Artigo
Brincar e Descobrir
Por: Júlio de Mello Filho
Júlio de Melo Filho:
Médico.
Psiquiatra.Psicanalista.
O uso dos objetos transicionais refere-se,
na vida da criança ao aprender a brincar, a
que Winnicott emprestou uma especial atenção,
como nenhum outro analista jamais deu. Até
então ele mostra que o brincar era utilizado,
em psicanálise, desde Melanie Klein, apenas
como forma de acesso ao mundo interior da
criança, como preparo para a terapia e não
como terapia em si. Winnicott nos propõe
inverter os fatos. Devemos começar sempre
pelo brincar, “pois o brincar é universal”.
“É no brincar e somente no brincar que o
indivíduo pode ser criativo. E é sendo
criativo que encontra seu self.” E nos diz
mesmo que “a psicanálise foi desenvolvida
como forma altamente especializada de
brincar”. Da erotização; ao contrário
O que interessa a Winnicott é o brincar
verdadeiramente, que se basta a si mesmo e
que prescinde até da erotização; ao
contrário, quando a excitação física se
torna muito evidente, a brincadeira acaba.
Do brincar com a mãe (usar) através da
alucinação, a criança passa pelo estágio dos
fenômenos transicionais e chega a brincar
realmente com alguém, ao brincar
compartilhado, quando há superposição de
duas áreas de jogo. Para Winnicott, a
psicoterapia se efetua exatamente na
superposição de duas áreas do brincar: a do
paciente e a do terapeuta. “Quando o
paciente não consegue brincar, é função do
terapeuta trazê-lo para este estado, para
que os dois possam brincar juntos” (...)
“Interpretar quando o paciente não tem
capacidade de brincar não é útil e causa
confusão.” Assim, para Winnicott, o brincar
é por si só terapêutico: “é umapsicoterapia
de aplicação imediata e universal”. É, em si,
excitante, não porque envolva instintos,
porém pela magia que contém e pela
intensidade da relação afetiva com quem
brinca, incluindo o ódio, que pode apenas
ficar expresso na área do simbolismo, na
dramatização implícita no jogo. O brincar se
dá no espaço potencial e “é sempre uma
experiência criativa, na continuidade espaço-tempo,
uma forma básica de viver”.
Arnold Modell, discorrendo sobre a
significação do brincar para Winnicott,
escreve: “A atenção é dada ao problema das
realidades compartilhadas intersubjetivas,
para as quais ele usa o conceito de brincar.
Note-se o uso do verbo mais que o
substantivo (...) é de considerável
interesse que a linguagem, como é amiúde o
caso, reconheça a verdade psicológica. A
etimologia da palavrailusãopode ser
buscada no verbo latino ludere (brincar).
Brincar foi essencial para o caráter de
Winnicott. Esta brincadeira de Winnicott
está fora de consideração de sério / não é
sério. Brincar lida com matérias essenciais;
Winnicott acreditava que através do brincar
se poderia aprender a experimentar e
controlar a realidade dolorosa; a
essência do brincar e a liberdade (grifo
meu). A noção de jogo é, como Winnicott a
usa, muito equivalente à criatividade em si
mesma.”
No início do meu trabalho, influenciado por
teorias que enfatizam sobremodo a
agressividade e os processos defensivos do
paciente, via em um cliente que ousava
brincar comigo basicamente a defesa, a
ironia, o contato negativo, expressões de
uma atitude maníaca. À medida que foise
modificando meu modo de encarrar o paciente,
tornei-me capaz de fazer esta distinção
entre o aparente brincar, que no fundo
encara uma defesa maníaca, e o verdadeiro
brincar, expressão da liberdade e do viver
criativo.
Lembro-me em particular de um paciente que
chamei de Manoel, que não sabia brincar. Na
sua infância e adolescência, quando ele
tentava participar dos jogos e brincadeiras
com os irmãos ou vizinhos, sempre se sentia
deixado de lado, ou era então ironizado, o
goleiro frangueiro, o “Pelé” da turma. Por
este motivodeixou de jogar futebol e passou
a evitar reuniões sociais; um dos poucos
prazeres da sua vida era frequentar o grupo
de amigos, indivíduos solitários com os
quais conseguia conversar por horas seguidas,
geralmente sobre os mesmos assuntos. Para
estes, Manoeltornou-se um contador de
histórias, proezas e fantasias. Na sua
análise, Manoel também me contava muitas
histórias, por vezes as mesmas, durante um
longo período. Se eu tentava abordá-lo,
analisar a sua necessidade de fantasiar, ele
se sentia humilhado, chamado de mentiroso,
um “fora da realidade”. Aprendi então a ouví-lo,
toda e qualquer história, fosse realidade ou
fantasia, não importava a distinção, não era
o essencial, pelo menos naquele momento de
sua análise. Ele necessitava que eu fosse o
que o ouvia, um modelo diferente da sua mãe,
que não tinha tempo e nem paciência para
escutá-lo. Deste modo, tornava-me o objeto
transicional que Manoel necessitava naquele
momento, e criava com ele uma espécie de
jogo de contar e de ouvir, um brincar
compartilhado, no qual, como nos jogos de
criança, existia a regra de fazer de conta
que tudo era verdade, era proibido denunciar
ilusões e devaneios. Eu era, ao mesmo tempo,
o pai real que praticamente nunca brincou
com Manoel.
O tema do analistacomo objeto transicionalé
outro importante legado que Winnicott nos
deixou. Poder ser um objeto que facilite a
fusão ou separação. Penso que aqui como em
outras oportunidades, Winnicott inverte a
receita clássica “não entrar no jogo do
paciente”, para “entremos no jogo do
paciente, com o nosso jogo, de um modo
transicional” (aspas minhas). Assim,
precisei de fato entrar no jogo do Manuel,
no jogo da sua enfermidade, no controle, na
rigidez, na obsessividade, na técnica do
relato sem sentimentos, para ajudá-lo a
construir uma forma melhor de jogar o jogo
da vida.
Durante muito tempo Manoel
mostrou-se formal diante de mim, quando não
estava francamente amedrontado ou hostil.
Entrementes, iniciou um relacionamento
paralelo com o porteiro do edifício e com o
secretário do consultório, pessoas humildes,
com quem conversava sobre política, futebol,
e mesmo fazia eventuais brincadeiras. Sua
aproximação comigo exigia o emprego de
várias técnicas dissociativas, como foi
toda a sua vida, e eu sabia que não
toleraria qualquer menção minha ao fato.
Representou um grande passo em sua análise o
dia em que eu pude, discretamente, comentar:
“Com o Mário (secretário) você pode falar
política, dar opiniões, bater um papo legal,
ele é legal, não é durão como o Júlio”.
Depois, muito paulatinamente, discutir as
várias significações do relacionamento, sem
ele se sentir invadido, controlado, ou
recebendo pito.
Outro tipo de jogo que
Manueldesenvolveu comigo se relacionava com
seu interesse em partidas de futebol ou
corridas de cavalo. Assim, ele me descrevia
partidas várias de futebol e era necessário
que eu também participasse como ouvinte e
mesmo eventual torcedor, para que a
interação pudesse funcionar. E, desse modo,
em determinado momento, quando ele comentava
sobre um “perna-de-pau”, por vezes fazia um
silêncio e dizia: “Este é o Manoel, não é?”
Durante muito tempo era absolutamente
necessário que eu me abstivesse desse tipo
de intervenção; só ele a poderia fazer.
Na parte final do período
em que esteve em análise comigo, Manoel já
se atrevia a realizar brincadeiras, fazer
chistes ou comentar coisas que soube da
minha pessoa. Também começou a frequentar
uma casa de campo que possuía, como laser.
Todavia, então, apesar de ser uma pessoa com
aspectos de riqueza e sensibilidade, Manoel
ainda não tinha conseguido iniciar uma vida
de todo cultural.
O uso do humor e do lúdico
pode facilitar nosso acesso a certos
pacientes. Para alguns, que tendem a nos ver
excessivamente severos, para outros que só
conseguem encarar suas realidades
existenciais como enormemente dramáticas,
uma interpretação feita de modo descontraído,
com um toque de humor, é, por si só,
terapêutica. Com alguns pacientes tenho o
hábito de dar “deveres de casa”. Por exemplo:
pensar, refletir sobre um tema difícil ou
novo, que ficou apenas parcialmente
elaborado durante a sessão analítica.
Ou para o caso de
pacientes em terapia de grupo: sugerir que
aquele que tem uma dificuldade com o tema
trazido numa sessão, ou outro que permaneceu
em silêncio sobre esse tema, falem a este
respeito na sessão seguinte. São formas que
tenho de, brincando com um paciente,
auxiliar na longa tarefa elaborativa da sua
análise. O clima transicional criado entre
mim e o paciente permite que ele receba a
tarefa mais como brincar-sugerir do que como
um deve-cumprir, possibilitando um clima
mais analítico (elaborativo) do que
psicoterapêutico (persuasivo). Deste modo,
ao meu ver, o brincar, como outros recursos
técnicos trazidos por Winnicott, amplia uma
área da psicanálise, fazendo transitar por
ela uma série de recursos de maior uso em
ouras modalidades de psicoterapia. Aliás, a
área de transicionalidade entre psicoterapia
e psicanálise sempre foi um dos campos
preferidos por Winnicott.
O analista precisa
representar a realidade externa objetiva,
mas ao mesmo tempo, ser um objeto subjetivo,
a serviço da realidade interna do paciente –
eis um dos muitos paradoxos apontados por
Winnicott em relação ao nosso trabalho.
Assim sendo, é fundamental que nos deixemos
usar pelos nossos pacientes, sem receio de
perder nossa identidade profissional, grande
temos que nos avassala. Principalmente se
aderirmos a posturas muito rígidas, a
ideologia psicanalíticas tão distantes, às
vezes opostas, das reais necessidades do
paciente. Necessidades de um ego em
desenvolvimento, como dizia Winnicott, para
distingui-las das reais necessidades do id,
apenasessas enfatizadas até então, em
psicanálise.
No seu afã de usar a mãe
ou objeto transicional das mais variadas
formas e numa multiplicidade de simbolismos,
a criança pode se tornar cruel com o seu
objeto, pela dificuldade de reconhecersua
existência própria, peculiaridades e
limitações. Principalmente se está na fase
descrita por Winnicott como de
pré-preocupação com o objeto, isto é, se
ainda não atingiu em seu desenvolvimento a
posição depressiva. Do mesmo modo, o
paciente pode exigir respostas inadequadas,
masoquistas, ou perversas do terapeuta.
Como podemos constatar,
entre cada paciente e o terapeuta cria-se um
campo, uma área de experimentação, um espaço
potencial onde se vai desenvolver a
interação-terapia. Esta troca se dá
basicamente no setting, porém muitas vezes
extrapola o setting: é preciso haver
espaço para uma comunicação telefônica entre
paciente e analista. Esta elasticidade do
setting reporta-nos novamente ao problema do
seu manejo. No caso de Manoel, foi muito
importante ele se relacionar com o
secretário do consultório e com o porteiro
do edifício. Representavam a relação com uma
babá, a relação com os amigos, a necessidade
do uso de suas costumeiras técnicas de
dissociações no relacionamento comigo. Mas,
acima de tudo, a perspectiva de usar um
setting transicional, o que também
acontecia quando vinha para as sessões muito
antes da hora da consulta e ficava passeando
e divagando pelas adjacências.
Obviamente, há certos
casos - oualguns casos em certas fases – em
que não há condições de usar o lúdico, o
humor, ou mesmo em que o brincar é
contraindicado. Pacientes esquizóides,
narcísicos, depressivos, com um self
muito frágil, muitas vezes se sentem feridos
em sua autoestima ante qualquer manifestação
de humor de nossa parte. É tudo uma questão
de timing e empatia. Que avanço
formidável será, todavia, para um paciente
deste tipo, poder se envolver em um momento
lúdico com o terapeuta?
Referências
MELLO FILHO, Júlio de. O ser e o viver:
uma visão da obra de Winnicott. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989. P. 60.
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