nª 67 - Março 2012
A Revista da ABRT Associação Brasileira Ramain-Thiers
 
     

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Artigo 1

BRINCAR,

O QUE É?

por

Thereza Sampaio

BRINCAR, O QUE É?

REFLEXÕES SOBRE O BRINCAR NO DESENVOLVIMENTO E EDUCAÇÃO INFANTIS E NA CLÍNICA PSICOPEDAGÓGICA

Thereza Sampaio      

Eu faço mar. você barco

vamos brincar de viagem.

Eu sou remo, você âncora

no mar precisa coragem.

Eu sou vela, você mastro

vamos correr pra outra margem.

Eu faço mar, você barco

vamos brincar de viagem

(Belô Velloso)

Brincar, o que é? Penso que brincar está associado à infância, é algo que as crianças fazem. Mas por que o fazem?

O Dicionário Houaiss (2001, p. 513-14) define o brincar, entre outras acepções como:

Distrair-se com jogos infantis, representando papéis fictícios; menear, tamborilar, mexer em algo distraidamente por compulsão ou para passar o tempo; não falar a sério; não demonstrar interesse, não dar importância; não levar (algo) a sério; agir com leviandade ou imprudência; tirar gozo, distração ou proveito, desfrutar...

As acepções acima me levam a refletir sobre o que pensa o senso comum adulto a respeito do brincar: não é para ser levado a sério; é só brincadeira. Talvez essas concepções ainda estejam muito carregadas das idéias de um passado, que acredito ainda presente, quando crianças não tinham vez nem voz; crianças não tinham querer.

Contudo, se dermos vez, voz e querer a uma criança, como o fizeram Aberastury, A. (1992), Dolto, F. (1999), Fernández, A. (1991, 2001, 2005), Rodulfo, R. (1990), Vigotski, L. (2008), Wallon, H. (2007) e Winnicott, D. (1975, 1979) entre muitos outros, talvez possamos entender o brincar sob um outro prisma. É sobre esse brincar que quero refletir.
 

O BRINCAR E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Crianças brincam e brincar é importante. E sério.

O corpo e o brincar proporcionam as primeiras aprendizagens do ser humano. Segundo Rodulfo, R. (1990, p. 91) não há atividade significativa no desenvolvimento da simbolização infantil que não passe ― vertebralmente pelo brincar. Chama ainda a nossa atenção para a importância em diferenciar brincar e brinquedo, já que este ―remete ao produto de certa atividade, a um produto com determinados conteúdos, a atividade em si deve ser marcada pelo verbo no infinitivo, que indica seu caráter de produção.

Wallon, H. (2007, p. 54) afirma que o brincar é a atividade própria da criança e que se confunde com toda a sua atividade enquanto esta permanecer espontânea, sem influência das disciplinas educativas. O autor divide o brincar em: brincadeiras funcionais, de ficção, de aquisição e de fabricação.

As brincadeiras funcionais encontram-se no primeiro estágio do bebê e são movimentos simples: estender e encolher os braços, produzir ruídos. São atividades que buscam um efeito e são importantes para o aprendizado do uso calculado e adequado dos nossos gestos.

As brincadeiras de ficção, ou faz-de-conta, como o brincar de boneca ou ser super-herói, permitem à criança vivenciar no simbólico aquilo que não pode viver na realidade.

As brincadeiras de aquisição parecem captar toda a atenção da criança, que se esforça para tudo ver, entender e ouvir. Já nas brincadeiras de fabricação, ela junta e combina objetos, modifica-os, cria novos.

Freud, S. (1976), no seu texto Além do Princípio do Prazer, relata uma seqüência lúdica que observou durante semanas em um menino de 18 meses, seu neto. A atividade consistia em jogar fora e para longe de si os objetos que lhe caiam nas mãos, pronunciando com ar de júbilo um som que a mãe e o observador interpretaram como sendo a palavra fort, (longe). Este era o primeiro jogo desta criança, que revela prazer em pedir ao adulto que lhe devolva o que jogou longe. O menino é descrito como tranqüilo; respeita a ordem dos adultos e não toca nos objetos que lhe são proibidos. Possuía apenas rudimentos de linguagem e de modo algum era precoce no seu desenvolvimento intelectual. Também não reclamava durante as ausências da mãe. Esta atividade torna-se ainda mais claramente lúdica quando ele começa a usar um carretel amarrado a um cordão que retém em sua mão. Lança o carretel dizendo fort e satisfaz-se, sobretudo quando o puxa, fazendo voltar para si o carretel, pronunciando a palavra da (aqui).

O estudo desta seqüência é um exemplo de como, por meio do brincar e do jogo simbólico, a criança utiliza o comportamento ativo que obriga a mãe a voltar, ao invés de sofrer passivamente com a sua ausência. Também se pode dizer que, ao jogar o objeto, a criança atrai a atenção da mãe e demonstra a sua agressividade, como se lhe dissesse: ―eu jogo você fora, já que me abandona. Com o carretel pode-se observar que o jogo de fazer desaparecer um objeto, sabendo que ele pode reaparecer, é uma atividade simbólica e a criança já não necessita da presença do adulto para que se satisfaça com o jogo.

Trago o relato desta observação pela ênfase dada ao estudo do brincar espontâneo na infância, à sua riqueza e importância para o desenvolvimento da inteligência e manipulação do pensamento simbólico.

Winnicott, D. (1979, p. 162) aponta diversos motivos para o brincar infantil, tais como: prazer, dominar angústias, adquirir experiência.

Crianças gostam de brincar; têm prazer nas experiências físicas e emocionais proporcionadas pela brincadeira e criam brincadeiras com facilidade. No entanto, é mais difícil perceber que também podem, pelo brincar, tentar dominar angústias ou controlar idéias e impulsos que as provoquem.

A criança adquire experiência na brincadeira e na fantasia. As personalidades das crianças ―evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções de brincadeiras feitas por outras crianças e por adultos. (WINNICOTT, 1979, p. 163).

Para este autor, em sua obra O Brincar e a Realidade (1975), o brincar tem um lugar e um tempo, localiza-se no espaço transicional, no espaço potencial entre o individuo e o meio ambiente (originalmente o objeto). O uso desse espaço é determinado pelas experiências de vida vivenciadas desde os estágios primitivos de existência do sujeito, que une mãe e bebê. Inicialmente fundido ao objeto, o bebê desenvolve-se, se encontra um relacionamento de confiança, no interjogo entre a realidade psíquica e experiência de controle de objetos reais, presente no brincar. O uso de um objeto transicional seria, portanto, o primeiro uso de um símbolo pela criança como também a primeira experiência da brincadeira. Para Rosa, S (2002, p. 31) a principal função dos objetos e fenômenos transacionais é ―dar forma a um território que será sempre importante para o ser humano, um território de ‗descanso‘, uma área não contestada da experiência onde terá lugar o brincar e, mais tarde, a experiência cultural.

― Brincar é fazer. (Winnicott, 1975, p. 63). A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira. E, para o bebê,

--- todo e qualquer pormenor de sua vida constitui exemplo do viver criativo.

Dada a oportunidade, o bebê começa a viver criativamente e a utilizar objetos reais para neles e com eles ser criativo. Se o bebê não receber essa oportunidade, então não existirá área em que possa brincar, ou ter experiência cultural, disso decorrendo que não existirão vínculos com a herança cultural, nem contribuição para o fundo cultural. (WINNICOTT, 1975, p. 141).

Uma criança, a quem não foi dada a oportunidade de descobrir e viver criativamente, seria uma criança incapaz de brincar e com pouca capacidade de experiência cultural.

Winnicott afirma que:

É a brincadeira que é universal e que é a própria saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; (...) (WINNICOTT, 1975, p. 63) Segundo Dolto, F. (1999) o brincar sadio do ser humano, desde suas primeiras atividades lúdicas, é sempre inventivo e criativo, nunca estereotipado.

Dolto, F. (1999, p.112) também faz referência a jogos associados a etapas do desenvolvimento. Aos jogos de perceber e explorar seguem-se os jogos que lidam com o ter e o guardar e, depois, os jogos de fazer. Com a descoberta das características sexuais, os jogos se diferenciam entre meninos e meninas. Meninos gostam de construir para depois destruir. Se brincam em grupos, a brincadeira é ruidosa; brincam de guerra, são todos generais. As meninas querem brincar na casa construída, brincam de bonecas; querem se fazer bonitas e são todas princesas. ―Todo jogo é mediador de desejo, traz consigo uma satisfação e permite expressar seu desejo aos outros, em jogos compartilhados. (DOLTO, 1999, p. 113).

Para Dolto, F. (1999, p. 110) uma criança saudável é uma criança que brinca. ―Privar uma criança de brincar é privá-la do prazer de viver.

Para Vigotski, L. (2008, p. 108) o brincar infantil é de grande importância na análise do processo de constituição do sujeito. Apresenta o brincar como uma atividade pela qual os significados são construídos social e historicamente e que também permite o surgimento de outros significados e sentidos. O brincar e o jogo de faz-de-conta são considerados espaços de construção de conhecimentos pelas crianças que se apropriam, de maneira específica, dos significados que permeiam essas atividades, dando-lhes sentido singular.

Ainda segundo Vigotski, L. (2008), o desenvolvimento humano é um processo social, necessariamente mediado por um outro social, no contexto da própria cultura. A criança nasce, portanto, em um meio cultural imerso em significações social e historicamente produzidas, definidas e codificadas, que são constantemente ressignificadas e apropriadas pelos sujeitos em relação com outros sujeitos. O brincar é importante para o desenvolvimento infantil na medida em que contribui para a mudança na relação da criança com os objetos. É na brincadeira que a criança pode transformar e produzir novos significados. Ela pode dar outros sentidos aos objetos e jogos a partir de sua própria imaginação ou na trama de relações com os amigos com os quais produz novos sentidos e os compartilha.

Ainda Vigotski, L. (2008, p. 112) afirma que a criação de situações imaginárias na brincadeira surge da tensão entre a criança e a sociedade e o brincar liberta o individuo das restrições impostas pela realidade imediata ao tempo em que lhe oferece oportunidade para controlar uma situação existente. A brincadeira é a realização de algo que não pode ser imediatamente satisfeito. Neste sentido, a brincadeira pode representar freqüentemente a zona de desenvolvimento proximal e promove desenvolvimento.

Finalmente, nesta tentativa de abordar diversas contribuições que consideram a importância do brincar como instrumento da prática psicopedagógica e da elaboração de conceitos à formulação desta prática, não posso deixar de me reportar às conseqüências que resultam da introdução da teoria do significante, elemento essencial da conceituação lacaniana em sua incidência na investigação da constituição subjetiva. (LACAN, 1966). O homem é um ser que fala, mas já é falado antes de nascer. A aquisição da linguagem e o uso que dela pode fazer estruturam o sujeito, que se define como um efeito do significante. Resulta daí que não se pode entender uma criança, um adolescente ou um mesmo adulto, sem retroceder até onde ela ainda não estava. E isto significa buscar as suas relações com o discurso do grande outro, com o qual, desde sempre a criança, ainda bebê, brinca jogando com os fonemas, como seus primeiros brinquedos, em seus gorjeios e lalações.

Nesta perspectiva, o brincar — seja com os fonemas ou as palavras, seja com elementos do seu próprio corpo ou do corpo da mãe, seja com qualquer objeto, empregado em sua atividade lúdica —deve ser tomado, mais além de sua dimensão simbólica, como elemento significante (LEFORT, R. e LEFORT, R., 1984 e RODULFO, R., 1990), de um discurso que o sujeito não sabe, ou ainda não sabe, ou não pode articular.

Atribuindo ao brinquedo sua dimensão de significante, o brincar permite uma avaliação muito sensível do estado de desenvolvimento simbólico de uma criança, pois o discurso é um encadeamento de significantes e o brincar, que implica o espaço das distâncias abolidas, o desaparecimento simbolizado e a transicionalidade, abre uma rica possibilidade para a abordagem de discursos sem palavras, daqueles que não falam, mas articulam significantes ao brincar.

Sozinhas ou acompanhadas, seja na brincadeira egocêntrica ou não, em jogos de regras ou simbólicos, as crianças brincam. E ao brincar constroem um mundo segundo o seu olhar, suas vivências e seus sentimentos, estabelecendo relações com as pessoas, os objetos, com o saber e o não-saber.
 

O BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Não há forma possível de se tornar adulto sem passar pela infância. Também não há forma de pensar sobre desenvolvimento e educação infantil sem levar em consideração o lúdico e o brincar, atividades que ajudam à criança a se constituir sujeito e a moldar sua visão de mundo.

Se ao brincar a criança coloca em ação seus sentimentos e emoções; se é brincando e jogando que ela ordena sua maneira de enxergar o mundo, assimila experiências e informações, incorpora atividades e valores, será imprescindível brincar também na escola.

Fernández, A. (2005, p. 99) relata a conversa de duas meninas acerca do aprender. Ao final da conversa a menor delas chega à conclusão do que vem a ser aprender: ―aprender é quase tão lindo quanto brincar. Esta é, para mim, uma das melhores definições de aprender. Penso que a diferença ou a distância marcada pelo ―quase‖ pode estar no quantum de alegria de quem brinca e aprende. E de quem ensina. O desafio de quem ensina é abrir espaço para o brincar e promover saber no espaço de trabalho, deslocando para este lugar o prazer e a criatividade. ―Um bom ensinante é um bom aprendente. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p.36).

Ensinante não é apenas o professor; é todo aquele que ensina. Aprendente não é apenas o aluno; é todo aquele que aprende. Aprendente e ensinante são papéis complementares, intercambiáveis, dialéticos. Aprendente e ensinante têm a responsabilidade compartilhada do processo de aprender; estão juntos nesse terreno de risco, no desafio de aprender e ensinar. (FERNÁNDEZ. A., 2001, p. 33).

Mais do que ensinar (mostrar) conteúdos de conhecimentos, ser ensinante significa abrir um espaço para aprender. Espaço objetivo-subjetivo em que se realizam dois trabalhos simultâneos:

a) construção de conhecimentos;

b) construção de si mesmo, como sujeito criativo e pensante. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p. 30).

Ser ensinante é poder fazer o trabalho subjetivo de aceitar que, tal como um objeto transicional, a prova de que fomos úteis está em que o aprendente não necessita mais de nós. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p. 35).

Ser aprendente é aprender ao mesmo tempo em que se constrói como sujeito. Processos de aprendizagem são construtores de autoria.

Qual o plus que o aprender outorga? Algo mais profundo, subjetivante (além do esquecimento do conteúdo aprendido) permanece e transporta-se para todo o acionar do sujeito aprendente: é prazer de dominar... a bicicleta, instrumento – lápis – escrita - conhecimento. Prazer de dirigir, de ter autonomia, prazer de superar os limites de velocidade que o organismo permite, prazer de transcender o tempo e o espaço. Prazer de mover-se sobre a terra sem pisá-la. Prazer de apropriar-se de sua autoria produtiva. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p. 31)

Apesar de relacionados, brincar não é o mesmo que aprender. Ocorrem no mesmo espaço, o espaço transicional como descrito por Winnicott, D. (1975), espaço também da criatividade e da experiência cultural. No que diferem, então? Aprender implica no reconhecimento de certa legalidade que não é necessária no brincar. ―Uma das diferenças entre jogar e aprender é que aprender se situa entre o ‗desejo‘ de conseguir algo e consegui-lo, ainda que o jogar seja um modo consegui-lo em outro espaço. (FERNÁNDEZ, A., 2005, p. 99). Será preciso combinar o desejo com a possibilidade de realizá-lo para que o aprender ocorra.

A escola é o lugar onde crianças encontram adultos investidos do poder de ensinar. Possibilitar a potência criativa do brincar e do aprender dependerá de encontrarmos ensinantes que ―desfrutem o aprender, o brincar com as idéias e as palavras, com o sentido do humor, com as perguntas de seus alunos. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p. 36).

Aprender é apropriar-se da linguagem; é historiar-se, recordar o passado para despertar-se ao futuro; é deixar-se surpreender pelo já conhecido. Aprender é reconhecer-se, admitir-se. Crer e criar. Arriscar-se a fazer dos sonhos textos visíveis e possíveis. Só será possível que os professores possam gerar espaços de brincar-aprender para seus alunos quando eles simultaneamente os construírem para si mesmos.

Brincando descobre-se a riqueza da linguagem, aprendendo vamos apropriando-nos dela. (FERNÁNDEZ, A., 2001, p. 36)

Será necessário que, também na escola, a criança tenha alegria em aventurar-se na fantasia e no imaginário, transite livremente entre o que é apresentado como objeto do conhecimento e a subjetividade para que possa estabelecer conexões entre o saber e o não saber, o novo e o velho, e formule hipóteses.

E como se brinca na escola?

É a esse brincar subjetivante e criativo, capaz de promover autonomia e autoria de pensamento que a escola geralmente se refere? Penso que não.

Pude observar uma criança de três anos brincando sozinha, completamente entretida num faz-de-conta. Brincava de escolinha; era a professora e os bonecos eram seus alunos. Pediu que todos ficassem sentados e quietos para lhes contar uma estória. De repente reclama com alguns dos alunos que lhe desobedecem. ―João fique quieto! O que é isso Júlia? JOÃO! Assim não vai ganhar pirulito depois da estória. Micael, você vai ficar de castigo! Eu estou falando sério, não estou brincando!

O que faz essa criança no jogo simbólico? Reproduz, no brincar, o modelo ensinante/aprendente vivenciado na escola? Se assim o for, como ela elabora, pelo brincar, as ameaças de castigo e represálias que sofre na escola? O que pensa essa escola a respeito do brincar e do aprender? Que lugar ele ocupa no dia-a-dia da escola? Do que brinca essa criança nessa escola? Que estórias ouve? Quem as conta? Quem as escolhe? Por que ouvir estórias? Por que ouvir estórias quietos e sentados? Não haveria uma forma de brincar com a estória, vivê-la, seja imitando gestos, fazendo sons, representando-a? Como controlar quietos e sentados, por exemplo, todo o medo e angústia que o Lobo Mau provoca?

O jogo simbólico e o brincar, contudo, não são as únicas atividades lúdicas presentes na escola. Há também os jogos com regras. Macedo, L. (2005, p.14) diferencia o brincar e o jogar. Para ele, o jogo é um dos mais importantes substitutos do brincar.

O jogar é o brincar em um contexto de regras e com um objetivo predefinido. Jogar certo, segundo certas regras e objetivos, diferencia-se de jogar bem, ou seja, da qualidade e do efeito das decisões e riscos. O brincar é um jogar com idéias, sentimentos, pessoas, situações e objetos em que as regulações e os objetivos não estão necessariamente predeterminados. No jogo, ganha-se ou perde-se. Nas brincadeiras, diverte-se, passa-se um tempo, faz-se de conta. No jogo, as delimitações (tabuleiro, peças, objetivos, regras, alternância entre jogadores, tempo, etc.) são condições fundamentais para sua realização. Nas brincadeiras, tais condições não são necessárias. O jogar é uma brincadeira organizada, convencional, com papéis e posições demarcadas. O que surpreende no jogar é seu resultado ou certas reações dos jogadores. O que surpreende nas brincadeiras é sua própria composição ou realização. O jogo é uma brincadeira que evoluiu. A brincadeira é o que será do jogo, é sua antecipação, é sua condição primordial. A brincadeira é uma necessidade da criança; o jogo, uma de suas possibilidades à medida que nos tornamos mais velhos. Quem brinca sobreviveu (simbolicamente); quem joga jurou (regras, propósitos, responsabilidades, comparações). (MACEDO, L., 2005, p. 14)

Ainda segundo esse autor (2005, p. 16) valorizar o lúdico na aprendizagem pode ser uma forma de aproximá-la da criança, já que para ela apenas o lúdico faz sentido. Dizer que ―a escola é fundamental para o bem das crianças é um discurso e uma exigência dos mais velhos.

É fato que o ciclo de escolarização básica é obrigatório. Crianças são obrigadas a freqüentarem a escola até 15 ou 18 anos. Essa obrigatoriedade garante, também, o desejo de aprender?

Escola obrigatória que não é lúdica não segura alunos, pois eles não sabem nem têm recursos cognitivos para, em sua perspectiva, pensar na escola como algo que lhes será bom em um futuro remoto, aplicada a profissões que eles nem sabem o que significam. As crianças vivem seu momento. Daí o interesse despertado por certas atividades como jogos e brincadeiras. (MACEDO, L., 2005, p. 17)

Como avaliar a dimensão lúdica das atividades escolares? Como envolver as crianças nas tarefas escolares? Como ensinar àquelas que não encontram sentido nessas tarefas? Por que aprender se os professores não desejam ensinar ou parecem não saber o sentido daquilo que ensinam?

(...) quantas crianças em idade escolar estudam por prazer ou por interesse, e não controladas por nota? Quanto da motivação caracteristicamente humana pela busca de conhecimento sobrevive às nossas escolas – das piores às melhores? Quanto dessa motivação sobrevive até em nós, professores, sob as pressões de produção e avaliação? Será que vamos cometer a proeza de conseguir um dia que as crianças brinquem só porque, como, onde e quando se espera que elas brinquem? (LORDELO, E. e CARVALHO, A. M., 2003)

Macedo, L. (2005, p. 16) alerta-nos para o fato de que jogar pressupõe um convite: vamos jogar? Cabe ao convidado decidir se quer ou não fazer parte da trama do jogo.

No tabuleiro chamado escola, as crianças só podem ser peças de nosso jogo, ainda que justificado para o bem delas, ou também pode ser jogadores que decidem se querem ou não jogar e, mais que isso, como querem jogar? (MACEDO, L., 2005, p. 16)

Fernández, A. (2001, p. 33) chama a nossa atenção para o uso de jogos de competição na aprendizagem. O aprender é mesclado com o perigo de perder ou ficar de fora da então chamada ―brincadeira‖. Numa competição alguém tem que chegar em primeiro, e alguém tem que perder. Será disso que trata a aprendizagem? ―A escola, transformada em centro de treinamento e competição, é produtora de neurose.

A escola — diz Mannoni —, depois da família, converteu-se hoje no lugar escolhido para fabricar neuroses — que são ‗tratadas‘ posteriormente em escolas paralelas chamadas de hospitais de dia. É necessário dizer que a adaptação escolar — escreve F. Dolto — é agora, salvo raras exceções, um sintoma importante de neurose. Os analistas encontram-se com uma forma nova de enfermidade que não precisa ser ‗tratada‘. Consiste na negativa de adaptar-se, sinal de saúde na criança que rechaça esta mentira mutiladora em que a escola o aprisiona. (FERNÁNDEZ, A., 1991, p. 88).

Penso que é observável, na maioria de nossas escolas atualmente, a urgência de trabalhar com as crianças os conteúdos formais da aprendizagem cada vez mais cedo, muitas vezes em detrimento da dimensão lúdica, até mesmo na educação infantil.

Rapidamente lhes impomos aquilo que constitui nossa principal ferramenta de conhecimento e domínio do mundo: os conceitos científicos, a linguagem das convenções e os signos arbitrários, com seus poderes de generalidade e abstração. (MACEDO, L., 2005, p. 20)

Faz-se necessário garantir o lugar do brincar na escola, estabelecer uma parceria entre aprendente e ensinante e construir a história de quem está no lugar de quem ensina e de quem aprende. Brincando, podemos trocar de lugar sem comprometer a aprendizagem significativa, sem perder a alegria, interligando brincar, criar, fazer, jogar, aprender.
 

O BRINCAR NA CLÍNICA PSICOPEDAGÓGICA  

Aberastury, A (1992) pontua que as formas de brincar são características de etapas do desenvolvimento infantil e que há razões para um brinquedo aparecer em determinada idade e não em outra. E afirma que

o não brincar no momento com o brinquedo correspondente acarreta perturbações, e o fato de não surgir em determinado modo de brincar pode ser um sinal de mau desenvolvimento. (ABERASTURY, 1992, p. 12)

Essas formas características do brincar em cada idade oferecem à criança experiências que correspondem às necessidades específicas de cada etapa do desenvolvimento.

Petot, J-M. (1987, p. 88) relata que Melanie Klein foi a iniciadora da técnica psicanalítica com crianças, fazendo uma psicanálise baseada no lúdico. Para ela o jogo infantil espelha os conflitos e as fantasias inconscientes e devem ser interpretadas da mesma forma que os sonhos e as associações livres do adulto. A psicanálise com criança torna-se possível porque Klein soube manejar e interpretar o brincar. O recurso simbólico de Melanie Klein foi a linguagem lúdica. O brincar é simbólico, senão não há jogo. O Jogo supõe a capacidade de dizer: ―isto não é real; é jogo.

Ao longo de toda obra Kleiniana fica claramente indicado que o jogo não é apenas satisfação de desejo, mas também triunfo e domínio da realidade desagradável. Para Klein a inibição no jogo tem o mesmo valor da inibição intelectual do adulto.

Em geral a psicanálise infantil de origem kleiniana centra-se no jogo, tomando-o, porém, como um processo defensivo e como um possibilitador de elaboração de situações traumáticas, sem considerá-lo quanto às possibilidades criativas, de aprendizagem, de identidade e de domínio. Winnicott vai ensinar-nos também como a criança joga, para expressar agressão, para adquirir experiência, para controlar ansiedade, para estabelecer contatos sociais como integração da personalidade e por prazer. (FERNÁNDEZ, A., 1991, p. 166).

Winnicott, D. (1975) acredita que o sucesso da psicoterapia depende da capacidade de brincar, tanto do terapeuta como do paciente:

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (WINNICOTT, 1975, p. 59).

E o que dizer do brincar na clínica psicopedagógica?

O objeto da psicopedagogia é o ser cognoscente, o sujeito que aprende. Ao psicopedagogo importa saber a forma como cada sujeito aprende. Penso que existe uma interseção entre o brincar e o aprender. É pelo brincar que as primeiras aprendizagens ocorrem, que o sujeito se mostra e se constrói. A forma como brinca influi na forma como aprende e dá significado a sua realidade. Se a forma como o sujeito brinca influi na forma como aprende, algum déficit na aprendizagem pode estar vinculado a um possível déficit no brincar. Assim, acredito que também a clínica psicopedagógica seja um espaço onde duas pessoas, psicopedagogo e criança (adolescente ou adulto), brincam juntas. E, ao criar um espaço onde seja possível brincar, também se cria a possibilidade do aprender.

Nossos pacientes apresentam um déficit no jogar, em correlação com seu déficit de aprendizagem. A prática clínica nos demonstrou, por outro lado, como ao instrumentar o brincar no tratamento, criando esse espaço compartilhado de confiança, pode-se ir modificando a rigidez ou a estereotipia das modalidades das aprendizagens sintomáticas. Dizemos que o objetivo do trabalho psicopedagógico dirige-se a ajudar a recuperar o prazer perdido de aprender e a autonomia do exercício da inteligência, esta conquista vem de um outro, e um espaço de confiança. (FERNÁNDEZ, 1991, p. 166-7).

Luzuriaga, I. (2008, p. 14) faz um alerta para o quanto de ignorância e preconceito ainda existe no que diz respeito às neuroses infantis. Para ela, uma grande porcentagem das crianças diagnosticadas pela escola como débeis mentais é capaz de aprender. Se acreditam nesse diagnóstico, essas crianças assumem sua ―doença‖, tornam-se desesperançosas, deixam de lutar e de lançar sinais de alerta. E sofrem.

Para esta autora (2008, p. 17), toda neurose implica também em um ataque contra a capacidade intelectual do sujeito, já que ―é um sistema estruturado de tentativas de auto-engano que tem como fim impedir que ela funcione ‗normalmente‘ tanto ao dirigir-se para fora, ao mundo dos objetos, como para dentro, ao mundo interior‖.

A maioria das neuroses infantis é diagnosticada em idade escolar, seja porque elas se tornam mais evidentes, seja porque os pais já não podem mais suportar. A escola seria, então, um teste obrigatório de adaptação da criança à realidade, ao tempo em que também teria a função de detectar problemas neuróticos na infância. Tal função poderia ser muito mais eficaz se o sistema de educação vigente valorizasse mais a capacidade intelectual criativa e dinâmica, ao invés de condutas intelectuais obsessivas e uma desmedida busca por informação. (LUZURIAGA, I., 2008, p. 18). Sintoma só é sintoma porque incomoda, atrapalha, alerta. Não aprender é sintoma. Ser desatento é sintoma. Hiperativo também. E o que dizer do caderno compulsivamente organizado? É sintoma? E o mero repetir do que foi visto em aula, sem questionar nem se apropriar de um saber, é sintoma? Penso que sim. Contudo, estes são sintomas mais difíceis de chegar à clínica psicopedagógica, já que não incomodam o viver na escola, como o não aprender, a desatenção, a indisciplina. Os alertas que lançam parecem impossíveis de serem decodificados pela escola.

Incomodando seu entorno ou não, o sintoma neurótico na infância interfere na capacidade intelectual. Luzuriaga, I. (2008, p. 19-20) defende que se coloque ênfase não na ausência ou mal funcionamento da inteligência, mas sim num funcionar ativo da inteligência contra si mesma, ―algo como a existência de uma contrainteligências orgânica e fértil em recursos, que atua sem cessar, deixando, às vezes, a criança exausta.

Em certo sentido, ainda que nem sempre, é outro nome que damos ao instinto de morte, tal como ele se manifesta no plano intelectual. De fato, a inteligência é vida: sua essência é vida. (...)

O instinto de vida é movimento, impulso para o outro, para conhecer-lhe e fundir-se a ele em diferentes graus.

A contrainteligência, ao contrário, é geralmente tanática Sua essência é a negação, a não compreensão, a desconexão de vínculos significativos. É separação e, portanto, morte. (LUZIRIAGA, I., 2008, p. 19)

Para Fernández, A. (1991, p. 86) a especificidade do sintoma na aprendizagem consiste em bloquear a inteligência e, mas precisamente, a capacidade de aprender, que não é parte do corpo nem uma função corporal. ―A estrutura inteligente forma parte do inconsciente, e a aprendizagem é uma função em que participam tanto a estrutura inteligente como a estrutura desejante, ambas inconscientes, É possível encontrar uma inteligência detida ou transformada em diferentes níveis de desorganização, produto de um sintoma instalado no momento de seu desenvolvimento. ―O sintoma de aprendizagem é a inteligência detida, construindo de forma constante seu aprisionamento‖. O sintoma de aprendizagem é a contrainteligência. A criança, que vivencia ansiedades e conflitos que não consegue suportar, pode fazer voltar contra si própria a inteligência e, assim, evitar qualquer união ou combinação que coloque em movimento a capacidade de criar novas formas vitais, sejam elas biológicas ou mentais. Ainda que pareça paradoxal, ―deve possuir uma boa dose de inteligência para conseguir não ser inteligente‖. (LUZIRIAGA, I., 2008, p. 21).

E o que fazer para que a inteligência volte a atuar a favor de si mesma, do instinto de vida, do próprio sujeito e do aprender?

Talvez brincar. Pelo brincar a criança expressa sentimentos, desejos, medos e conflitos. Se estivermos atentos a esse brincar, como brinca, o que escolhe para brincar, o que evita, com que tipo de material brinca, como organiza o seu brincar, quem sabe poderemos intervir e ajudá-la a superar bloqueios e retomar o seu aprender. Será preciso ser capaz de brincar com a criança para possibilitar espaços de significação na clínica. Será igualmente preciso conquistar a confiança a cada atendimento, a cada palavra e a cada brincadeira.

Fernández, A. (2005, p. 17) afirma ser necessário jogar-brincar ―para pensar com autoria, para poder manter nossos sonhos, para recordar o esquecido, para suportar, e, até mesmo, superar muitos de nossos sofrimentos‖. Essa autora diz que o ―psicodrama é jogar-brincar‖ e defende seu uso em psicopedagogia, pois o aprender situa-se no mesmo espaço do jogar, que descreve como espaço entre. ―Entre a ciência e a poesia, entre o conhecimento e o saber, entre a subjetividade e a objetividade‖. (FERNÁNDEZ, A., 2005, p. 69)

O jogar da criança não só é produtor do sujeito enquanto sujeito desejante, mas também enquanto pensante. A inteligência se constrói a partir do jogar-brincar. Um ato inteligente é um ato de desadaptação criativa com a realidade. Precisamos dar conta do que se nos oferece, para poder transformá-lo.

 (...) Jogar é tomar e não tomar a legalidade das coisas, jogar é tomar e não tomar a realidade das coisas. Jogar é fazer experiências de ser autor. É fazer a experiência profunda, trágica e maravilhosa de ser absolutamente diferente de todos os outros e, por sua vez, semelhante a todos os outros. O jogar abre as portas do pensar e do fazer. (FERNÁNDEZ, A., 2005, p. 71)

Crianças com problemas de aprendizagem podem ter fraturas no brincar, o que dificultaria a realização de psicodrama desde o início. Fernández, A. (2005, p. 148) propõe que a arte do psicopedagogo esteja em ―propiciar que o paciente transforme a atuação ou a ação em um jogo simbólico. A partir daí se poderá passar ao jogo dramático e depois a um psicodrama.

Ao incluir o brincar, brincadeiras e jogos como formas de atuar na clínica psicopedagógica abre-se um espaço para a criatividade e a fantasia. O lúdico envolve a imaginação, os sonhos, as emoções e a fantasia. Ao jogar a criança expressa o que lhe é mais subjetivo, de forma desinteressada e livre. Jogar é criar uma possibilidade de reorganização daquele que joga, a partir do reconhecimento de suas capacidades, sentimentos e conflitos que emergem no jogo.
 

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

Quando criança, andava de bicicleta pelo bairro onde morava, tinha autonomia para ir sozinha para a casa de minhas avós ou de alguns amigos. Meus bonecos tudo e nada podiam fazer. Meus bonecos faziam aquilo que eu imaginava possível.

A forma de viver da atualidade faz com que a mesma tecnologia colocada à serviço do homem, do aprender e do brincar, seja geradora de estresse e depressão em adultos e crianças. Apesar de ser de grande valia, a máquina não pode substituir o homem enquanto sujeito desejante, pensante, criativo.

Diante da ameaça, contudo, torna-se imperioso garantir espaço para o brincar, para a criatividade e para a experiência cultural.

É inquestionável que novas tecnologias e condições de vida são fenômenos que produzem mudanças no nível de representação do corpo, do espaço e do tempo. Muitas das crianças que conheço moram em apartamentos, não podem sair sozinhas, às vezes brincam no playground. Jogam videogames, assistem televisão.

Crianças em ―gaiolas jogando jogos que oferecem pouco ou nenhum espaço para a criação de soluções novas, já que nos videogames as resoluções são previamente programadas. Crianças muitas vezes com pouco contato com outras crianças na maior parte do tempo. Crianças agitadas na escola, diagnosticadas, rotuladas: é um TDAH. E medicadas.

E o que fazer? Viver de lembranças, presos a uma nostalgia do passado? Queixarmo-nos do progresso? Penso que nem uma coisa nem outra. Diante da irreversibilidade das mudanças que o progresso traz, acredito que o melhor a fazer é encontrar uma forma produtiva e criativa de integrá-las à escola e ao brincar infantil e adulto.

Muito ainda há de ser pesquisado sobre essas mudanças e suas conseqüências no corpo, no brincar, no aprender e no viver dessas crianças e no futuro.

Entretanto, também penso que, enquanto se pesquisa, é imprescindível garantir espaços onde o brincar, inerente a toda e qualquer criança, possa ocorrer.

― Assim como jogar permite-nos fazer visíveis nossos sonhos, aprender, enquanto nos constitui como autores, permite-nos fazê-los possíveis. (FERNÁNDEZ, 2001, p. 74)


REFERÊNCIAS

ABERASTURY, Arminda. A criança e seus jogos. Tradução de Marialzira Perestello. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 1992.

DOLTO, Françoise. As etapas decisivas da infância. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes: 1999.

FERNÁNDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Tradução de Iara Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 1991.

______. Os idiomas do aprendente: análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Tradução de Neusa Kern Hhickel e Regina Orgler Sordi. Porto Alegre: Artmed, 2001.

______. Psicopedagogia em psicodrama: morando no brincar. Tradução de Yara Stela Rodrigues Avelar. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.  

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Tradução de Christiano Monteiro Oiticica. In: Edição Standard Brasileira das Obras de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, elaborado pelo Instituto Houaiss de Lexicografia e Banco de

Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LEFORT, Rosine e LEFORT, Robert. Nascimento do outro: duas psicanálises. Tradução de Ângela Jesuíno. Salvador: Fator, 1984.

LIMA, Maria Auxiliadora Vasconcelos Peres. Uma reflexão sob o ato de brincar. Disponível em www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=821  Acesso em 04/10/2008.

LORDELO, Eulina da Rocha e CARVALHO, Ana Maria Almeida. Educação infantil e psicologia: para que brincar? Psicol. cienc. prof. (online). Jun 2003, vol 23, no. 2., disponível em http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttex&pid=S1414-98932003000200004&Ing=pt&nrm=iso ISSN 1414-9893. Acesso 11/9/2008.

LUZURIAGA, Isabel. La inteligencia contra sí misma: el niño que no aprende. 2. ed. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2008.

MACEDO, Lino; PETTY, Ana Lúcia Sícoli e PASSOS, Norimar Christe. Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2005.

NARDI, Beloni Maria. Contibutos do jogo no desenvolvimento infantil. Disponível em www.abpp.com.br/artigos/63.htm Acesso em 04/10/2008.  

PETOT, Jean-Michel. Melanie Klein I: primeiras descobertas e primeiro sistema, 1919-1932. Tradução de Marise Levy, Noemi Moritz Kon, Belinda Piltcher e Marina Kon Bilenky. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ROBLES, Heloísa Stoppa Menezes. A brincadeira na educação infantil: conceito, perspectiva histórica e possibilidades que ela oferece. Disponível em www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=943 . Acesso em 04/10/2008.

RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição do sujeito. Tradução de Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

ROSA, Sanny S. Brincar, conhecer, ensinar. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002. Coleção Questões de nossa época, n. 68.

VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução de José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. 7 ed. São Paulo: Martins fontes, 2008.

WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Tradução de Cláudia Berlinier. Revisão de Izabel Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WINNICOTT , D. W. A criança e seu mundo. Tradução de Álvaro Cabral. 5 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

______. O brincar e a realidade. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Revisão de Francisco de Assis Pereira. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Thereza Sampaio é Psicóloga, Psicopedagoga e Sociopsicomotricista Ramain-Thiers. Salvador – BA.

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