Artigo
Adolescência:
O Caminho entre o
amor impossível e possíveis amores
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Eliana Julia de Barros Garritano
MS em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Universidade Veiga
de Almeida. Psicanalista. Psicóloga. Fonoaudióloga.
Sociopsicomotricista Ramain-Thiers. Especialista em Educação.
Professora de Pós Graduação da Universidade Veiga de Almeida,
Coordenadora Ramain-Thiers, RJ. Terapeuta de Formação
Ramain-Thiers.
O
amor é descrito pela filosofia como uma das paixões da alma, lado a
lado com o ódio e a ignorância.
E
o que nos fala a psicanálise? A transferência é o amor, resume Lacan.
Segundo Freud, o amor de transferência em nada difere do amor que
une e separa os seres falantes e se não existissem os impasses do
amor, não existiria a psicanálise.
Eros, um dos nomes do amor na mitologia, passa a fazer parte da
psicanálise como sinônimo de pulsão de vida, trazendo em sua tarefa
o amansar da pulsão de destruição, desordenando assim o caminho
silencioso em direção à morte.
O
amálgama vida/morte e seus efeitos amor/ ódio subjazem a todos os
fenômenos que podemos chamar de humanos.
O
amor é narcísico ou edipiano. O primeiro, pela própria imagem, lugar
no outro onde me vejo amado. O segundo é necessariamente um amor a
três, onde o amado é inevitavelmente um substituto. Talvez, por este
motivo, os poetas em seus ditos declamem que ao final do terceiro
ato e ao cair o pano,... não era ele e tão pouco ela.
Se falar de amor fosse fácil não haveria tanta gente buscando o
amor no mundo, na tentativa de entendê-lo.
Lacan (1962/63/2004: 199) ao afirmar que somente “o amor-sublimação
permite ao gozo condescender ao desejo”, marca encontro do desejo e
o gozo num único objeto. Porém o desejo é rebelde e não se ama
porque se quer, mas sim porque é preciso. Desta forma, entre o
desejo e o gozo, é o amor aquele que permite um encontro possível.
A
arte de amar diz respeito à demanda, pois, toda demanda é demanda de
amor. O amor desconhece o relógio e o calendário, permitindo o
encontro com o impossível e indizível.
Para se falar de amor há de se adentrar no deleite da letra, o que
os poetas tão bem sabem fazer. Mestres das palavras recriam o amor
no mundo, inventando novas conexões para o amor, pois deste nada se
saberia sem seus ditos. Já dizia nosso poetinha Vinícius, “que seja
eterno enquanto dure”.
Amar é um privilégio do ser falante e o amor um significante.
Metáfora que nos permite existir, pois metáforas são pontes poéticas
que o amor constrói para seu próprio entendimento.
Podemos
situar o amor como o centro da existência humana, pois o amor faz
laço social. Falar de amor é falar de singularidade, ao situar o
amor como uma experiência de linguagem. Dele se fala, se escreve, se
canta ,encanta e desencanta.
Porém, se o amor fascina, também faz sua sina e em seu acontecimento
sempre haverá um paradoxo, visto que aquilo que o amante busca é
exatamente o que o amado não tem.
Freud em troca epistolar com Jung (carta 06/12/1906), afirmava que a
psicanálise em sua essência era uma cura pelo amor. Citava a
transferência como uma prova irrefutável de que as neuroses eram
determinadas por uma história de amor, quando, então, as “primeiras
histéricas” buscavam o divã freudiano para falar de seus impasses
frente ao amor.
Assim nasceu a psicanálise de uma relação entre uma mulher e um
homem, Bertha e Breuer, que legaram a Freud mapas secretos que o
levariam ao inconsciente, à sexualidade e ao amor. A este momento
Lacan alude ao dizer: “... no começo da experiência analítica, vamos
lembrar, foi o amor.” (Lacan, 1960/61/ 1992:12).
Freud dará um novo estatuto ao amor e, desde então, na esteira da
sexualidade caminha o amor, onde o objeto elevado à posição da falta
produz um sentido, fazendo crer na ilusão efêmera do Um.
Ao tecer considerações sobre a proposição de que o amor faz
suplência à relação sexual, Lacan comenta: “Nós dois somos um só.
Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu entre dois, que
eles sejam só um, mas, enfim nós dois somos um só. É daí que parte a
idéia do amor.” (Lacan, 1975/ 1985:64).
Freud afirmava que embora houvesse uma íntima relação entre o amor e
a vida sexual, era relutante em pensar o amor no âmbito pulsional
preferindo defini-lo como “sendo a expressão de toda a corrente
sexual do pensamento.” (Freud, 1915/1969: 154).
O
amor, ao ser deslocado do campo da pulsão para o campo do discurso,
fala da incompletude e impossibilidade, de forma a preencher a
hiância que o sexo não preenche. Assim o amor encena e acena, na
tentativa de fazer o Um, ou seja, a pretensa completude.
A
mitologia também nos conta sobre o amor, onde o mito, como uma
narrativa da criação, tenta simbolizar a maneira pela qual algo
começa a ser. Expresso na herança da humanidade seja qual for a
época ou lugar, o mito, tal qual o amor, é atemporal.
Dentre muitas narrativas mitológicas, encontramos o amor de Ariadne
e Teseu vencendo o Minotauro. Ariadne era filha do rei Minos, jovem
e bela adolescente que se apaixona por Teseu. Para salvar seu amado
do voraz Minotauro, oferece seu novelo de fios como norteador de um
retorno. É na tessitura dos caminhos do amor onde Teseu consegue
matar o monstro antropofágico, escapando da morte.
Tal qual a narrativa de Ariadne, a adolescência também busca
desvendar novos caminhos para ser e amar no mundo.
Adolescentes muito me lembram uma alvorada com seus pássaros. Tal
qual aves de arribação, que fazem revoadas em bando, na busca de
novos verões, também os adolescentes saem em busca de novas
amarrações para ser no mundo.
Com muita algazarra e pouca calmaria anunciam o redespertar
pulsional, temporariamente adormecido pela latência. Falar em
despertar barulhento é, também, falar de sexualidade e sua presença
ruidosa, pois onde há Eros, pulsão de vida, há barulho.
A
pulsão, em seu despertar da latência, anuncia ao adolescente não só
a sexualidade, mas também o amor. Assim, o adolescente desperta na
busca de um novo saber possível para o encontro com a verdade, porém
não toda, onde o amor faz suplência.
Ocupando de forma privilegiada um tempo e um lugar de passagem,
viver a adolescência sempre implicará em encontros e desencontros
com o amor. Apontando para um quê de fragilidade e em meio às
contradições do amor, o adolescente trilha o caminho entre o amor
edípico impossível e possíveis amores, levando consigo a marca do
mal estar resultante da incompletude, para tecer novas constelações.
Freud (1905) em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
determina que este caminho é laborioso, pois, traz consigo
investimentos objetais de amores primevos, reeditados na
adolescência, pela possibilidade real do exercício da sexualidade. A
corrente terna da infância ao articular-se à corrente sexual marca o
destino do ser-para-o-sexo. O reencontro com a sexualidade, na
adolescência, é mediado por um excesso que provoca inquietação. Ao
ser confrontado com a emergência do real sexual, com o registro da
falta e da incompletude, o adolescente sai em busca de possíveis
respostas referentes a tais exigências.
A
sexualidade convoca o adolescente a assumir o que há de mais
enigmático no sujeito, frente às das duas marcas fundamentais da
existência: o sexo e a morte e entre elas o amor.
Marcas que supõem as feridas da castração e do impossível de se
fazer representar, ambas voltadas na direção contrária à
representação da cultura ocidental, fundada tanto na completude como
na infinitude.
É
nesta encruzilhada existencial que ao alçar vôo, o adolescente busca
ancoragens nos modelos propostos pela cultura. A procura de uma
articulação social acontece especificamente na adolescência, onde o
corpo, em sua geografia, traz memória de um traço originário,
inscrito no encontro do real com o simbólico. Porém este encontro se
faz imperfeito, pelo efeito da impossibilidade de total recobrimento
entre os registros. Assim a condição de satisfação sempre estará
referida a uma perda, onde novas representações tornar-se-ão
possibilitadoras de acesso do sujeito adolescente ao universo social
e cultural.
O
conceito de adolescência é polêmico, configurando um campo não
unívoco, pelos próprios questionamentos que dele emergem. Na
atualidade tem ocupado espaço nas diferentes práticas e campos
teóricos. Em sua expressividade possui múltiplos aspectos, embora
todos imanentes à história e à cultura, em suas transformações
progressivas.
A
adolescência pode ser reconhecida como um tempo lógico de
estruturação do sujeito, de construção de ideais, onde frente ao
amor impossível que sucumbiu ao Édipo, o sujeito adolescente inicia
o caminho na busca de possíveis amores. Assim, o adolescente lança
um endereçamento ao Outro como suporte capaz de ofertar um campo de
realizações ideais. Qualquer que seja a sua formulação conceitual
envolverá aspectos econômicos, sociais, políticos e legais, dentre
outros, aspectos estes produtores de significados simbólicos.
Acredito que a adolescência possa ser reconhecida como um fenômeno
cultural articulado à constituição do sujeito, pois segundo a
psicanálise o sujeito se constitui no seio da cultura, através de
múltiplas identificações.
O
adolescente vai, então, confrontar-se com mudanças reais, simbólicas
e imaginárias e o corpo no despertar da pulsão passa a ocupar um
lugar de destaque.
Em função da imagem que se transforma, o corpo idealizado da
infância escapa, tornando-se cativo às determinações simbólicas que
irão permitir novas inscrições. Tais transformações implicam em um
ato corajoso e doloroso, pois o corpo, quase estranho, torna-se
fonte de angústia e inquietação na apropriação da nova imagem. Ao
reeditar algo do narcisismo, o adolescente necessita readquirir um
novo júbilo que lhe confira unidade. A perda do equilíbrio, até
então desfrutado, provoca um excesso e a adolescência, como em
nenhum outro tempo, convoca o campo do Outro relativamente estável,
que possa lhe oferecer sustentação.
Entre o abandono de um saber que desvanece e um saber que desconhece
ele vai caminhar, fatalmente com tropeços, em um endereçamento ao
Outro, como suporte capaz de ofertar um solo fértil para suas
realizações ideais, oriundas das insígnias de pertencimento herdadas
no Édipo.
Se amor é narcísico ou edipiano, conforme já dito, é na adolescência
que estas duas formas de amor vão ocupar de forma privilegiada a
demanda do sujeito adolescente. Narcísico em relação à imagem que se
transforma, necessitando de um novo júbilo, edipiano no abandono da
posição de amado e desejável para a posição de amante e desejante.
Desta forma, se “o amor demanda amor. Ele não deixa de demandá-lo.”
(Lacan,
1975/ 1985:12), é na adolescência que o sujeito vai demandá-lo,
mais... ainda.
O
mundo passou por intensas transformações e, do amor cortês cantado
pelos trovadores medievais, a contemporaneidade muito se distanciou.
Pensar no sujeito contemporâneo implica em tecer considerações entre
este sujeito e os objetos de nosso tempo.
Vivemos em um tempo de excesso e rapidez que engloba não somente
grandes avanços tecnológicos e científicos, mas, também, o
imediatismo e a descartabilidade como um modo de relação entre
sujeito e objeto, que exige respostas quase sempre imediatas e
unificadas, descartando a singularidade do sujeito.
A
instalação do efêmero provoca uma constante insatisfação, tornado os
objetos pulsionais cada vez mais fugazes e evanescentes. A condição
de aceleração do tempo se desdobra em um fosso, onde as vinculações
estáveis e prolongadas tornam-se quase impossíveis.
A
contemporaneidade pode ser caracterizada por uma cultura que passou
por extensa revolução, norteada por extremos e paradoxos. Se de um
lado tivemos grandes avanços da ciência e tecnologia por outro, foi
um tempo marcado por inúmeras catástrofes, incertezas, crises e
guerras.
De certa forma Freud já havia preconizado esta era, em seu
intercâmbio com Einstein. Descrevia a substituição da força bruta
pelo intelecto e poderio bélico, asseverando que embora considerasse
o progresso da cultura como inibidor da pulsão de morte, a sua
própria inibição tornava-se fruto de mal estar. Se o homem tornava-se
capaz de sobrepujar a natureza, em contrapartida não mais poderia
limitar o destino dos objetos por ele criados, sob a ameaça de
criarem sua própria lógica.
É
neste sec., tão instável quanto turbulento, de guerras, ascensão do
capitalismo, avanços tecnológicos onde a figura do adolescente se
afirma. Na revitalização econômica, surge o mito da adolescência,
jovem e imortal, com a responsabilidade de rejuvenescer uma cultura
adoecida por múltiplos conflitos. Ainda na aurora do sec. XXI
continuamos a constatar o quanto o significante adolescente ocupa
lugar de destaque.
Encontramos, na atualidade, uma cultura predominantemente narcísica,
um tempo assolado por imagens, sob o fascínio ilimitado do Eu. A
figura de Narciso passa a substituir um Édipo ressentido (Roudinesco,
2006), onde a negação da castração e do interdito gera a afirmação
narcísica do eu, fazendo crer em sua soberania e na falência do amor.
Mas o quê o mundo contemporâneo tem feito com os legados da
castração? Como tem lidado com as novas formas de amor?
Certamente nosso tempo não tem mais a marca histérica de outrora,
mas sim a marca da obsessividade e da compulsão que, a meu ver,
parecem endêmicas. De uma forma geral as práticas, em qualquer
âmbito, não possuem um tempo de elaboração e luto não permitindo,
portanto, um tempo de trabalho subjetivo. Assim o existir é
transformado em uma sucessão de momentos, sem continuidade. Tempo
fundado em uma forma lúdica de relação com o outro semelhante, onde
é possível viver vidas sucessivas e virtuais sem nenhum compromisso.
A nostalgia das antigas histéricas é substituída pela obsessão do
poder, da potencia e virilidade em total evidência.
Tudo se pode, tudo se quer e nada nos basta!
Segundo a psicanálise é preciso que o gozo seja recusado para ser
atingido, pois só atravessado pela castração o sujeito pode implicar-se
com o seu desejo.
Lacan nos diz que o sujeito sai do Édipo com títulos de
propriedade, insígnias paternas, que arquivadas na latência, são
resgatadas com a chegada da adolescência através da busca de ideais
no Outro da cultura. O sujeito adolescente, neste encontro, é
aprisionado em uma teia narcísica que ao subverter a castração,
permite o gozo ilimitado fazendo do corpo jovem o seu próprio ideal.
Esta cultura faz nascer uma submissão limitadora, punindo aos que
fogem de seu controle, acirrando o individualismo e a
competitividade. Uma cultura onde o corpo jovem é eleito como um dos
seus principais objetos mantém o adolescente cativo às forças do
recalque e aos muros do narcisismo. Desta forma o jovem sai da
posição de objeto de gozo dos pais da infância, para objeto de gozo
da cultura.
Não há dúvidas que o mundo contemporâneo trouxe muitos progressos.
Embora sejamos sujeitos contemporâneos e vivermos neste tempo, é
fundamental pensarmos nos possíveis efeitos da atualidade sobre o
sujeito adolescente. A adolescência vai se constituir e fundar seus
primeiros alicerces em um solo movediço, tendo como sustentação a
imortalidade, a infinitude e o desamor.
É
na oscilação estrutural da adolescência onde o Outro da cultura deve
oferecer horizontes saudáveis de novas inscrições.
Frente a tão confuso e acelerado tempo que ancoragens culturais o
adolescente pode encontrar que lhe permitam certa estabilidade para
amar?
Escuto, muito comumente entre os jovens, o significante “ficar”.
Podemos considerá-lo não só como uma nova forma de relacionamento,
mas também, como um dos mais expressivos discursos no meio
adolescente. O ficar pode ser considerado, segundo seu uso atual,
como uma relação de período ocasional e breve, onde não há
envolvimentos futuros ou compromissos. Predominam a sensorialidade,
a atração física, a descartabilidade, a ausência de exclusividade e
a imagem em prevalência à palavra.
Muitas vezes este comportamento é descrito como uma inovação
adolescente, localizada no âmbito da irresponsabilidade,
inconseqüência e vulgaridade. Nestes enunciados o adolescente é
colocado alheio a qualquer sofrimento. Não compartilho desta visão
simplista de modismo sazonal. Tais enunciados produzem uma evasão da
responsabilidade das estruturas sociais em seus ditos sobre o amor.
Segundo Thiers (1998), “a Sociopsicomotricidade visa à
compreensão do sujeito psíquico, que engloba o sujeito social, seu
aprendizado de vida em coletividade, o respeito ao próprio, ao outro.
Para RT é impossível conceber o sujeito fora da sociedade.”,
compartilhando com a posição psicanalítica de que, a construção
subjetiva e os sintomas que produz são decorrentes e consonantes ao
campo do Outro, campo este onde a adolescência vai consolidar novas
inscrições.
A
liberação dos costumes de nossa sociedade, talvez aponte para uma
relação mais contingente e aleatória. Se o adolescente se mostra tão
livre, penso estar esta liberação muito mais na esfera da demanda
contemporânea do que relacionada ao seu próprio desejo. A
indiferença e o descaso ocorrem como respostas, sem que o
adolescente se de conta da transformação operada por ideais
culturais previamente estabelecidos.
Giddens (1992) propõe o conceito de amor confluente, onde o
amor romântico dos séculos XVIII e XIX dá lugar a um tipo de relação
que exige confluência de interesses, durando não “até que a morte os
separe”, mas até que os interesses findem.
Posso inferir então, que o ficar inscreve-se neste novo paradigma
cultural que privilegia a rapidez, a descartabilidade, o
individualismo, a competitividade e o narcisismo, como resposta do
sujeito adolescente frente às demandas da contemporaneidade.
A
práxis da Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers tem como o seu
principal objeto o corpo simbólico, como um lugar de inscrição do
desejo, fruto do objeto perdido. O ato de criar, para Ramain-Thiers,
ao operar com a emergência do conflito psíquico em diferentes níveis
simbólicos, possibilita a ressignificação da perda primária.
Suas propostas permitem ao adolescente vivenciar situações
cotidianas, onde a criatividade opera um corte com o saber
instituído, condição única de dizer o inefável do real,
ressignificando o objeto para sempre perdido.
Frente ao atual desamparo cultural, as propostas Ramain-Thiers em
sua ação, permitem efeitos simbólicos reparadores, que diferem da
compulsão à repetição. A diversidade de construção é promotora de
saúde psíquica, pois permite uma abertura para o processo da
sublimação, minimizando a força do recalque.
A
adolescência é um tempo que implica em luto, herança e renascimento.
É o afastamento da submissão limitadora, aquele que torna possível o
trilhamento de novos encontros com Eros, pulsão de vida. O luto,
através do potencial criativo, é instaurador de nova posição
subjetiva, na busca de outros objetos que façam a pulsão circular,
em seus encontros e desencontros com o amor.
O
trabalho clínico com Ramain-Thiers, através do Orientador
Terapêutico para Adolescentes, AD, favorece o inter-relacionamento
da ação e emoção, onde a possível harmonia entre o sentir, o pensar
e o agir estabelece um constante diálogo com a imagem corporal, a
castração e o limite, de forma a veicular a emergência do sujeito
adolescente em suas vicissitudes.
Embora saibamos que há tantas adolescências quanto adolescentes, em
função do descentramento operado pelo inconsciente, constatamos em
seus discursos alguns significantes comuns. Um dos mais relevantes é
o corpo e sua imagem que se transformam. Desta forma, o sujeito
adolescente é obrigado a se defrontar não somente com seu longo
processo de escolhas, mas também, com as mudanças corporais
relativas à puberdade e a pulsão que desperta na busca de novos
objetos.
Considero a Sociopsicomotricidade um lugar e um saber metodológicos
que permitem uma escuta e um olhar diferenciados, ao trabalhar o
corpo, a linguagem e a ação, na busca da harmonia entre o sentir, o
pensar e o agir.
Ao reconhecer a transversalidade do sujeito, engloba mudanças de
padrões sociais que permitem ao adolescente sair em busca de novas
construções, de forma a atender as demandas da saúde psíquica,
articuladas a valores éticos e estéticos.
Ramain-Thiers, ao privilegiar a liberdade de construção e reparação,
abre portas para a sublimação e ao pensar criativo. Desta forma o
afastamento do suporte narcísico dará lugar ao trilhamento de
caminhos de autoria, para que o desejo adolescente possa ser
sustentado. Deste lugar, talvez, se possa vislumbrar uma posição
ética para os encontros e desencontros da experiência do sujeito
adolescente em seu caminho na procura do amor.
O
sujeito expropriado de sua singularidade é empobrecido do potencial
criativo, o que causa prejuízos à partilha simbólica e ao laço
social.
Resta ao discurso social reposicionar-se e nele reincluir o amor,
criando novas intervenções para fazer valer as duas principais
funções apontadas por Freud na vida adulta: o amor e o trabalho.
Freud (1914), em seu artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução”,
nos alerta:
“Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas num
último recurso devemos começar a amar afim de não adoecermos, e
estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração,
formos incapazes de amar” (Freud, 1914/1969: 101).
Embora tenham se passado quase 100 anos, me parece que este dito
sobre o amor nunca foi tão atual e lúcido!
Na vicissitude entre a posição de érômenos, amado e a posição de
érastes, amante, o jovem recria uma nova forma de amar. Porém frente
aos desencontros do amor, tão comuns em nossos dias, o adolescente
para não adoecer, cria o ficar e ficando espera um novo porto, que
lhe permita outras amarrações para construir possíveis amores.
Ramain-Thiers considera a proposta como a lei maior, e a lei maior,
nos fala da herança paterna, lugar da falta e da castração.
O
legado freudiano nos deixou duas importantes heranças: a herança
paterna, no que diz respeito à falta e a castração, e a demissão do
eu de seu lugar de senhor.
Que a herança das marcas provenientes do campo do Outro possa vir a
modificar o lugar oferecido à adolescência em suas escolhas, onde o
adolescente seja reconhecido em sua singularidade e nela se
apropriar de um saber fazer, sobre o amor.
Termino aqui com um pequeno fragmento do poema Fausto, de
Goethe, pois muito me parece com a tarefa da adolescência em seu
caminho entre o amor impossível e possíveis amores.
“O que hás herdado de teus pais
Adquire para que o possuas.
O
que não se usa, um fardo é, nada mais,
Pois
pode o momento usar tão só criações suas”.
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