Artigo 2
A clínica Analítica com Sujeitos Crianças - “Depois da
Angústia da Separação dos Pais” |
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Jussara Orlando
Psicóloga. Especialista em psicologia Clínica
e Psicomotricidade. Psicanalista. Especialista em psicanálise pela
Universidade de Brasília. Sociopsicomotricista Ramain Thiers.
Psicodramatista. Terapeuta de Casais e Famílias. Supervisora Ramain
Thiers e Mediadora Familiar.
Uma supervisão de
caso
“estou aqui no consultório porque as minhas notas estão muito ruins
e porque meus pais dizem que estou ansioso... a professora diz que a
separação dos meus pais fez mal para mim, me deixou disperso,
irritado... meu amigo teve que ir ao psicólogo porque o juiz mandou...
é o juiz quem vai decidir com quem meu amigo vai (ficar) morar... eu
tenho vários amigos que os pais estão separados... uns moram só com
a mãe, outros com a mãe e o pai, outros com os avós... ainda bem que
eu moro com a minha mãe e com o meu pai, eu tenho duas casas...”.
No cotidiano da Clínica Analítica com crianças, encontram-se
diferentes sujeitos buscando uma resposta para suas angústias e
sofrimentos, em sua grande maioria, associados às separações mal
resolvidas e não suficientemente elaboradas dos pais, após a
separação conjugal ou divórcio.
É crescente o número de pais separados e filhos que chegam ao
consultório quer para orientações quer para tratamento, quer por
determinação judicial para se submeterem a uma perícia psicológica.
Nos primeiros casos, normalmente os filhos estão apresentando alguns
sintomas, que equivocadamente, são atribuídos à separação do casal.
Equivocadamente, porque aqueles sintomas não guardam relação com a
separação, mas sim com a falta que faz o progenitor ausente,
conforme veremos:
No caso de virem por ordem judicial – para perícia, isto ocorre
frequentemente devido à disputa pela guarda dos filhos, onde os pais
transformam, na maioria das vezes, o processo judicial num campo de
batalha, de poder e interesses dos mais diversos. Isso porque,
infelizmente, para muitos o fim da relação do casal estende-se,
quase como deles, também dos filhos.
É neste sentido que no âmbito do judiciário, a psicologia, de forma
lenta, vai ganhando espaço, como forma de auxiliar o juiz na divisão
de processos que envolvem questões psicológicas. Nas varas de
família, os psicólogos são chamados com frequência, para fazer
avaliação psicológica, a fim de contemplar dados além dos
comportamentos manifestos (CS-conscientes) das crianças. Nestes
casos, cabe aos psicólogos constatar a dinâmica da criança, desde os
comportamentos manifestos até os significados latentes (manifestações
– ICS), possíveis de se observar nas sessões lúdicas, nos desenhos,
nos jogos, sonhos...
Apresento uma supervisão de caso que tem como objetivo maior,
mostrar como o trabalho analítico dá oportunidade à palavra, aos
ditos e as diversas formas do dizer do sujeito criança envolvida em
situações de conflitos familiares.
O sofrimento, a angústia, enfim a neurose apresentada pela criança
nos leva a pensar que esta aparece como consequência do
relacionamento conturbado entre seus pais, um relacionamento que
culmina com a traumática separação litigiosa.
A criança do referido caso tem 9 anos, sexo masculino, cursando a 3ª
série do 1º grau, levada à clínica pela avó paterna que busca ajuda
profissional para seu neto por acreditar na necessidade urgente de
uma intervenção psicoterápica para o menor.
Relatou à psicóloga que, naquele momento, a criança havia saído do
convívio com a mãe, com a queixa de estar sendo alvo de agressões
físicas e psicológicas desta, sendo concedida a guarda provisória ao
pai.
O atendimento ocorreu uma vez por semana, durante 1 hora, para
avaliação.
De acordo com as observações clínicas deste primeiro momento, pode-se
observar uma criança vivaz, inteligente, comunicativa e com ótima
fluência verbal. Emocionalmente, apresentava ser uma criança
assustada com tudo o que vinha acontecendo em sua vida, nervosa,
insegura, o que sugere um estado de angústia que leva a um grau
excessivo de ansiedade, não conseguindo dar continuidade a nenhum
jogo ou brincadeira. Apesar de ter a capacidade de distinção e
seleção dos materiais utilizados e a função simbólica a eles
atribuída, expressava a nível verbalseus desejos, fantasias,
experiência e sentimentos. Tem compreensão dos fatos relacionados
aos aspectos da própria subjetividade como sentimentos, emoções,
lembranças, bem como aos aspectos da realidade objetiva como fatos
passados e dados da atualidade da sua história de vida.
Houve uma interrupção do tratamento após a quinta sessão. A mãe
ajuizou mandado de busca e apreensão da criança com oficial de
justiça, sendo a criança resgatada no colégio pela própria mãe e tia
materna, permanecendo com ela durante uma semana, em outra cidade (Caldas
Novas) pra onde ela havia se mudado.
O pai entra novamente na justiça e o juiz consegue anular a liminar
que concedia a guarda da criança à mãe, uma vez que o mesmo já havia
ganhado a guarda provisória do filho em Brasília.
A criança retornou ao convívio do pai e avó paterna e volta ao
tratamento psicológico.
Nesse momento, apresentou-se triste, cabisbaixo, inseguro, com muita
culpa ecerceado de sua liberdade de expressar seus sentimentos.
Utilizou mecanismos de negação relacionados aos fatos passados,
sentindo-se culpado por tudo o que estava acontecendo em sua vida,
revelando fantasias persecutórias, sendo a forma como entendia e
resolvia os conflitos gerados entre seu desejo e a realidade externa.
Diante dessa situação vivenciada no momento (separação da mãe),
alternava seus sentimentos em relação à mãe, ora com medo de perdê-la,
gerando muita angústia e culpa, ora com muita raiva, conseguindo
expressar seus sentimentos no seu brincar.
Foi colocado em grupo (abordagem R- Thiers – orientador crianças)
por um período de oito meses, onde se sentiu mais livre para
expressar a raiva imensa, atacando verbalmente a terapeuta,
apresentando dificuldades em atender as regras da terapia. A
terapeuta percebia o quanto seu cliente estava sofrendo, ficava
agitado, não conseguindo dar continuidade às brincadeiras,
expressava mais pelo corpo como chutar, jogar bola, dardo.
A participação da criança na abordagem R. Thiers deu a ela a
possibilidade de ser ouvida em sua singularidade, tornando possível
que se deslocasse de uma posição subjetiva destrutiva de impotência
e mortificação de seu desejo como resposta ao traumático litigio
familiar, à construção de histórias em que ela tenta dizer do real,
do impossível de dizer, buscando desse modo, esvaziar sua angústia e
semidizer sua verdade.
O grande desafio da Sociopsicomotricidade – Thiers é auxiliar o
individuo entendido como sujeito social nessa “batalha psíquica”,
que é real.
Nas sessões, expressa por meio de suas fantasias e brincadeiras, seu
sofrimento, de como se sentia “esmagado, pressionado” por situações
que não consegue controlar. Eis a questão do seu conflito: a disputa
judicialacirrada entre seus genitores, uma disputa na qual se
encontra como testemunha, vítima e protagonista de agressões verbais
e físicas entre os familiares.
Após esse período, por vários motivos o grupo se desfaz, e ele
voltou a fazer sessões individuais. A perda fez com que ele
regredisse e omais relevante foi a negação de seus sentimentos de
forma tão intensa que não podia ouvir a palavra “mãe” que atacava a
terapeuta verbalmente com muita raiva e se fragilizava de tal forma,
chorando muito, sem autocontrole, mostrando-se carente e revelava
estar com saudades da mãe.
Após um período vivenciando dessa forma, começaram as transformações
que segundo Winnicott: “a agressividade não é só a frustração, mas
especialmente a busca do objeto, necessitando da oposição do meio
para ser atualizada e exercitada. Quando não ocorre retaliação do
objeto, e a mãe suporta ser destruída e recriada na fantasia da
criança como objeto subjetivo permanecendo viva e presente...Onde há
confiança e fidedignidade há também espaço potencial psíquico, que
pode tornar-se uma área infinita de separação e a criança pode
preenchê-la criativamente com o brincar.Assim, brincar é uma
atividade sofisticadíssima na criação da externalidade do mundo e
condição para viver o criativo, no qual se desenvolve o pensar,
conhecer e aprender significados. Enfim, brincar permite desenvolver
a tolerância,à frustração, canalizar a agressividade, sendo a base
da capacidade de discriminação necessária.A bússola que nos permite
navegar na aventura de compreender e acompanharos movimentos
psíquicos do paciente é o nosso próprio norte psíquico. É muito mais
a dimensão da presença ética e psicossomática do terapeuta o que
importa suportar o não saber, respeitar o ritmo embarcando assim, na
aventura de acompanhar alguém que sofre psiquicamente exige não só a
crença na natureza humana, como também a capacidade de brincar...”.
De acordo com o processo terapêutico inicia-se uma nova fase na qual
a criança começa a escrever um livro com o título “Vida Solitária”,
segundo o olhar terapêutico, fala de sua própria história, da dor da
alma,...
“Minha vida foi feita de decisões que não tomei. A dor que eu sinto
não consigo expressar em gestos, nem palavras, lá no fundo tem
alguma coisa dentro que quer sair, mas tenho um lado heroico. A
verdade dói, por dentro tem um buraco, órgãos pretos, procurando uma
saída, alguém matou minhas decisões. Todos me respeitem por fora e
não pelos meus sentimentos. Queria que alguém me compreendesse. Qual
a dor de não ter mais a mãe por perto, queria conversar com ela, não
a esqueço, não é normal esquecer o rosto da pessoa que cuidou dela.
Gostaria que essa situação durasse um dia, mas faz dois anos que não
vejo minha mãe, sinto dor no peito, isso não acaba.”
Foram momentos de catarse, expressando toda a dor da sua alma e que
culminou com um sintoma de gastrite.
“O Eu contador de sua história”, e foi nessa fantástica escuta
terapêutica em busca dos sintomas que revelavam o desejo de seu
cliente (ver a mãe), que essa brilhante profissional, com sua escuta
e atuação ímpar, convida o pai e a avó paterna para uma sessão
chamando a atenção dos mesmos para a importância da presença da mãe
na vida de seu cliente, fazendo com que entendessem que a ausência
de um dos pais, a falta psíquica afetiva provocada por ela pode
prejudicar o desenvolvimento saudável da criança.
Mais uma vez trouxe na sua fala, a importância da Mediação Familiar
para ajudá-los na compreensão do conflito familiar. A mediação visa
a comunicação entre os conflitantes, com o reconhecimento de seus
sofrimentos, e principalmente, oferece aos mediandos a possibilidade
de se escutarem mutuamente, estabelecendo uma dinâmica jamais
vislumbrada antes da experiência da mediação.
A avó materna também foi chamada pela psicóloga como o mesmo
objetivo do encontro com a família paterna. A mesma trouxe um dado
importante para a profissional quando diz ter procurado o conselho
tutelar para fazer uma denúncia contra o pai, que viaja muito, o pai
não cuida do filho, além de apontar a falta de limites da criança
naquele ambiente. A avó conta ao conselho, que seu neto era
assistido por uma psicóloga.
O conselho convida a profissional que foi ouvida por um assistente
social e uma psicóloga que pediram um relatório psicológico da
criança.De posse do mesmo, o conselho tutelar solicitou a presença
de uma perita técnica no consultório vindo a mesma presenciar uma
sessão terapêutica da criança.
Essa perita, muito respeitada no judiciário disse a terapeuta que o
relatório dela foi a ferramenta responsável por toda a mudança que
estava acontecendo na vida da criança.
O Ministério Público acatou o relatório da perita e foi decidido que
a criança iria ver a mãe na presença da psicóloga. Depois, fora do
mesmo, no shopping Iguatemi, perto da casa da criança (a psicóloga
estava presente, mas distante). Depois os encontros começaram a
acontecer normalmente, entre mãe e filho.
A atuação da psicóloga foi decisiva para mudanças subjetivas nos
pais e em todos os envolvidos através de um estudo interdisciplinar
no que diz respeito a questões inerentes a guarda da criança com a
participação das áreas do judiciário, serviço social e psicologia
com o objetivo de uma pronta reparação da violação dos direitos da
criança.
Tânia Pereira, advogada de família diz que “a proteção com
prioridade absoluta, não é mais obrigação exclusiva da família e do
Estado, é um dever social. As crianças e adolescentes devem ser
protegidos em razão de serem pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento (...) ser sujeito de direitos significa para a
população infanto juvenil, deixar de ser tratada como objeto passivo,
passando a ser, como os adultos, titular de direitos judicialmente
protegidos”.
Hoje, o jovem encontra sua mãe uma vez por semana e tem apresentado
melhoras significativas no seu desenvolvimento emocional. |