Reflexão 2
O MILAGRE DAS FOLHAS
por
Clarice Lispector |
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Esta crônica foi extraída do livro “As cem melhores crônicas
brasileiras” (seleção de Joaquim Ferreira dos Santos – Editora
Objetiva) e escrita por Clarice Lispector (1920-1977).
Convoca a refletir e pensar nos milagres da vida.
O MILAGRE DAS FOLHAS
Clarice Lispector
Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar,
e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por
que não a mim? Por que são de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir
conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita
determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus
objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que
fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam
pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já
vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes
de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado
que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo
alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de
coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e
no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e
instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse
nele, já estaria falando em nada.
Mas
tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua
e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da
linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões
de pessoas a incidência de reduzí-las a mim. Isso me acontece tantas
vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das
folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na
bolsa, como
o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro
entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me
interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que
novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei
Deus de uma grande delicadeza.
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