Artigo 1
Transpsicomotricidade: uma tecedura
psico-sócio-etno-ergopsicomotora
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Martha Lovisaro
Prof.ª Adjunta (UERJ), mestre e livre docente
em psicologia educacional, psicomotricista, psicóloga, pedagoga,
pós-doutorado na Universidade do Porto.
O convite a tecer demanda
estratégias: como tecer sem conhecer os pontos? Ramain-Thiers nos
impulsiona a tecer na ciranda da vida. Ramain nos ensinou os
primeiros pontos, Thiers nos convida a conhecer novas possibilidades
e nos abre o espaço para que apresentemos nossa criação que também
partiu dessas primeiras teceduras. Cada qual, com suas escolhas,
iniciam o trabalho. Hoje, ambas, podemos olhar nossas criações,
opinar, optar, celebrar e mostrar nossa arte. O Brasil tem suas
formações, com características próprias, que nos conferem o direito
de ser uma nova escola de Psicomotricidade. Nova, por apresentar
contornos metodológicos específicos e condizentes com as bases
primordiais que fundaram as suas práticas.
A Transpsicomotricidade é uma
formação em construção apesar de uma década de existência.
Continuará em processo de tecedura. Uma obra que não se finda,
sempre haverá algo mais a ser feito, mas, no entanto, não se apoia
no sentido da incompletude e sim na complexidade do humano, na
impossibilidade de se fechar em sistemas pré-determinados que acabem
por se definir em paradigmas incontestáveis.
Trata-se de uma formação que se
enriquece ao redor de duas fontes de conhecimento: o pensamento
complexo e a transdisciplinaridade. A tecedura se faz por meio de
alguns pilares que lhe conferem especificidade. Um deles diz
respeito à ecologia do ser. Trata-se de um olhar que determina o
comportamento atento e vigilante do transpsicomotricista. Deixar
agir em liberdade, e deste agir, extrair todo o fenômeno que possa
ocorrer na relação do sujeito com o seu ambiente, ação que demanda
um esforço tal que só a prática poderá minimizar. É evidente que a
mesma atitude deve ter o psicomotricista de qualquer prática
psicomotora. A especificidade, no entanto, está em ser este um ponto
básico, onde tudo o mais irá repercutir nessa atitude observadora. O
sujeito atendido pode estar na mais aparente desorganização. Este
olhar deverá estar buscando o que pode nessa desordem trazer um
sinal auto-organizador, autoprodutor, autodeterminado, mesmo que
fugaz, simbólico, subjetivo. Pode ser no espaço, na localização do
corpo no lugar do atendimento. Pode ser com o objeto que está sendo
manipulado. Pode ser com o outro que está ao lado. Pode ser no
tempo; há algum sinal de auto-organização desse tempo? De
determinação temporal sobre algo que está sendo realizado com o
corpo ou com objetos ou mesmo com o corpo do outro? Afinal, há
sinais de organização de potencial produtivo e determinado em
relação ao próprio corpo em detrimento de todo o espocar de emoções
incontidas e de atitudes caóticas?
É importante perceber, a mesma
atitude que se tem com aquele que é atendido, deve estar dirigida
também para a instituição que o acolhe. Um bom exemplo é o da escola
onde se nota um mau aproveitamento de seus espaços externos. O olhar
ecológico, quando bem aproveitado, pode levantar dados importantes
sobre a concepção pedagógico-educativa da instituição. Assim também
é adequado pensar no contexto familiar e na humanização do formando.
Esse será um outro tema, ainda que ligado a ecologia do ser, que
pode ser visto como um segundo pilar dessa prática. A auto escuta
organizadora parte da formação vivencial. “A psicomotricidade não se
ensina, se vive”, esta afirmativa pode ser lida em alguns autores,
mas foi nos idos de 70 que a ouvimos pela primeira vez enunciada por
Simone Ramain.
A formação pessoal na
Transpsicomotricidade tem a preocupação, além do que se espera na
vivência da prática psicomotora com o autoconhecimento e o domínio
da técnica, de refletir e fortificar as relações humanas, As
questões éticas são vividas, tomando por base os “sete saberes para
uma educação do futuro” de Morin (2002). As sessões formativas ficam
contextualizadas por esses saberes que se desdobram ao longo do
curso. O auto controle depende do auto conhecimento, mas sobre tudo
da capacidade de auto gerenciamento dos códigos já inscritos no
formando; trata-se, portanto, de ato educativo ao conferir padrões
de conduta que, quando realizados por condicionamento, não passam
pela consciência, tão necessária para o uso de comportamentos
apropriados quando em situações emocionais adversas.
Assim, as sessões formativas, a
partir do canal corpo mental: psicomotor, ou seja, através de
propostas de ação e movimento, encontram seu objetivo ao levar o
formando a expressar-se livremente e a cultivar a consciência dos
seguintes aspectos que fazem parte de uma ecologia pessoal:
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Cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão. Levar o
formando a perceber que suas visões do mundo, opiniões e
valores, estão atravessados pelo erro e a ilusão
provocada pela possessão da cultura que possuem. |
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Princípios do conhecimento pertinente: despertar a
reflexão do que seria importante aprender e ensinar em
prol da harmonia das interações próximas e das
intervenções saudáveis quanto aos problemas planetários.
Religação disciplinar. |
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Condição
humana: refletir sobre a complexidade humana e a
necessidade de um olhar poliocular para compreendê-la,
desenvolvendo a necessidade de comunhão e respeito pela
diversidade e singularidades |
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Identidade terrena: ir ao encontro de uma identidade
planetária através da consciência ecológica. |
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Enfrentar as incertezas: compreender que a incerteza é
irredutível e que é necessário maleabilizar-se e
enfrentar estrategicamente as dificuldades. |
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Compreensão: desenvolver a comunicação, comunhão e
compreensão de si e do outro |
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Ética do
gênero humano: desenvolver a antropoética, a consciência
da tríade indivíduo/sociedade/espécie. A cidadania
terrestre, a democracia e a percepção da terra como
pátria. |
Na procura por uma formulação
lógica para a transpsicomotricidade encontra-se toda a tecedura
necessária a partir da disciplinaridade que sustenta a
psicomotricidade e sua prática. Enquanto conceito paradigmático, a
disciplinaridade tem sua regência na lógica da delimitação de
processos de sistematização e condutas específicas na organização de
cada campo disciplinar. Procedimento que se constitui a partir das
estratégias de formulação conceitual e descrição de métodos,
mediadas por argumentos lógicos e recursos epistemológicos, ao
demarcar as fronteiras do conhecimento.
A transpsicomotricidade, ao se
constituir como ordem epistemológica, busca a interação entre
conceitos, métodos e práticas, dentro de uma axiomática geral, sem
demarcação definida. Por essa via, a transpsicomotricidade procura
se estabelecer num lugar de equilíbrio entre disciplinas no qual
possa gerenciar os seus processos de sistematização do conhecimento
relacionados ao fenômeno transpsicomotor, enquanto dinâmica vincular
que integra sujeito, corpo, significado e expressão, tendo como
princípio regente a lógica da descoberta.
Nessa abordagem do fenômeno
expressivo motor, como empregar uma metodologia que procure atender
a multidimensionalidade da experiência humana e práticas com
recursos vivenciais que as sustentem? Como um fenômeno complexo, a
expressividade motora encontra na teoria vincular algumas respostas
para o significar/expressar, tendo como suporte os conceitos de
sociedade, cultura e sujeito/mente/corpo.
O objeto de estudo, portanto,
configura-se no âmbito de relações disciplinares abertas,
estabelecendo um diálogo primordial entre corpo, linguagem e
expressividade motora. Trata-se de um estudo onde o corpo é visto
como instância transversal ao atualizar o seu patrimônio bio-simbólico.
Neste sentido o fenômeno psicomotor é entendido na relação corpo/subjetividade,
sendo abordado em diferentes campos teóricos, metodológicos e das
práticas. A configuração teórico-metodológica da formação tem na
elaboração de práticas vivenciais o seu eixo central na construção
de um saber que objetiva o exercício da composição da integridade
pessoal: sujeito, corpo, linguagem, significado/sentido, percepção/sensação,
atitudes e os atos de convivência.
O corpo, morada existencial da
vida, acolhe em plenitude o ser, porém este poderá ou não constituir-se
como existência e plenitude. Assim o corpo é entendido como uma
ponte entre sujeito e objeto.
Como a Biologia vem desvendando o
corpo, suas entranhas e segredos, também se faz necessário conhecer
a gênese do significar e expressar do corpo. Essa tecedura entre
realidade externa (registros perceptivos) e subjetividade (registros
simbólicos) realiza-se como síntese na experiência tendo o corpo
como tear e o sujeito como tecelão, e a existência como maestrias
primais dessa arte. A experiência é um atravessamento que transforma
o sujeito, reorganiza a subjetividade, redesenha o tônus, reconstrói
a arquitetura corporal, reinventando novas coreografias e máscaras.
A denominação “trans” diz
respeito ao sentido de, através, entre e além do corpo. Tal
denominação traz a proposição de que o estudo da psicomotricidade
não se detenha nas polaridades corpo-psiquismo, mas que possa ir às
polaridades primordiais da linguagem que constituem o conhecimento.
Não somos nem pensamos sem o corpo, mas a partir dele podemos
encontrar estados de maior plenitude quando em relação ao espaço
macro nos harmonizamos, não apenas nos limites do corpo próprio, mas
ao rompermos as barreiras do dualismo corpo interno-corpo externo.
A teia transpsicomotora organiza
sua tecedura em torno de três perspectivas que se conjugam em
vínculos primordiais na formação de uma visão globalizada de homem
em movimento e em relação:
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Ergopsicomotricidade: refere-se à consciência do gesto,
conduzindo ao conhecimento entre o corpo que se valoriza
e o corpo desconsiderado, que não cuida da fadiga. O
homem adaptado ao seu meio trabalha para o seu progresso
social, democrático e econômico. A ergopsicomotricidade
tem como objeto de estudo o corpo produtivo e sua agenda
expressiva motora laboral, vistas a partir da relação
trabalho/descanso, segundo as bases psicomotoras. As
práticas vivenciais, enquanto recurso psicomotor,
objetivam trabalhar a experiência corporal da
investidura constituída e coletivamente partilhada no
contexto ritual das organizações, buscando resgatar o
lugar e o tempo íntimo do corpo e sua presencialidade,
bem como os níveis de consciência nela estabelecidos e
ou acessados pelo sujeito. |
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A
sociopsicomotricidade enriquece o estudo com a junção
dos enfoques social e de atuação, visando o corpo
trabalhado para o bem estar do homem, mas especialmente
para um corpo que existe em sociedade. Aborda os
fenômenos da convivência na dimensão da consciência
individual e das ações sociais e trocas simbólicas em
suas possibilidades expressivas motoras. A prática
trans, nesse caso, se constitui como um recurso mediador,
vínculo revitalizante entre indivíduo, corpo e sociedade
na restauração da pessoa como unidade psíquica. A
atividade corporal assim concebida poderá criar novas
possibilidades éticas e estéticas de ser e estar. A
realidade socializadora do cotidiano é um fato educativo.
Seja pela internalização das rotinas, seja das formas e
da natureza dos eventos, o vivido é um artefato
socialmente construído e a corporeidade não escapa aos
efeitos desses condicionamentos. |
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A
etnopsicomotricidade traz a compreensão crítica e
transdisciplinar da cultura da coexistência, indo ao
encontro de uma abordagem que parte do exercício teórico/vivencial
das alternativas solidárias de convivência humana.
Estuda enquanto etnologia aplicada, a cultura motora a
partir das relações entre conteúdos biosimbólicos,
corporeidade e praxiologia motriz: modos de significar e
expressar. Lidar com a individualidade constitui um dos
desafios da convivência. Seja como um exercício pessoal,
ou no acolhimento do outro, uma atitude relativizadora
se constitui em ferramenta eficaz na apreensão e manejo
da diferença. Este é um dos exercícios que conduz a uma
convivência saudável. Este é o estado da arte. Entregar-se
à possibilidade “do inesperado” é oxigenar a consciência,
fazendo-se presente num corpo presencialmente vivo. O
homem é responsável pela qualidade de seu pensamento,
sua integridade, vitalidade do corpo, a gerência da
cognição e afetos e das relações humanas, consigo mesmo,
com o outro e com a natureza. Cabe ao
transpsicomotricista considerar a etnopsicomotricidade
como ecologia do corpo, reconhecendo a abrangência de
suas significações no ser global, especialmente neste
país, onde encontramos várias áreas culturais
determinando comportamentos e formas de viver
diversificadas em um mesmo território. |
O principal fundamento da
transpsicomotricidade é a linguagem que se estabelece na coesão de
enunciados objetivos do pensamento, sem que seja, ela própria, nem
sujeito, nem objeto. Como um registro primordial de humanização do
corpo, a linguagem é a chave para a compreensão dos fenômenos
humanos. Em seu percurso gerativo transcreve o sujeito no objeto e o
objeto no sujeito. Dinâmica que se estabelece no corpo e promove as
mais diversas formas e impulsos para as ações. Em sua dimensão
biológica e da natureza a linguagem se faz parceira do sujeito para
lhe dar condições de sustentar e inventar-se como criador e criatura.
Imerso em condições orgânicas, naturais, sócio-simbólicas e
políticas o sujeito busca as brechas, esforço criativo, que permite
sua participação ativa na construção de si e do corpo como agente,
pessoa, e transformador da realidade.
Nessa perspectiva, o homem é um
fenômeno linguístico em sua capacidade de acolher grande número de
signos consensuais e de criar outros, um dos aspectos e
possibilidades da linguagem humana.
A configuração do significado
como unidade simbólica, em um corpo que o constitui e integra,
demarca o campo de linguagem pessoal configurada no esquema, imagem
corporal, desenho tônico, coreografia e ritmo motor.
Ao testemunhar e significar um
evento, o sujeito irá reunir registros perceptivos, sensitivos, da
cognição, afeto, localização no espaço e no tempo, formatando uma
nova unidade bio-simbólica.
O processo de construção da
linguagem, na dimensão do significar/expressar/corporeidade é sempre
um fenômeno vivencial do qual o sujeito participa com maior ou menor
consciência de si. A natureza do campo de significação do sujeito
está relacionada aos níveis de consciência com os quais o corpo
pensa, opera, e que, por sua vez, irá definir a qualidade da energia
psíquica convocada nesse processo.
A linguagem, no âmbito das
práticas psicomotoras, de modo geral, fica marcada pela relevância
que lhe é conferida no campo da expressividade ou da gestualidade,
no e pelo movimento. No entanto, a fala não pode ser esquecida. Ela
é um organizador dos conteúdos vivenciados. Ao viver no corpo uma
história, esta se inscreve no campo afetivo de forma muito
potencializada pelas energias que ali circulam. A potencialização
dos afetos no corpo concorre para uma também mais potente
manifestação interior, facilitando o livre acesso ao psiquismo e ao
inconsciente através da vivência corporal. A fala é o complemento
necessário para que se instale a compreensão do vivido e sentido.
Aprender com o corpo e pelo corpo
consiste em estabelecer um aprendizado ativo e participativo no qual
o processo criador renova e expande as possibilidades do
conhecimento. Aqui, a transdiscplinaridade pode ser exercitada pela
união das várias disciplinas, em que o eixo principal será o sujeito,
seu corpo, sua expressão corporal e verbal e tudo o mais que o
constitui, da sua história pessoal à história do mundo em que habita.
Na questão temporal, o
distanciamento do objeto permite a emergência do Eu (sujeito): eu
sou porque me reconheço entre outras coisas do mundo próximo ou
distante. Eu existo porque sou no tempo e no espaço. Eu sou, porque
existo, nesse mesmo tempo e espaço, redimensionado por minhas
percepções e possibilidades de agir atuando sobre o tempo e o espaço
que me determinam. Nessa rede de conjunções, ou estamos abertos à
experiência ou ficaremos à margem do conhecimento que se faz
pertinente, como uma moeda: ela valerá sempre como uma moeda, se
pudermos reconhecer suas duas faces que a complementam e lhe dão
valor.
Ao colocar o corpo no foco da
atenção individualizada, a transpsicomotricidade conduz o sujeito a
exercitar o autoconhecimento e, dessa forma, atingir a capacidade de
compreensão de si e do outro. Estar diante do outro, interagir com
ele, especialmente no plano da construção de um projeto comum,
quando há o embate de personalidades diferentes, de idéias talvez
antagônicas quando há necessidade de encontrar uma solução aceitável
para ambos, reflete o princípio da compreensão, sem a qual o projeto
seria inviável.
Compreender o outro é entender o
ser humano, não apenas como objeto, mas como sujeito. Trata-se de
empatia e de projeção. Na primeira, sente-se com o outro, na segunda,
há a revelação.
A formação de um
transpsicomotricista parte de sua própria formação pessoal. Viver
seu corpo, reconhecer sua imagem, refletir sobre seus fantasmas
corporais e tomar consciência de si, estes são os objetivos
almejados.
Finalmente, como mais uma
proposta de busca pessoal e de estudo, chegamos à espiritualidade.
Transcender, passar além, elevar-se acima, é o que se deseja, mas o
que pode ultrapassar a matéria sem danificá-la senão a energia! Bohm
afirma que a matéria se manifesta através do entrelaçamento de
diferentes energias vibratórias. Assim, a física vem mostrar que o
corpo matéria é energia vibratória, enquanto a filosofia, que apenas
busca o entendimento, irá chamar essa mesma energia, que está no
corpo matéria, de espírito. Mas o que vem a ser o espírito? Segundo
Hegel, “a razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade
se eleva à verdade, e quando é consciente de si mesma como de seu
mundo e do mundo como si mesma”. A categoria pura, neste caso, se
eleva à razão. É possível então entender que a espiritualidade do
ser está na sua consciência? Está no seu entendimento?
Hegel diz: “... o
espírito em sua verdade simples, é consciência. O espírito é a
essência absoluta real que a si mesma se sustem. O espírito é a
substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o
inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de
todos, seu fim e sua meta, como também o Em-si pensado de toda
consciência-de-si. O espírito é a vida ética.”.
Torna-se possível pensar que o
espírito exprime a mente que é corpo, através do coração, através da
boca. Mas há sempre uma cisão entre o aquém e o além. Assim, para o
filósofo italiano Rosmini, ocorre a necessidade de se ter uma
relação. Para ele a alma é a relação entre o corpo e o espírito,
sendo a alma o elemento plasmático do corpo e do espírito. Voltando
ao pensamento inicial, o espírito exprime a mente, o corpo oprime a
alma e o mundo deprime o espírito. Para a filosofia religiosa, o ser
humano é inconsistente, sendo que Deus é consistente justamente
porque o ser se contrapõe na sua essência. Entendemos então que a
alma é energia que serve ao corpo e ao espírito e que o espírito
necessita da alma. A expressão tão usada sobre o último sopro refere-se
à saída da energia alma para fora do corpo. Perder a consciência de
si é perder seu espírito, é perder sua essência, daí entender-se o
espírito também como self. Mergulhar interiormente, buscar sua
própria compreensão: na religiosidade, na pratica terapêutica, na
meditação, significa em última análise a espiritualidade do corpo (homem),
ou melhor dizendo o corpo (homem) que se espiritualiza, que busca
transcender na medida em que ousa ser-reconhecer.
Olhar para dentro de si é
caminhar no sentido da espiritualidade, é a possibilidade que o ser
humano tem de união com o universo já que só assim poderá desapegar-se
do que o contém, a superficialidade de seu corpo, erro e ilusão, que
permanece na interconexão do Eu com o Universo.
Transcender, espiritualizar-se,
ir além de suas fronteiras, pode ser uma conquista facilitada pela
vivência transpsicomotora quando o indivíduo se permite mergulhar
interiormente, viver seus demônios interiores, como Dante e suas
passagens pelos vários infernos, descendo nas profundezas,
conhecendo, conectando-se, para libertar-se, para ir além de suas
esferas, sem perder-se de si mesmo, e assim, enfim, transcender-se.
Será essa experiência divina a vivência do êxtase? Êxtase que
significa fundir dois em um, que faz viver a unidade, a não
separatividade, o nós somos, diferente de eu e você?
Assim, concluindo, a tecedura
transpsicomotora se dá por meio de bases epistemológicas que
contemplam, a partir da linguagem, os três pilares de sustentação
teórica consolidados na psico-sócio-etno-ergopsicomotricidade, visão
globalizada do homem em movimento e em relação.
Tal construção desenvolveu-se a
partir da parceria consolidada com o Prof. Dr. Eduardo Costa,
psicomotricista, companheiro nesta jornada e formador. Outras
contribuições foram acontecendo nessa caminhada transdisciplinar
como a da Prof.ª Dr.ª Lecy Consuelo Neves ao incursionar pela
antropologia do corpo expressivo motor facilitando o acesso às
possibilidades de pesquisa nesse campo.
Deixamos aqui registrado a ética
profissional de Solange Thiers e todos que organizaram o V Congresso
Brasileiro Ramain-Thiers pela abertura ao conhecimento de uma
formação outra, que traz o respeito por Simone Ramain e pela direção
segura e capacitada de Thiers ao tecer uma metodologia enriquecida
pela sua experiência profissional e coerente com a sua visão pessoal.
Considerações finais
O conceito de
transpsicomotricidade procura enfatizar a leitura do corpo, em
movimento e em relação, permeada pelo pensamento complexo e pela
multidimensionalidade do ser nessa relação.
O sufixo trans diz respeito ao
sentido de, através, entre e além do corpo, propondo que o estudo da
Psicomotricidade não se detenha nas polaridades corpo-psiquismo, mas
que possa ir às polaridades primordiais da linguagem que constituem
o conhecimento. Não se é nem se pensa sem o corpo, é a partir dele
que se torna possível encontrar estados de maior plenitude, quando
em relação ao espaço macro o indivíduo se harmoniza, não apenas nos
limites do corpo próprio, mas ao romper a barreira do dualismo corpo
interno/corpo externo.
A vivência, como síntese da
experiência significada, manifesta-se na ação que transforma e
resignifica. Colocar-se em estado de escuta do sussurrar da
experiência sensível no corpo, é uma condição para perceber as
imagens dessa artesania vivencial. Este é um exercício fundamental
das práticas transpsicomotoras; desvendar os silêncios, ecos e
ressonâncias, de um dizer inaudível dos códigos corporais de uma
linguagem desconhecida.
O pensamento complexo atravessa a
transdisciplinaridade, remetendo a uma reforma do pensamento e à
quebra de paradigmas, possibilitando um estado alargado de
consciência que favoreça o desenvolvimento de capacidades humanas,
como a capacidade intuitiva, sensível, levando a um estado mais
pleno e evoluído no plano cosmológico, como também, o respeito a
todas as manifestações religiosas, sem, no entanto, deixar de lado o
sentido de espiritualidade.
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