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O
BAÚ DE RECORDAÇÕES
Solange Thiers
Depoimento |
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Para falar da minha trajetória profissional,
foi necessário de princípio entrar em contato com um mundo muito
especial. O meu mundo interno, povoado por novelos coloridos,
entrelaçados. E foi assim, puxando fio a fio, cor a cor, concedendo
intensidade variada a cada afeto envolvido [de acordo com a
situação] me vi começando a escrever este artigo.
Lá no fundo percebo um novelo vermelho. Começo
a puxá-lo lentamente para que não se rompa, pois é uma lembrança
querida. Em 1964 eu trabalhava no projeto Piloto, subvencionado à
época pela Fundação Ford. Tinha como objetivo o desenvolvimento de
crianças das favelas, hoje chamadas de comunidades. Em exercício no
morro do Salgueiro sempre questionei muito as dificuldades de
aprendizagem apresentadas pelos menores: junto a elas, vinha
carência de recursos que havia para solução de questões emocionais.
E a solução? Não a encontrava dentro do meu universo de saber. Devo
ressaltar que tínhamos treinamento intensivo com orientadores
pedagógicos e educacionais, suporte oferecido para as dificuldades
que encontrávamos.
Um pouco mais do fio se apresenta: em um desses
encontros a orientadora educacional Cidisa falou-me do Curso de
Terapia da Palavra (C.T.P.) ministrado por Abigail Caraciki - e por
uma equipe multidisciplinar onde se destacava o neurologista Vicente
Rezende. Aqui o vermelho é mais vermelho.
Meu entusiasmo cresceu diante da possibilidade
de alargar horizontes. Respeitando os trâmites legais, fui
requisitada pelo C.T.P. Assim começaram meus contatos com a
fonoaudiologia, conhecida então como “Terapia da Palavra”. Trabalhei
e estudei muito, tudo era novo, embora tivesse um Curso anterior que
me capacitava à Arte de Dizer e Oratória, ministrado por Maria
Sabina de Albuquerque, o Curso Olavo Bilac. Até então eu só possuía
uma excelente dicção e boa impostação de voz, porém ignorava o
processo cognitivo, as bases neurológicas da fonação, da audiologia,
da motricidade. Trabalhei muito tempo na sede que ficava na Rua
Maxwel, na Tijuca. Lá tínhamos grupos de estudos, supervisão e
constantes atualizações com profissionais convidados.
Neste momento sinto o fio passar do alaranjado
em direção ao vermelho: Abigail Caraciki, na busca de ampliar o
atendimento das crianças - pois as filas de espera eram grandes -
começou a abrir Unidades de terapia da palavra em diversas escolas
da rede pública. E designava pessoas da sua confiança para coordenar
as novas equipes, que se multiplicavam.
Fui convidada a ser Coordenadora da Unidade II
de Terapia da Palavra – e aceitei. Ficava na escola Barão de
Itacurussá, rua Andrade Neves, Tijuca. Um susto: a cor laranja se
mistura com preto. Vejo-me cercada por uma triste lembrança.
Aconteceu quando me apresentei. Fiquei decepcionada, quase desisti!
A Escola havia cedido o palco do auditório para a montagem de
cabines de atendimento. Mas que ironia – não, não podia ser!
Reclamei, pedi, briguei por melhores condições.
Mas o que se ouvia resumia-se a um “era assim ou nada”. Então o
idealismo, aquele de quando se deseja uma coisa de verdade - acabou
por ser mais forte, falar mais alto. Apesar da dor e da decepção na
chegada, eu acreditava no meu trabalho, e a responsabilidade que
tinha com as crianças e pais era alta. Senti naquele momento que
precisava fazer algo. Afinal, era a chance de trabalhar
terapeuticamente em um palco.
Reuni a equipe de terapeutas sob minha direção
para que discutíssemos o assunto. Concluímos que tínhamos que
tentar, em respeito à nossa dignidade e à dos nossos clientes. O
desafio era edificar a Unidade II de Terapia da Palavra. Com as
devidas autorizações, começamos a desbravar o local e a transformar
tijolo por tijolo de um solo abandonado - em espaço útil. Vejo neste
ponto os fios verdes tomarem muitas nuances diferentes e começarem a
se misturar.
Trago este relato porque o sinto o quanto foi
importante a contribuição da fonoaudiologia à sociedade tijucana.
Foi muito especial e uma das que destaco em minha vida. De um
terreno aparentemente inútil, nos fundos de uma escola, teve início
um trabalho social muito relevante, onde muitos personagens que não
aparecerem até aqui na história estão presentes. Heitor Thiers, meu
marido, que como arquiteto fez o projeto e acompanhou a obra.
Abigail que autorizou, toda a equipe de terapeutas sempre a buscar
alternativas para conseguirmos fundos. Mais: os pais das crianças em
tratamento, a levar doações para rifas; a fazer contato com lojistas
do bairro pedindo participação na verba para a compra de material de
construção.
Também foi muito significativo o trabalho
social que fizemos no antigo presídio Frei Caneca através de um
membro da equipe. Os presos que cumpriam pena branda e tinham bom
comportamento, eram levados em carro do presídio - com guarda a
acompanhá-los – para fazer trabalho de pedreiro, de mestre de
obras, de pintor, de eletricista – enfim, dos operários de que a
obra precisava. Eles conviviam conosco, fazíamos lanches para eles;
era uma forma nossa de agradecimento aliada ao estímulo que recebiam
pelo bom comportamento. Foi um trabalho solidário de todos, onde
ninguém se beneficiou a não ser as crianças com patologias da fala e
da escrita.
Começo a ver surgindo um fio azul bem claro, o
azul bebê, que se junta a uma espécie de fio, este cor de areia. A
Unidade II nasceu da terra, nos espaços da escola Barão de
Itacurussá e passou a atender centenas de crianças e adolescentes
com os mais diversos problemas. Possuía um setor de terapia
ocupacional, outro de psicologia, sem falar da orientação pedagógica
e do mais desejado: as cabines para a Terapia da Palavra. Sim, um
sonho!
Nessa época foi aberto o curso de logopedia no
Hospital São Francisco. Inscrevi-me e cursei. Deste curso
participavam inúmeras fonoaudiólogas conhecidas em nível nacional,
já atuantes no mercado. O estudo foi importante, muito embora o
curso não tenha sido validado. Na verdade, a Universidade era apenas
uma sub-sede da UFRJ cedendo espaço. Lembro-me bem do movimento de
saída do modelo apelidado por nós de 3x4 [isto é, só cabeça].
Queríamos que o corpo também fosse levado em consideração no que
tocasse às patologias da fala. Ele não se dissocia da linguagem,
possui uma comunicação própria, que é verdadeira e pode existir de
maneira isolada, sem o complemento verbal.
Do baú saem agora fios misturados nas cores
azul, verde e vermelho. O que há de vir surgindo?
Nesta onda de lembranças fui surpreendida uma
tarde com a chamada de Abigail à sua sala. Falou-me de um método
francês que usava alicates, trabalhava o corpo, e era ministrado
pela criadora, uma senhora de 72 anos, sempre assistida por sua
equipe. Na época não se sabia ao certo de que se tratava, mas uma
coisa era certa: o tal método trabalhava o corpo, e era bom!. Diante
da minha empolgação Abigail propôs-me representá-la em uma reunião
na casa de Beatriz Saboya, onde estariam também presentes as
representantes do Instituto Lúcia Bentes - outra instituição de
renome na logopedia. Fui, sem titubear em direção ao desconhecido,
na busca de novos saberes.
Aconteceu então algo interessante: eu e duas
representantes do Lúcia Bentes nos unimos, fizemos a ‘Coordenação
Ramain’ para trazer Simonne Ramain ao Brasil. Era o método que tanto
admirava chegando mais perto de mim! E de repente vejo as cores se
tornando muito fortes, com muitos fios em superposição. Eu não sabia
que minha vida estava sendo mudada naquele instante em que assumi
junto a Relindes de Oliveira e Márcia Moraes a coordenação dos
cursos Ramain no Brasil. E assim trouxe o Ramain ao grupo de Abigail
Caraciki, Marta Luvizaro, minha companheira de trabalho na
construção da Unidade II, Ângela Kallás, Helena Slipoi, do
Instituto Lúcia Bentes e mais vinte e cinco outras logopedistas.
Era um curso longo e das trinta inscritas só
quinze concluíram. Simonne sempre pedia minha presença nas salas,
mesmo nos grupos B e C, ainda sem atuar. Assistindo ao trabalho
perguntava a Simonne Ramain pelos fundamentos. Eu havia vivido
intensamente o processo, mas tinha sede de saber e faltava o
conhecimento formal. Em 1972, diante do meu interesse pela técnica
que levava seu nome, Simonne Ramain convidou-me a trabalhar na
formação, delegando a mim e a Maria Ângela Kallás a continuidade das
pesquisas do grupo Ramain no Brasil. Eu já empregava o método Ramain
na logopedia com grupo de crianças na Unidade II, lugar onde
realizei meu estágio prático.
Surge agora no horizonte de recordações um tom
de azul, aquele azul real das ararinhas de Mato Grosso, que venceram
o processo de extinção, e se renovaram. Em 1972 pedi exoneração do
serviço público para dedicar-me à pesquisa. Ninguém acreditava que
eu deixasse o que construí, mas a verdade é que não construí para
mim e sim para todos que continuaram sendo atendidos lá. Hoje não
sei o que funciona no prédio construído.
Fiz grandes amigas nessa época. A amizade
atravessou os tempos, como no caso de Marta Luvizaro, de Wilma de
Oliveira, Sonia Grubitz, Maria Helena Pontes Netto e Tânia Gonçalves
- entre outras..
No consultório obtive excelentes resultados em problemas
fonoaudiológicos como disfonia, gagueira, dislalia por imaturidade
neurológica, disortografia e afasia. Em atendimento domiciliar
também, sempre trabalhando com o Ramain, o primeiro método de
psicomotridade que entrou no Brasil.
Pesquisar não é simples como parece. Ao longo
de muitos anos de minha vida estava eu lá, nos bancos das
Universidades. Vai-se por um caminho, vê-se que ainda falta algo,
toma-se outro atalho sem perder as origens, tenta-se ver se a
prática confere... e nem sempre isto acontece. Isto significa
retornar com humildade a uma nova partida. Nesse estudo estatístico
de dados, estudando e praticando, demorei cerca de 20 anos, formando
mais de mil profissionais, um grande número de fonoaudiólogos. Surge
então o verde-bandeira, o nosso verde esperança, aquele que tremula
com nossa bandeira nacional!
Assim o Ramain-Thiers foi-se configurando uma
metodologia brasileira em psicomotricidade. Sei que até hoje formo
inúmeros fonoaudiólogos que usam nosso método em seus consultórios.
Tenho consciência do meu legado ao mundo científico em várias
especialidades, como fonoaudiologia, psicomotricidade, psicologia e
Educação. O saber adquirido nos cursos de fonoaudiologia, pedagogia,
psicologia e formação psicanalítica permitiram-me a leitura do
movimento humano, uma espécie de “Gestalt” dos problemas
fonoaudiológicos e psicomotores com origem emocional.
Reafirmo que é limitativo enquadrar a
fonoaudiologia apenas na audiologia e na motricidade oral. Não se
pode deixar de lado a psicomotricidade como forma de linguagem
pré-verbal. Possuo três livros publicados e a criação de uma
Metodologia de Psicomotricidade. Quatro Orientadores terapêuticos
Thiers publicados também, e com registro na Biblioteca Nacional: um
para crianças, de três a sete anos, outro na faixa de cinco a onze
anos; um terceiro para adolescentes e outro para adultos. Cada um
atendendo às necessidades da faixa a que se destina.
Considero-me uma
profissional bem sucedida, e ainda hoje trabalho voz e afasia pelo
método Ramain-Thiers. Fiz o mestrado em Filosofia e Ética pela
Universidade Gama Filho, com pesquisa subvencionada pela CAPES.
Agradeço a Abigail Caraciki pela oportunidade de expor aos
fonoaudiólogos de nosso país a minha trajetória profissional.
Voltei às origens. Hoje, através de
Ramain-Thiers, retomo as questões sociais, trabalhando com
comunidades desfavorecidas em 25 cidades brasileiras e também no Rio
de Janeiro, em parceria com a ONG Sal da Terra. Realizamos um
trabalho de estágio supervisionado, com uma população bastante
desfavorecida. Ainda em alguns estados brasileiros Ramain-Thiers é
adotado em penitenciárias nas não exatamente com os presos, e sim
com os agentes.
Meu baú de recordações ainda tem muitos fios
soltos, mas estão em outras áreas de vida. Pouco a pouco vou
fechando a parte que se refere à fonoaudiologia, com a certeza de
que o passado constrói o futuro. E que a vida é boa - se vivida com
Amor ao que se faz.
Solange Thiers é Psicóloga, Psicanalista, MS em
Filosofia e Ética. Psicomotricista e Sociopsicomotricista
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COLEÇÃO
RAMAIN-THIERS
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Volume I
Ramain-Thiers: a vida, os contornos
A re-significação para o re (nascer)
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Volume II
A potencialidade de cada um:
Do complexo de édipo a terapia de casais
------------------------------------------------Volume
III
A dimensão afetiva do corpo:
Uma leitura em Ramain-Thiers
------------------------------------------------Volume
IV
As interfaces de Ramain-Thiers
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