MÁRCIO E O
RAMAIN-THIERS,
UM ENCONTRO LEGAL!
Kathleen Cardoso |
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Conheci-o em março
de 2003, eu acabava de entrar para o grupo de colaboradores do Infa
– Instituto da Família - como psicóloga clínica. Ele morava numa
instituição que recebia crianças órfãs, abandonadas ou retiradas dos
pais por negligência e/ou maus tratos. Esta instituição, mantida por
uma ong estrangeira, consistia de diversas casas e, em cada uma
delas, havia uma “mãe social” que tomava conta de oito a dez
crianças, com idades variando entre um a catorze anos.
Ele chegou para o
serviço de psicologia trazido por sua “mãe social”, que chamaremos
de Leila, com queixa de agressividade exacerbada, principalmente
para com seus “irmãos sociais”. Leila temia que ele levasse esta
agressividade para fora de casa, para o colégio ou outros lugares
que freqüentasse.
Márcio (nome
fictício), na época estava com doze anos, e não escondia seu
desinteresse pela terapia.
Na anamnese, feita
com Leila, pude colher fragmentos da sua infância. Márcio era o
segundo de quatro filhos. Seus pais biológicos eram moradores de rua
e até os quatro anos, todos moravam debaixo de uma marquise de um
prédio comercial no centro do Rio de Janeiro. Não se sabe o que
aconteceu com seus pais, que sumiram deixando as quatro crianças
abandonadas. Uma mulher, que era funcionária de algum escritório do
referido prédio, percebendo que eles estavam sós, acionou o conselho
tutelar que os colocou nesta instituição onde Márcio está até hoje.
Seus dois irmãos caçulas foram adotados por uma família estrangeira,
e deles não se têm mais notícias. Seu irmão mais velho mora na mesma
casa que Márcio.
A mulher que os
encaminhou para o conselho tutelar é “madrinha social” de Márcio,
paga uma escola particular para ele, dá roupas e o leva,
quinzenalmente, juntamente com seu irmão, para passar o final de
semana com ela e sua família (marido e dois filhos).
Este primeiro ano
de terapia foi uma batalha. Márcio relutava a entrar no processo
terapêutico, pouco falava, respondia monossilabicamente às minhas
perguntas, não dando chance para começarmos uma conversa. Não trazia
nenhum conteúdo para que pudéssemos trabalhar e praticamente
usávamos o nosso tempo jogando. Sabia que o trabalho com
adolescentes, por suas características próprias, era muito difícil,
mas Márcio superava em muito esta dificuldade. Ele não queria entrar
num processo de transferência comigo, um mecanismo de defesa que o
protegia de outro “abandono”.
Em julho de 2003
iniciei o meu curso de especialização em Sociopsicomotricidade
Ramain-Thiers.
Em dezembro de
2003 chamei Leila para consulta, com a concordância de Marcio, que
não quis participar, e falei com ela sobre o não envolvimento dele
no processo terapêutico, sobre a sua recusa em se tratar. Leila,
porém, manteve seu desejo, independente do desejo de Marcio, de que
prosseguisse a terapia no ano seguinte.
Começamos o ano de
2004 com as mesmas dificuldades. No entanto, no decorrer do ano,
Marcio começou a baixar a guarda e iniciou-se uma tímida
transferência.
Durante o ano de
2004, no curso de especialização Ramain-Thiers começamos a ter
contato com os orientadores terapêuticos, e conforme íamos
estudando, percebia que com o método Ramain-Thiers eu poderia
trabalhar melhor com os meus adolescentes, principalmente com
Márcio, uma vez que o material estimulava-os a falarem sobre suas
emoções.
Em julho de 2004 pedi a Márcio que
pensasse sobre o seu desejo de continuar ou não com a terapia,
disse-lhe que se ele decidisse por não continuar, daria-lhe alta,
anulando, portanto, o desejo de sua “mãe social”. Dei-lhe uma semana
para pensar e, para a minha alegria, ele decidiu continuar, entrando
de vez, de forma “adolescente”, na terapia.
Em fevereiro de 2005, com a permissão
da minha supervisora de estágio do curso de especialização e com a
permissão de Márcio e de Leila, iniciei um pequeno grupo de
Sociopsicomotricidade Ramain-Thiers, formado por Marcio e Gabriela,
outra adolescente que estava atendendo. Para esta tarefa utilizei o
orientador terapêutico AD.
Gabriela, a outra adolescente, estava
com quinze anos, era filha única e bastante infantilizada pelos
pais, vivendo uma simbiose com a mãe. Começamos terapia individual
no final de 2004. Ao contrário de Márcio, Gabriela falava bastante.
Intui que juntá-los seria muito bom para ambos.
O método Ramain-Thiers, por apresentar
um gênero de proposta que possibilita a terapia de grupo, assim como
o trabalho corporal, propicia o surgimento de um instrumento eficaz
para a emergência do emocional e dos níveis mais profundos da
personalidade em qualquer ambiente terapêutico. É um método ideal
para adolescentes que, de uma maneira geral, são avessos a falar de
suas emoções.
Ramain-Thiers objetiva o
desenvolvimento da Atenção Interiorizada, do Processo Criativo, a
Busca da Autonomia e a Mudança de Atitude.
A Atenção Interiorizada possibilita a
percepção eficaz da realidade, levando o sujeito a lidar melhor com
ela, e estimulando-o também a incrementar a sua atenção no sentido
de encontrar novas maneiras de estar no mundo, exatamente o que eu,
como terapeuta, esperava destes dois adolescentes.
O desenvolvimento do Processo Criativo
incentiva a procura, por parte do indivíduo, de soluções atualizadas
para resoluções de seus problemas, através de propostas novas ou
conhecidas, porém com exigências diversas.
A Busca de Autonomia em Ramain-Thiers
refere-se ao respeito aos limites do próprio corpo e a possibilidade
de, quando em grupo, o indivíduo procurar suas respostas e se
disponibilizar para a mudança de situações.
O aspecto cognitivo e a área
intelectual estão ligados, da mesma forma como o aspecto emocional
está ligado à emoção e sentimentos, possibilitando a aceitação dos
erros, acertos, frustrações e reparações, com o vislumbre de novas
possibilidades e vivência de afetividade.
O trabalho corporal em Ramain-Thiers é
voltado para o processo de evolução do corpo e da conscientização da
ação. Ele procura estimular as características energéticas do
indivíduo e sua evolução.
Começamos bem os trabalhos com
Ramain-Thiers. No princípio houve uma certa resistência,
principalmente de Márcio, relacionada aos trabalhos corporais, mas
conforme íamos prosseguindo, ele foi se acostumando e gostando
destes momentos.
As propostas diferenciadas de
psicomotricidade foram feitas, a principio, com bastante
dificuldade. O respeito às regras eram transgredidos, surgiam
borrachas de todos os lugares, a troca de cor de lápis era
esquecida. Quando eles se acostumaram com o material e perceberam
que seus erros podiam ser reparados sem a necessidade de burlar as
normas pré-estabelecidas, passaram a fazer as tarefas com ânimo
maior.
Durante este ano conseguiram chegar,
com bastante dificuldade, à fase genital, não se mantendo, tendo que
regressar para a fálica.
Para Márcio, a entrada do
Ramain-Thiers em sua terapia foi crucial. Depois de quase dez meses,
no final de 2005, percebíamos que ele já conseguia lidar com a sua
agressividade, falava da sua infância na instituição, da adoção de
seus irmãos, de seus medos e inseguranças. Começou a participar das
atividades do colégio, a falar de paqueras, demonstrando uma maior
segurança e um aumento significativo da sua auto-estima.
Ramain-Thiers trabalha a regressão,
levando o indivíduo a atualizar seus afetos, liberando a repressão e
se amando, passando a aceitar melhor seus defeitos e qualidades.
Quando lhe dei alta, ele continuava
morando com sua “mãe social”, ajudava uma floriculturista a enfeitar
igrejas e salões de festas nos finais de semana, preparava-se para
tentar vaga numa escola técnica de educação física e,
principalmente, era um adolescente feliz ! |