INTRODUÇÃO
Uma sociedade democrática supõe uma sociedade inclusiva, que é
aquela que acolhe a todos, sem distinção de sexo, etnia,
deficiência, orientação sexual e outras diferenças, que aprecia
e valoriza a diversidade humana, estimulando a participação de
todos. O movimento de inclusão tem sido objeto de polêmicas nos
segmentos sociais e, também, educacionais. Assim, ocorre uma
preocupação com as mudanças na sociedade e o impacto dessas
mudanças no cotidiano das escolas. A inclusão tem-se constituído,
pois, uma questão social e, também escolar, trazendo novas
perguntas e consequente reestruturação dos pressupostos e
procedimentos que norteiam as práticas escolares.
Nesse sentido, foi desenvolvido por mim, uma das coordenadoras
de um núcleo de pesquisas e práticas educacionais de um
Instituto Superior de Ensino,
o Projeto Espaço Vida, que surgiu de uma demanda do Centro de
Saúde Mental da cidade.
O Projeto Espaço Vida se fundamentou na vertente da complexidade
humana e foi utilizada a Metodologia Ramain-Thiers, que, em sua
fundamentação teórica, se alinha à referida vertente.
Neste texto, apresentar-se-á uma síntese da fundamentação
teórica e metodológica do Projeto Espaço Vida, assim como os
resultados da pesquisa, que busca um diálogo entre o Curso de
Pedagogia e o Ramain-Thiers.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O Projeto
Espaço Vida se fundamentou na vertente da complexidade humana,
segundo a qual, para Morin (2003, p. 58), “o século XXI deverá
abandonar a visão unilateral que define o ser humano pela
racionalidade (Homo sapiens), pela técnica (Homo faber), pelas
atividades utilitárias (Homo economicuz), pelas necessidades
obrigatórias (Homo prosaicus)”, ou seja, o ser humano é
complexo, traz em si caracteres antagônicos o que significa
ainda conforme Morin (2003, p. 59), “existe, ao mesmo tempo
unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens
e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do
conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o
conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético”.
Do mesmo
modo, a metodologia Ramain-Thiers considera o homem, em sua
complexidade. Trabalha a globalidade do humano, com ênfase no
corpo que, como diz Thiers (2001, p. 548 - 549) “pode ser lido
pelo soma, pelo psiquismo, pelo intelectual, pela criatividade
[...] concebe o ser uno: corpo-mente-psique”, numa visão de ser
humano que ultrapassa as dicotomias semânticas corpo x mente,
corpo x emoção, corpo x social, compreendendo-o, pelo contrário,
como um ser uno, marcado pelo inconsciente. É uma metodologia de
fundamentação multidisciplinar, abrangendo o Corporal,
Psicomotricidade, Filosofia e Ética.
Considerando a complexidade humana, o que dizer da educação? Ora,
a educação deve tomar como referência o caráter multifacetado do
homem, sua complexidade, enquanto espécie, indivíduo, ser
social, ser histórico, aspectos estes entrelaçados e
inseparáveis. Essa concepção de ser humano conduz , no dizer de
Morin (2001, p. 61), “à tomada de conhecimento, por conseguinte,
de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito
rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das
culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra ...”
Dessa concepção, surge a necessidade da busca de formas de
organização do processo educativo, mais comprometidas com a
emancipação humana , porque, como diz Scalco ( 2001, 92), “o
acolhimento dos múltiplos olhares na organização do trabalho
pedagógico tem possibilitado a inclusão de novas relações
educativas, nas quais o aflorar dos sentimentos é ressignificado
pelas práticas de cooperação e da solidariedade”.
Importa acrescentar ainda que o trabalho também teve como
referência a perspectiva de trabalho em Redes Sociais – tão
necessária a qualquer proposta de inclusão social, visto que
busca construir relações pedagógicas que propõem ao educador,
conforme Ude (2003, p. 131), “que devolvam aos sujeitos do seu
atendimento a competência que eles têm para pensar e entender
seus próprios problemas e sofrimentos”.
FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA
O Projeto Espaço Vida foi desenvolvido de outubro de 2004 a
junho de 2005 e teve como objetivo geral proporcionar aos
usuários da saúde mental a possibilidade de atualização de suas
funções intelectuais, caminho para a inclusão social. Para isso,
foi criado um espaço intra e interpsíquico, através de encontros
semanais com os usuários, com o objetivo de:
- Possibilitar o
desenvolvimento de funções mentais como memória, atenção,
percepção, relação espaço temporal, através de atividades
individuais e grupais, fundamentadas na Sociopsicomotricidade
Ramain-Thiers, jogos, arte.
- Favorecer as relações
interpessoais.
- Vivenciar o corpo como
possibilidade de ser.
- Proporcionar condições
para a vivência de variadas formas de expressão.
a. Público-alvo:
22 pessoas, homens e mulheres, na faixa etária de 25 a 60 anos,
usuários do serviço de saúde mental do município, membros da
associação dos usuários da saúde mental, inclusive, toda a
diretoria participou do projeto,pessoas que iniciavam uma
história em prol da sua inclusão social
b. Metodologia de
pesquisa: A metodologia de pesquisa utilizada tem como
referência a pesquisa-ação que, é, segundo Thiollent (1985,
14), “ tipo de pesquisa empírica concebida em estreita relação
com uma ação, em que os pesquisadores e os participantes estão
envolvidos de modo cooperativo ou participativo.”
c. Instrumentos de pesquisa: THIERS, Solange
Orientador Terapêutico Thiers para Crianças "CR".
2ª ed., Rio de Janeiro: CESIR, 1998. A escolha desse Orientador
se justificou pelo grau de suas exigências psicomotoras e
cognitivas: a maioria dos participantes do grupo apresentava
dificuldades no gesto fino, tremor devido ao uso de
medicamentos.
d. Aplicação e
levantamento de dados: Foram realizados encontros semanais com a
duração de uma hora e meia, onde se desenvolveram as propostas
do Orientador Terapêutico CR e, como atividades semi-diretivas,
jogos, oficinas literárias e de aprofundamento de funções
cognitivas. Os eixos norteadores foram o corpo, o grupo, a
linguagem, baseando-se na concepção do homem, enquanto ser-no-mundo,
ser-um-corpo, ser-com-o-outro, ser de linguagem.
Os jogos desenvolvidos (bingo, quebra-cabeça, caça-palavras,
jogo da memória, palavras cruzadas dentre outros) possibilitaram
a atualização de funções cognitivas, num ambiente lúdico, de
descontração, de efetiva participação. A ludicidade torna
possível a quebra de tensão, a criação e ou fortalecimento de um
espaço de “autoria” (Fernandez, 2001, p. 32), de subjetividade,
de autonomia.
Nas oficinas literárias, foram trabalhados textos de Rubem Alves,
Câmara Cascudo, fábulas de Esopo, como facilitadores do
letramento, criatividade, autonomia.
Pode-se observar o envolvimento do grupo nos trabalhos corporais
da Metodologia Ramain-Thiers. O contato com a diversidade de
materiais em suas diferentes cores, espessuras, tamanhos
possibilitaram momentos de vida num corpo marcado pela dor,
descuido, sofrimento, alienação.
Nas propostas de psicomotricidade diferenciada, o erro, diante
da possibilidade de troca de lápis nas propostas Ramain-Thiers
foram de grande importância para o desenvolvimento do grupo, no
sentido de tirar o estigma de incompetência que o erro traz,
minimizando ou mesmo dissipando o horror ao mesmo. Ao se
apresentar a proposta, mesmo negada a borracha ao sujeito, era-lhe
transmitida a mensagem de que o erro poderia fazer parte do
cenário, porque lhe eram oferecidos os lápis de cor para a
correção.
As propostas Ramain-Thiers possibilitaram momentos de criação,
de sensibilidade estética e projeção de angústias, temores,
sonhos, alegrias. Os participantes falavam de si, através de
suas criações, e, no dizer de Freud (1987, p. 83) “elevando
sentimentos de identificação [...], proporcionando uma ocasião
para a partilha de experiências emocionais”.
Outro momento
de grande significado nos encontros era o da verbalização,
marcado pelo cuidado para com o espaço de fala de cada
componente do grupo, numa leitura horizontal da
sociopsicomotricista. Falavam das dificuldades na realização das
atividades, da alegria da realização das mesmas , da raiva pelo
erro, pelo insucesso, enfim, do significado da atividade na
própria vida. No início, era a voz do silêncio de homens e
mulheres, marcados pelas dores da alma mas, aos poucos,
timidamente, era uma palavra aqui, outra ali, um murmúrio, uma
frase, uma história ...
RESULTADOS DA PESQUISA
Os encontros se revestiram de significado para os participantes,
traduzido nas seguintes falas: “Eu fico aflita para chegar terça
feira pra poder estar aqui com o grupo”; ‘Pudemos provar que
somos mais que nada”; “Somos como qualquer outro”; “Fiz amizades”;
“A gente pode estar em sintonia com os outros”.
Com este projeto foi possível vislumbrar a abrangência do
trabalho do pedagogo, além da instituição escolar, e, de acordo
com Arroyo( 2000, p. 53), “ reaprender a dinâmica da
aprendizagem humana, do ensinar e aprender a sermos humanos” por
meio da associação de sensibilidade, eficiência pedagógica e
compromisso político , o que poderá contribuir para um clima de
esperança no cenário escolar e seu entorno.
Pode-se verificar a possibilidade de desenvolvimento da
Metodologia Ramain-Thiers em contextos pedagógicos, ou seja, é
possível um diálogo entre Pedagogia e Ramain-Thiers, numa rede
educação-saúde mental
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se escrever este artigo, ocorrem à lembrança possibilidades,
preconceitos, dificuldades, alegrias, tristezas, decepções,
conquistas, sucessos, fracassos, coragem, desânimo ... Nada mais,
nada menos que não faça parte do humano ou que constitua a arte
de viver num mundo tão diverso e adverso em que a inclusão
social é uma busca constante.
Diante do exposto, diz-se novamente que é possível o diálogo
entre a Metodologia Ramain-Thiers e o Curso de Pedagogia e, se
diálogo, pode-se aprender com Adélia Prado (1979, p. 124) no
seguinte...