão da repetição, pela falta de representação. Esse
mecanismo da repetição não é somente o retorno do recalcado na busca
insistente de obtenção do prazer. Essa busca do prazer, essa força
pulsional de repetição da dor, corresponde a não conseguir escapar
da regressão, mesmo que o conteúdo seja de prazer ou de desprazer.
Freud conclui que algo sempre escapa ao prazer, por ser da dimensão
da repetição e falta de representação. A pulsão de vida, Eros,
refere-se a tudo que pode ser construído.
O
objeto da pulsão está articulado à primeira experiência de
satisfação no registro da marca mnêmica, que é evocado ao reativar
esse primeiro registro. Mas o objeto não está mais lá, é apenas
evocado. A pulsão em seu circuito opera no jogo do logro, pois nunca
se satisfaz.
A
esse objeto que a pulsão contorna o objeto a, objeto com o qual a
pulsão irá tentar satisfazer-se, é um simulacro, um substituto do
objeto perdido. É em torno do objeto mítico que a pulsão estabelece
seu circuito, a compulsão a repetição. A pulsão não cessa seu
movimento e este é sempre para frente, exatamente pela diferença
obtida em relação ao que é exigido e o que é conseguido.
A
pulsão de morte, Tânatos ocupa o lugar do silêncio, aparecendo
intrincada com a pulsão de vida. A diversidade dos fenômenos da vida
é, portanto, resultante da ação conjunta e antagônica das pulsões
fundamentais, aparecendo em conflito no qual marca a presença
originária da sexualidade e da destrutividade. Podemos destacar três
vicissitudes da pulsão de morte:
O
primeiro destino: Sadismo - a pulsão de vida, erótica, encontra-se
amalgamada à pulsão de morte, exercida nas práticas eróticas. O
paradoxo incide na junção do erótico com a destruição.
O
segundo destino: é a cega fúria da destrutividade. Vincula a origem
da destrutividade ao antigo ego narcísico e onipotente, realizando
antigos desejos onipotentes especialmente aqueles relativos à
destruição. O paradoxo – de um lado garante a autopreservação e do
outro, mantém o eu narcísico alheio à realidade.
Podemos relacionar a atual sociedade identificada como
individualista e narcísica, no qual os atos de violência se
apresentam como marcas desse processo. Esse destino representa a
violência sem qualquer relação com a pulsão erótica.
O
terceiro destino está em sua finalidade, portanto sublimado. Podemos
pensar na exploração da violência como espetáculo feito pela mídia (noticiários
de violência, filmes , que são mostrados incessantemente no nosso
cotidiano).
Em um maior ou menor entrelaçamento entre as pulsões, a
possibilidade de apresentação da agressividade se transformaria: a
agressividade voltada para o exterior se transformaria em violência
e destrutividade, enquanto sua volta ao interior, em
autodestrutividade. A agressividade circula no campo do sujeito de
diferentes maneiras, como masoquismo-autodestrutividade,
sadismo-destrutividade, nas relações agressivas estabelecidas entre
as diferentes instâncias psíquicas. A violência e a destruição
passaram a dominar fortemente a cena social da contemporaneidade.
Freud (1930 [1929]), p. 115 diz:
A vida
humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria
mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida
contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é
então estabelecido como direito, em oposição ao poder do indivíduo,
condenado como “força bruta”. A substituição do poder do indivíduo
pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização.
No mesmo texto, lemos que a cultura produz um mal-estar devido a um
antagonismo entre as exigências da pulsão e as da civilização. Para
que a civilização possa seguir seu curso, o indivíduo é sacrificado
pagando o preço da renúncia da satisfação pulsional.
O
mal estar na cultura está associado às exigências pulsionais do
supereu,que está ligado a pulsão de morte e a busca de punição e do
sentimento de culpa. O supereu é um conceito formulado por Freud na
segunda tópica, especialmente no texto “O ego e o id” apresenta-se
como uma instância psíquica relativa à consciência moral ao
sentimento de culpa e as interdições do complexo de Édipo. É
representante da lei e regulador da realidade, interditando o
incesto e proibindo o gozo da pulsão destrutiva. Esta instância
representa a internalização da cultura e suas leis, função de
censura, regulam o desejo e mantém o laço social. Quanto mais se
renuncia ao desejo, maior é a culpa e mais cruel é o supereu.
Num segundo momento, Freud apresenta seu caráter paradoxal,
identificando como herdeiro do isso e do complexo de Édipo, definido
simultaneamente como uma instância cruel e feroz, sem noção da
realidade e regido por uma lei insensata, está a serviço da pulsão
destrutiva.
Podemos conceituar melhor os atos de violência auto ou
heterodestrutivo, recorrendo à pulsão de morte. A etiologia dos
sintomas não se encerra somente pela via do recalcado sexual, mas
dos paradoxos das formações que abrigam a dimensão das pulsões
encerradas no narcisismo e nas formações do supereu.
A
sociedade convoca para as relações de interação e trocas que
trazeminserção pela imagem, por enganos narcísicos, num apelo
individualista crescente. Podemos pensar na relação consumidor/mercadoria
se dá pela exaltação da imagem; isso satisfaz seu narcisismo, por
ex: a compra de um carro pode representar poder, sucesso. O mercado
ocupa todo o espaço político influenciando e ditando toda uma forma
de viver.
A
sociedade do espetáculo, conceito introduzido por Debord, é uma
sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, onde os
indivíduos consomem passivamente as imgens do que lhes falta. O
espetáculo éo momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida
social. “Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se
conseguiu ver nada além dela. (Debourd,. Pg. 30).
Observamos um deslizamento do ser para o ter , e do ter para o
aparecer, com isto a singularidade vai sofrendo modificações,
podendo sofrer um apagamento.
A
psicanálise trabalha com a palavra e esta é vital para resgatar no
ser falante o gosto de viver, ela não aspira ao progresso, nem aos
ideais de consumo do capitalismo, nem aos valores vigentes, mas
prioriza a dinâmica psíquica do sujeito, e o laço social entre os
homens.
Percebemos que a manifestação da violência é inerente à condição
humana e fruto da civilização. A dificuldade de reconhecimento da
lei é o preço que pagamos pela condição humana. A valorização
narcísica do indivíduo criou novos modos de alienação voltados para
o consumo imediato. Hoje a serviço desse novo laço social – o
capitalismo, com seu imperativo de consumir, apelam que tudo é
possível, enaltecendo o êxtase da satisfação de um corpo, onde o
gozo emerge sob a forma de um real sem lei.
Com a inserção da psicanálise na possibilidade do discurso do
analista, fazemos emergir o desejo do sujeito através do poder
significante, o poder do Outro, que o sujeito se constitui.
Birman (1994) aponta que a violência é o recurso de que a
subjetividade lança mão para sobreviver ao caos devastador
sustentado pela pulsão de morte. A psicanálise considera que existe
uma violência necessária para o ingresso do sujeito na ordem da
cultura, e que ela está presente na gênese da constituição do
psiquismo.
A
cena social contemporânea nos mostra que o mal-estar está nas bases
das novas produções psíquicas. A pobreza simbólica dos sujeitos faz
surgir formações psicopatológicas porque traz a marca do narcisismo,
que é um dos recursos utilizados para driblar a castração. A mídia
intoxica com imagens de objetos e transforma o desejo em necessidade.
Mantém a ilusão da eliminação da falta e faz crescer o ódio, as
violências gratuitas. Este sintoma social evidencia o esgarçamento
do laço social, laço este que se funda na dimensão simbólica.
“Ressurge a dimensão catastrófica do psiquismo [...] a existência
desses novos sintomas põe a prova o devir da psicanálise”. (FUKS,
2003, p.64-5)
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