Literatura
O peixe grande de contar histórias
Por:
Celso
Gutfreind
Psiquiatra. Psicanalista. Pós-Dr.
Psiquiatria da infância e da adolescência.
Escritor.
Criança andando de carrossel. O tablado com
os seus animais dóceis gira rente ao chão.
Alcançou a altura em que melhor se sonha
voar.
Walter Benjamim
Um dos piores traços do nosso
tempo é a ânsia pela novidade. Nada pode
amadurecer; aprofundar-se, nem mesmo a
tristeza. E dê-lhe remédios para abafar e
enriquecer os mais ricos. E apressados.
Por isso, o filme da hora chama-se
O peixe grande,um Tim Burton de 2003:
as novidades que aguardem. O tema abarca o
próprio narrar e conta um relacionamento pai
e filho. O pai, Eduard Bloom, é um contador
de histórias, mas também um mentiroso,
obcecado em contar. O filho, William,
cresceu na sombra deste imaginário, mas
agora está cansado de ouvir as mesmas
intrigas, cheias de exageros e
inverossimilhanças. Pai e filho estão
separados; o primeiro vive nos EUA com a
esposa, mãe de William. O segundo mora na
França com uma fotógrafa que está no final
da gravidez. William, em breve será pai
também. Seu pai, apesar dos excessos, já
sabe contar. Ele, por causa dos excessos,
ainda não. Entre os dois, um oceano de água
e de silêncio. Até que uma carta – em 2003,
era assim – os reaproxima. Eduard está com
câncer terminal e começa uma quimioterapia
que não lhe injeta muita esperança. A mãe
deseja a volta do filho, e a sombra da morte
reaproxima estas vidas.
A partir de então, contam-se histórias. O
pai repete relatos antigos que o filho
crescido não suporta mais ouvir. A
transmissão entre gerações está truncada.
Eduard tem um derrame e deve morrer a
qualquer momento. O filho o acompanha no
leito de morte, dá-lhe a mão, deseja o
reencontro antes da despedida; afinal, a
história agora é outra, e ele foi banhado de
imaginação o suficiente para não renunciar a
um pai que realmente a estimulou. Eduard
acorda para os seus últimos instantes. Filme
e pai estão no fim, agonizando. Mas William
está no começo de ser pai. Enquanto isso,
Eduard lhe pede que conte uma História, ou o
final da sua, a última de pai, a primeira de
filho. William hesita, entre a busca da
novidade e a luta para não se entristecer.
Mas, olhando no fundo do olhar agonizante de
um pai contador de histórias, um filho
compreende o sentido de contá-las. Sim, era
isto, conta-se para sentir a vida e aplacar
a morte.
William agora já pode ser pai de
um filho que há de continuar contando e
vivendo quando ele morrer. Afinal, deve-se
contar para que a vida continue.
Contar histórias ainda é um dos
melhores traços de todos os tempos.
REFERÊNCIAS
GUTFRIEND, Celso. A dança das palavras:
poesia e narrativa para pais e
professores. PortoAlegre, RS: Artes e
Ofícios, 2012. P. 66.
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Artigo
Vínculo e Interpretação
Por: Enrique Pichon-Rivière
Psiquiatra.
Psicanalista.
A psicologia introspectiva leva em
conta, principalmente, o emergente interno
do observador, que expressa uma relação ou
vínculo particular com um objeto interno,
que pode estar mais ou menos estimulado pela
situação externa no campo terapêutico, mas
sem levá-la especialmente em conta. Neste
caso, a interpretação é construída
basicamente a partir da situação interna do
observador. Enquanto prestarmos a atenção
especial ao vínculointerno estaremos no
campo da psicologia introspectiva. Neste
tipo de análise, a interpretação é um
emergente principalmente interno, uma
interpretação de análise aplicadaou, como
também se denomina, uma interpretação
selvagem. Isto sucede porque só leva em
conta o emergente interno, desprovido ou
quase desprovido dos elementos externos,
quer dizer, das valorizações qualitativas e
quantitativas da realidade. Quanto maior for
a quantidade de indícios obtidos no campo
operacional, com uma interpretação que foi
construída com elementos obtidos no campo de
trabalho, que passou através da mente do
analista e que é enunciada em termos de uma
hipótese sobre aquilo que sucede nesse
momento no campo de trabalho. Do outro lado
temos a psicologia behaviorista, que leva em
conta, exclusivamente, os aspectos
exteriores da conduta no campo de trabalho.
Podemos dizer que todas as psicologias, com
exceção da psicanalítica, permanecem no
campo da observação e da compreensão.
Nenhuma delas é intencionalmente operacional,
quer dizer, não devolve aquilo que foi
observado mediante uma interpretação, a qual
cria uma situação de espiral dialética. A
análise fenomenológica é também uma análise
na qualo observador compreende o suceder do
outro, mas não devolve ao objeto de sua
investigação a compreensão vivencial que
obteve dele. Se a devolve, cria-se uma
situação psicoterápica, quer dizer, uma
situação operacional. Se levarmos em conta
apenas o aspecto vivencial imediato,
ficaremos no contexto da psicoterapia
existencial ou fenomenológica. Se apontarmos
os conteúdos latentes dessa situação,
entraremos na psicologia psicanalítica. A
operação psicanalítica consta de um momento
fenomenológico, e quanto melhor for
realizado esse momento, melhor se construirá
a interpretação. Agora aquilo que se devolve
ao paciente como interpretação é uma
hipótese do que existe atrás da aparência
fenomênica, transmitida em termos de
conteúdos latentes.Esta é a característica
da psicologia analítica.
A psicologia criptográfica é a
captação daquilo que existe de secreto, do
que está oculto por trás da aparência
fenomênica. Cripto quer dizer secreto. A
análise fenomenológica ou psicoterapia
existencial chega a um nível de compreensão
do suceder do existente neste momento, em
termos do que está acontecendo no aqui-agora
comigo. Mas em termos de compreensão não
passa de uma explicação. A interpretação
fenomenológica ou existencial refere-se ao
sucede de imediato, quer dizer ao conteúdo
manifesto daquilo que o sujeito está
querendo dizer.
Para que uma psicoterapia
analítica seja bem realizada e preencha os
requisitos do método científico, deve ser
precedida de um momento fenomenológico,ou
seja, do momento em que se tomao inexistente:
este é um momento no qual fazemos uma
redução fenomenológica, isolamo-lo do resto
do material existencial e construímos uma
hipótese do suceder inconsciente neste
momento.
Em cada momento e situação espiral
podemos falar de um momento fenomenológico
existencial. O método principal que
utilizamos é a observação. A observação no
campo operacional é o método universal da
psicologia, é o momento empírico,
existencial e dinâmico. O aqui-agora comigo
é na realidade um aqui-agora comigo em
aparência, que representa, na realidade um
aqui-agora comigo na coisa subjacente. Em
psicanálise, o conteúdo manifesto é um
conteúdo referencial, portanto podemos falar
de uma fenomenologia ou de uma análise
existencial dos referentes (assim se
denomina em filosofia). Esse conteúdoé o
conteúdo latente dos referentes constituídos
pela fantasia inconsciente desse momento.
O método psicanalítico utiliza a
observação racional e a livre associação, o
deixar-se ir da fantasia, ambas incluídas em
uma atividade particular que se chama
imaginação criadora ou recriadora. A
categoria desse processo mental aqui, no
campo de trabalho, tem as características de
uma síntese entre o racional e o irracional,
tal como se concebe em psicologia. Durante o
trabalho prático utiliza-se uma atividade
que, partindo de referentes determinados,
constrói em cada momento, com esse processo
da imaginação criadora, uma hipótese de
suceder latente desse momento.
O existente tem uma estrutura, uma
forma, uma configuração, uma Gestalt,
na realidadeuma Gestaltung, quer
dizer, um contínuo processo de se formar uma
Gestaltou estrutura. Não só o
existente é uma Gestalt: também o é o
emergente que logo resulta da interpretação
adequada. O emergente que se configura no
aqui-agora constitui aquilo que, em termos
de Gestalt, podemos chamar figura.
Fundo e figura são as duas divisões que se
encontram em cada estrutura. Aquilo que
parece em primeiro plano é para nós um
processo que tem uma determinação interna.
Quando se colocam juntos, em um campo de
trabalho, paciente e analista, o que resulta
é uma Gestalt dos dois, que é o
emergente de ambos porque aquilo que aparece
nesse momento no paciente está condicionado
também pela atitude do analista, pelo seu
modo de ser, pelo quarto onde trabalha, por
sua interpretaçãoanterior, etc. Quer dizer
que dentro da concepção da Gestaltincluímos
a concepção do emergente dinâmico.
Continuamente se organizam estruturas, os
emergentes, que são os existentes de cada
momento, aos quais enfrentamos como uma nova
interpretação. Quer dizer que essa situação
de dois que estão trabalhando
permanentemente para modificar uma
determinada estrutura configura um processo
vivo e permanente em ação de espiral
dialética.
Ao sair da sessão, o analisando
inicia um movimento introspectivo, no
sentido de que internaliza o analista e
começa um diálogo interno com ele.
Estabelece-se um vínculo interno com o
analista que dura muito mais tempo do que a
hora escrita da análise clínica. Aí se
configura a situação de autoanálise. Quer
dizer, heteroanálise e autoanálise são dois
processos que se alternam permanentemente e
que podem coexistir mesmo na sessão
analítica.
Em pessoas com profundas divisões
da personalidade, como acontece nas
personalidades histéricas, nas quais existe
uma personalidade de fundo esquizóide, as
divisões podem ser trabalhadas em termos de
representação de diversos papéis. Aí pode
existir a dupla situação em que uma parte da
pessoaesteja sendo analisada no vetor
heteroanálise e uma outra parte esteja
controlando a situação do analista dentro de
si mesma numa situação de autoanálise. Os
momentos de silêncio são momentos de
autoanálise. Isto é importante na prática
porque, se sabemos que todo silêncio é um
momento de autoanálise, sabemos que a
estrutura desse campo operacional é
constituída pelo eu do paciente e por um
objeto internalizado dentro dele. Surge,
então, um diálogo que às vezes chega a se
fazer explícito, configurando-se quadros
delirantes de tipo paranóide. O paciente
pode se encontrar frente ao analista e estar
murmurando algo, uma parte dele conversando
com o objeto interno analista, ao mesmo
tempo que outra parte está estabelecendo uma
comunicação ou tentando estabelecer uma
comunicação com o analista. Outra situação
pode ser a da autoanálise, que às vezes
chega a configurar uma situação delirante.
Por exemplo, depois de haver saído de uma
sessão o paciente internaliza o analista ou
parte dele e, em seguida, externaliza-o
subitamente em uma circunstância particular,
criando uma situação delirante. O paciente
começa a atribuir aos outros, ao próximo em
geral, as intencionalidades do objeto
interno analista introjetado e, em seguida,
reprojetado para fora. Não só pode reagir
com um ataque brusco ou uma entrega brusca,
seja de um objeto mau ou de um bom, mas
também, quando o vínculo e o diálogo interno
que estabeleceu dentro de si adquiriu uma
grande intensidade, o paciente, uma vez que
os projetou para fora de si, começa a ouvir
vozes. Essas vozes que ouve fora são o
restabelecimento do diálogo externo
anterior, que passou por um momento de
diálogo interno e que, em seguida, é
colocado novamente para fora. O paciente
sente nesse momento que lhe adivinham o
pensamento, que lhe dirigem o pensamento,
sente o eco do seu pensamento e experimento
o sentimento de influência de que o dirigem
e o manejam. O delírio de influência é o
quadro que se produz mais tipicamente. Um
vínculo interno muito dialogado pode chegar
até à alucinação. Sente às vezes que aquilo
que ele pensa ou suas palavras já estão
desprovidas de certa “mesmidade”, ele já não
é ele. Sente algo estranho e a partir do
momento em que o sente, estranha essa coisa
interna, o vínculo é experimentado como uma
pseudoalucinação. Se essa situação é muito
angustiante coloca-a definitivamente fora e,
a partir daí, no cenário de fora, vive a
situação psicótica.
A mesma coisa acontece, por
exemplo, se a perdaou frustração sentida na
sessão de análise for muito intensa e a
hostilidade despertada no paciente for
marcante; nesse caso, pode sair da sessão
com uma depressão por ter a vivência interna
de haver destruído e matado o objeto interno
analista com o qual mantinha o vínculo
interno. O trabalho central de sua
autoanálise se encaminha, então, para a
recriação desse objeto com uma série de
técnicas, ou pode centrar-se na negação da
situação de luto ou de perda até seu
reingresso na próxima sessão analítica. Às
vezes, ao reencontrar-se com o analista,
experimenta uma situação de pânico ou
próxima ao pânico, ao encontrá-lo nas mesmas
condições em que o havia deixado antes de
sair da sessão anterior: o paciente teme ter
a vivência de um fantasma, de um reaparecido,
experimenta a vivência do sinistro. Pode-se
produzir, aqui, uma situação de choque e uma
reação particularque, às vezes, traz como
consequência uma despersonalização ou um
estado confusional.
Freud utilizou como esquema
referencial um esquema neuropsicológico. O
fato de carecer de uma formação psiquiátrica
adequada determinou seguramente que elegesse
a histeria como quadro psicopatológico
central de suas investigações. Pelo
contrário, Breuler, com uma formação
psiquiátrica muito forte, toma como centro
de suas investigações a esquizofrenia. A
mesma coisa ocorre com Jung, que tem uma boa
formação psiquiátrica e uma boa capacidade
de captação do conteúdo inconsciente do
delírio. Mas Jung dirige-se diretamente aos
arquétipos e constrói, fora do campo da
observação (embora utilizando o material que
lhe foi proporcionando por alguns
esquizofrênicos), um esquema, por assim
dizer, não psiquiátrico, mas sim
antropológico, religioso ou mitológico,
razão pela qual vai se separando
progressivamente de Freud, até construir uma
teoria sobre os arquétipos do inconsciente
coletivo. Podemos dizer que retirou
doesquizofrênico uma série de informações
que, depois, utilizou nas análises aplicadas,
e que dessa dimensão começa a compreender os
fenômenos da mitologia, da arte, da religião,
etc. Jung, como psiquiatra, tinha sua
principal fonte de informação nos pacientes
de seu consultório particular. Adler, por
outro lado, é a pessoa que mais trabalha com
um esquema rígido. Para ele o emergente não
tem importância, já que, seja qual for,
relaciona-o com um dos vetores básicos de
seu esquema referencial. Em geral não estuda
a relação transferencial, e menos ainda a
contratransferencial. A interpretação
adleriana está dirigida principalmente para
o futuro.
O processo de aprendizagem deve
ser compreendido como um sistema de
fechamento e abertura que funciona
dialeticamente. Fecha-se em determinado
momento, abrindo-se em seguida, para voltar
a se fechar posteriormente. Se o pensamento
ficar fechado por muito tempo em uma
determinada estrutura, esterotipa-se e se
torna formal.
A psicanálise precisa livrar-se da
posição em círculo fechado em que se
encontra atualmente, já que, há algum tempo,
vem se repetindo. Nesse momento, está
carregada de coisas, que se torna asfixiante,
porque não passa de um acúmulo de dados aos
quais falta uma concepção do homem e uma
concepção do universo em relação com a
análise. É impossível aceitarque os sistemas
filosóficos ou as cosmovisões que se
constroem na filosofia atual não incluam em
seus estudos a dimensão do inconsciente.
Um dos vetores de interpretação é
a análise da situação triangular. É um
cenário que está dentro e que, em seguida,
começa a ser colocado para fora, onde
existem três personagens principais. A
situação analítica é uma situação a dois,
mas o objetivo básico é descobrir o terceiro.
Ver onde está situado e quais são suas
funções. Devemos tentar entender cada coisa
que um paciente faz comigo para descobrir em
que medida está tentando, comigo,
defender-se do outro, escapar do outro, ou
tentando me seduzir para ficar contra o
outro. A análise, desse modo, começa a se
dramatizar, centralizando-se na situação
triangular, quer dizer, no complexo de Édipo.
A análise da situação transferencial deve
incluir o terceiro, geralmente excluído da
interpretação. Ou seja, no fundo é a busca
sistemática do terceiro e a investigação da
maneira pela qual está atuando no aqui-agora
comigo na situação analítica. Devemos ter
sempre presente que aquilo que se pensa, que
se deseja ou que se odeia,etc, nunca é uma
relação de dois, mas sempre de três. De modo
que temos que rever todo o conteúdo da
patologia mental em termos da situação três.
REFERÊNCIAS
PICHON-RIVIÈRE, Enrique.
Teoria do Vínculo. Seleção. e
OrganizaçãoFernando Taragano. TraduçãoEliane
Toscano Zamikhouwsky. Revisão Técnica Marco
Aurélio Fernandez Veloso. Revisão Monica
Sthael. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
1995. P.103/109.
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