Reflexão 1
GENTE
por
Elsie Lessa |
|
A
crônica abaixo, extraída do livro “As cem melhores crônicas
brasileiras” (seleção de Joaquim Ferreira dos Santos – Editora
Objetiva), foi escrita por Elsie Lessa (1912-2000).
A
cronista – considerada uma das mais importantes do Brasil -
impulsiona o leitor a tentar encontrar prazer nas coisas simples e
singelas.
O texto
nos remete a um tempo no qual a vida parecia transcorrer de forma
mais descomplicada, totalmente diferente da rotina caótica dos dias
atuais, onde a sensibilidade muitas vezes fica em segundo plano.
GENTE
Elsie Lessa
De repente, escolhemos a vida de alguém. Era essa que a gente queria.
Naquela casa grande e branca, na rua quieta, na cidade pequena. Sim,
estamos trocando tudo. Era ela que a gente queria ser, aquela
serenidade atrás dos olhos claros, aquela bondade que se estende aos
bichos e às coisas, tão simplesmente. E aquela mansa alegria de
viver, aquele risonho voto de confiança na vida, aquela promissória
em branco contra o futuro, descontada cada dia, miudamente, a
plantar flores, a brunir a casa, a aconchegar os bichos.
Era naquele porto que a gente gostaria de colher as velas, trocar a
ansiedade, a inquietação, a angústia latente e sem remédio, o medo
múltiplo e cósmico, todas as interrogações, por aquela paz. Acordar
de manhã, depois de dormir de noite, achando que vale a pena, que
paga, que compensa botar dois pés entusiasmados no chão. Abrir as
bandeiras das venezianas para que o sol entre, com gesto de quem
abre o coração. Qual é o hormônio, e destilado por que glândula, que
dá a uma mulher o gosto de engomar, tão alvamente, a sua toalha
bordada para a bandeja do café? Há uma batalha bem ganha,
cotidianamente renovada, contra o pó e a traça e a ferrugem, que
tudo consomem. Dentro dos muros da sua cidadela, as flores viçam, a
poeira foge, nada vence o alvo imaculado das cortinas, os cães
vadios acham lar e dono. E é esse um modo singelo mais difícil de
ter fé. Cada bibelô tem uma história, diante de cada retrato há um
vaso de flor, para cada bicho há um gesto de carinho.
"Mulher virtuosa, quem a achará?
Porque o seu valor excede ao de muitos rubis”
– cansei eu de ouvir, na escola
dominical, e olho em torno a indagar quantos e que orientais rubis
pagarão aquele miúdo, enternecido carinho, que pôs flores nos vasos
e cera no chão e transparência nos vidros e ouro líquido no chá. Oh,
a perdida paz fazendeira deste chá no meio da tarde, que as mulheres
do meu tempo já não sabem o que seja, misturado a este morno cheiro
de bolo e torradas que vem da cozinha! Somos uma geração que come de
pé, que trocou os doces ritos que cercavam o nobre ato de alimentar-se,
por uma apressada ingestão de calorias. Já não comemos,
abastecemo-nos como um veículo, como um automóvel encostado à sua
bomba. Trocamos as velhas salas de jantar por mesas de abas, que se
improvisam, às pressas, de um consolo exíguo encostado a uma parede.
E o que sabe de um lar uma criança que não foi chamada, na doçura da
tarde, do fundo de um quintal, para interromper as correrias, lavar
mal-e-mal as mãos e vir sentar-se à mesa posta para o lanche, com
mansas senhoras gordas que vieram visitar a mamãe? É a hora dos
quitutes, das ingênuas vaidades doceiras, da exibição das velhas
receitas, copiadas em letra bonita de um caderno ornado de cromos.
Somos uma geração que
perdeu o privilégio de não fazer nada, aquele doce não-fazer-nada
que é a mansa hora do repouso, o embalo da rede na frescura de uma
varanda, a quietude ensolarada de um pomar em que o sono da tarde
nos pegou de repente, a hora de armar brinquedos para as crianças,
das visitas que chegam sem se fazer anunciar, pois na certa
estaremos em casa para uma conversa despreocupada e sem objetivo.
Somos uma geração de mulheres que saem demais de casa, para
trabalhar ou para se divertir, e perde metade da vida indo ou vindo
para não se sabe onde, fazendo fila para comprar, tomar condução ou
assistir a um cinema. Perdemos o abençoado tempo de perder tempo, de
não fazer nada, a única hora em que a gente se sente viver. O mais é
canseira e aflição de espírito.
E
foi tudo isso que reencontrei, de repente, na casa grande e branca
da rua quieta.
|